quinta-feira, 27 de março de 2025

Da pós-verdade


Na grande questão da pós-verdade não podemos ignorar que Wilfrid Sellars, Willard von Orman Quine e Richard Rorty têm de alguma forma responsabilidades nisso. A "pós-verdade" é um fenómeno que, embora tenha ganhado força nos últimos tempos, tem raízes filosóficas mais profundas, ligadas à evolução do pensamento epistemológico do século XX.

Wilfrid Sellars, com a sua distinção entre a "imagem manifesta" e a "imagem científica", aponta para a dificuldade de reconciliar as nossas intuições comuns sobre o mundo e aquilo que a ciência diz sobre o mundo. Essa clivagem abriu caminho para questionamentos sobre o que consideramos "real". Willard Van Orman Quine, por sua vez em Two Dogmas of Empiricism, desafiou a distinção kantiana entre verdades analíticas e sintéticas, mostrando que a verdade depende mais da linguagem e dos esquemas conceptuais, do que a noção que temos sobre os factos e sobre o que é a realidade. Ora, se não há uma estaca fixa onde nos possamos agarrar sobre o fundamento da verdade, e como uma espécie de fundação objetiva da realidade do mundo, abre-se o caminho para um campo de "narrativas" sobre a realidade, que em vez de fundações de pedra sobre a realidade apenas temos um pântano. 

Richard Rorty, talvez o mais precavido nesse percurso com o uso de uma espécie de "galochas da linguagem". rejeitou a ideia de que a verdade seja uma correspondência ponto por ponto de uma realidade objetiva. O que ele postulou foi que a realidade não passava de um produto de práticas discursivas e sociais. O seu pragmatismo, e a sua ironia, acabou por forjar na mente das academias, exclusivamente nos departamentos das humanidades e dos chamados estudos culturais, que aquilo a que chamamos de "verdade" não passa de uma questão de consenso dentro de uma comunidade linguística. E foi assim que se institucionalizou a pós-verdade, um relativismo epistemológico que foi apropriado politicamente para minar o sentido comum de ideia de realidade. 

Ora, se tudo é uma construção discursiva, então qualquer narrativa, por mais absurda que seja, pode apresentar-se como válida, desde que haja poder suficiente para a sustentar. Nenhum deles previu o que as suas teses viriam a provocar no cenário atual da Administração Trump em que a pós-verdade se tornou uma arma política em larga escala. Sellars, Quine e Rorty trabalhavam no campo da epistemologia e da filosofia da linguagem, mas não tinham uma agenda política direta nesse sentido. O que aconteceu foi que as suas ideias foram apropriada e, em alguns casos, distorcidas por discursos que relativizam a verdade ao extremo.

Os fenómenos: woke e Trump - são exemplos que se situam nos polos opostos desse desdobramento. De um lado, a esquerda identitária utiliza a desconstrução da verdade objetiva para afirmar que todas as perspectivas são igualmente válidas, tornando a realidade uma questão de narrativa. Do outro, Trump e seus aliados utilizam a mesma lógica para desacreditar qualquer facto inconveniente, alegando que tudo é uma questão de opinião ou manipulação mediática. O resultado é um mundo em que "facto" e "verdade" são campos de batalha no debate político e público, uma guerra de narrativas sem tribunal nem quartel. Tudo isto volta a trazer à baila Nietzsche quando sentenciou com o seu anúncio da "morte da verdade". Mas agora de forma acelerada, por intermédio das redes sociais e pela fragmentação da informação. O próprio Rorty, antes de morrer, já demonstrava preocupação com o rumo político que os EUA estavam a levar. No Achieving Our Country, ele alerta para o risco de estar na forja um populismo autoritário em resposta ao desvario wokista de uma esquerda que levou longe demais a sua luta pelas causas culturais e identitárias. Ou seja, ele ainda viveu a tempo de ver a tempestade a formar-se, mas talvez não tenha percebido o papel da sua maternidade nesse processo.

Em bom rigor a questão da verdade é um dos temas mais debatidos desde a antiga filosofia. Pode ser abordada de várias maneiras, mas há três grandes perspectivas que moldaram o pensamento ocidental sobre o tema: 
  • A Verdade como Correspondência
  • Essa é a concepção clássica da verdade, que remonta a Aristóteles e foi reforçada pelo realismo medieval e moderno. Segundo essa visão - Aristóteles, Tomás de Aquino, Bertrand Russell - uma afirmação é verdadeira se ela corresponde à realidade. Como podemos ter certeza de que uma afirmação corresponde fielmente à realidade, se todo o conhecimento passa por filtros perceptivos e linguísticos?
  • A Verdade como Coerência
  • Já o idealismo alemão e os racionalistas preferiram outra abordagem: a verdade como coerência dentro de um sistema. Uma afirmação é verdadeira se ela se encaixa logicamente em um conjunto de crenças ou proposições já aceites. Isso significa que a verdade não é algo externo à mente, mas sim algo que se constrói dentro de sistemas conceptuais. Era o que defendia Hegel, ou Spinoza, e alguns positivistas. Essa visão pode levar ao relativismo. Se diferentes sistemas podem ser internamente coerentes, como determinar qual é o "mais verdadeiro"?
  • A Verdade como Consenso pragmatista
  • No século XX, com autores como Nietzsche, William James e Richard Rorty, começou-se a defender que a verdade não é uma correspondência com o mundo nem mera coerência lógica, mas sim algo que emerge do consenso social e das práticas humanas. O que consideramos "verdadeiro" é aquilo que funciona na prática ou aquilo sobre o qual conseguimos chegar a um acordo. Esse modelo permite que diferentes grupos reivindiquem as suas próprias "verdades", tornando qualquer noção objetiva de realidade cada vez mais instável.
Na pós-verdade e na fragmentação da verdade - o problema surge quando a ideia de verdade como consenso se mistura com a dinâmica política contemporânea. O que era uma questão filosófica sobre a natureza do conhecimento tornou-se uma ferramenta para manipulação de massas. A internet permitiu que cada grupo criasse as próprias narrativas, reforçadas por algoritmos que excluem visões opostas. O que era uma "verdade" compartilhada por uma sociedade inteira fragmentou-se em múltiplas "verdades" tribais. Movimentos progressistas adotaram a ideia de que todas as perspectivas são válidas e que qualquer tentativa de estabelecer uma verdade objetiva é uma forma de dominação. Esse relativismo cultural e político minou a confiança em critérios objetivos, que desencadeou uma reação contrária, como naturalmente sempre acontece.

Fake News e propaganda política é o que hoje mais alimenta os autocratas. Governos autoritários e políticos populistas perceberam que, se não há uma verdade objetiva, então qualquer mentira pode ser validada pelo poder do discurso e da repetição. Trump, por exemplo, joga com essa lógica ao deslegitimar a imprensa e criar narrativas paralelas. Alguns filósofos pós-modernos argumentam que não há como voltar atrás e que devemos aprender a conviver com múltiplas "verdades". Mas isso não resolveria o problema da manipulação política e da desinformação. O ser humano não consegue viver sem um conceito compartilhado de verdade. Se tudo for apenas uma questão de narrativa e poder, a sociedade mergulhará no caos e na aniquilação. 

A História mostra-nos que os momentos em que a verdade se fragmentou radicalmente (queda de impérios, revoluções culturais ou grandes transições filosóficas) foram sempre seguidos por uma tentativa de reconstrução de um consenso. Então, se seguirmos esse padrão, é provável que algo semelhante aconteça. No entanto, há uma grande diferença entre os tempos passados e o presente: nunca houve um ambiente tão propício para a fragmentação contínua da verdade como agora. As redes sociais, a inteligência artificial e a conectividade ultra rápida tornaram a manipulação da informação muito mais sofisticada. Antes, a reconstrução de uma verdade comum dependia de uma classe intelectual ou de uma instituição dominante (como a Igreja na Idade Média, ou a ciência no Iluminismo). Mas hoje, quem pode assumir esse papel? A Ciência está sob ataque constante. Além disso, a ciência não trata de todas as dimensões da verdade, especialmente as que envolvem valores e significados. E se for o Estado, cai-se no autoritarismo. A Inteligência Artificial poderia ser um novo árbitro da verdade, filtrando desinformação e corrigindo distorções. Mas isso depende de quem programa a IA e de seus critérios.

Hoje os novos pragmatistas, que foram influenciados por Rorty, continuam a rejeitar a concepção tradicional de verdade como correspondência direta com a realidade. Em vez disso, enfatizam a utilidade prática das crenças e afirmações, avaliando-as com base no sucesso da orientação das ações humanas. Essa perspectiva aproxima-se de algumas posições pós-modernistas, que também questionam narrativas universais e verdades absolutas. No entanto, há diferenças significativas entre essas correntes. Enquanto os do pragmatismo insistem na aplicabilidade prática das crenças, os do pós-modernismo frequentemente valorizam a desconstrução de metanarrativas e a análise crítica das estruturas de poder subjacentes às construções sociais. 

Essas distinções geram debates intensos entre filósofos neopragmatistas e pós-modernistas, especialmente em relação ao papel da linguagem, da cultura e das estruturas de poder na formação do conhecimento. Além disso, os neopragmatistas participam de discussões com teóricos pós-coloniais e estudiosos das identidades de género. Esses diálogos exploram como as perspectivas pragmatistas podem contribuir para a compreensão das dinâmicas de poder, opressão e resistência presentes nas questões de identidade e representação. Os seguidores das filosofias de Sellars, Quine e Rorty estão ativamente envolvidos em debates contemporâneos. Eles buscam aplicar e adaptar as ideias neopragmatistas para abordar os desafios e as complexidades do mundo atual, interagindo com diversas correntes de pensamento para enriquecer essas discussões.

Não podemos viver sem um consenso alargado em relação ao que é verdade e ao que é mentira. É um problema que mergulha na raiz das civilizações. Se tudo for visto como uma construção social mutável, sem critérios mais sólidos, acabamos num estado de anomia, onde qualquer narrativa se afirma como válida simplesmente por ser "útil" para um determinado grupo. Isso compromete não só o debate público, mas até mesmo a própria noção de justiça e de ciência. Historicamente, as civilizações sempre precisaram de um mínimo de consenso sobre a verdade para funcionarem: Os gregos confiavam na lógica e na razão (Platão, Aristóteles). A Idade Média estruturou-se numa verdade religiosa, sustentada pela Igreja. A Modernidade buscou a verdade científica e racional, com Descartes, Kant e o empirismo. Agora, com a ascensão do neopragmatismo, do pós-modernismo e da era digital, o próprio conceito de verdade está sendo atacado de dentro. Mas, ironicamente, sem um consenso mínimo, não há civilização possível. E é justamente isso a que estamos assistindo no caos da política contemporânea, nos conflitos culturais e na erosão da confiança nas instituições. 

Em contraposição com o relativismo os novos realistas nas academias anglo-saxónicas lutam pela sobrevivência. Os novos realistas representam uma reação ao relativismo epistemológico e ao pós-modernismo. No contexto anglo-saxónico, essa corrente busca restaurar alguma forma de realismo ontológico e epistemológico, rejeitando a ideia de que a verdade é meramente uma construção social ou um efeito de práticas discursivas. O novo realismo surge como um movimento filosófico em resposta a décadas de desconstrução e relativismo promovidos por pensadores como Rorty, Foucault e Derrida. 

Entre as influências mais próximas desse realismo renovado estão aqueles que voltaram à metafísica analítica – Filósofos como Saul Kripke, Hilary Putnam e David Lewis - e já haviam contestado as formas extremas de antirrealismo na segunda metade do século XX. A redescoberta da realidade independente da linguagem – Inspirado por elementos do realismo especulativo e da fenomenologia, o novo realismo defende que a realidade existe independentemente de nossas interpretações. Filósofos como Maurizio Ferraris e Markus Gabriel argumentam que a ideia de que o mundo é constituído linguisticamente é um erro filosófico. 
Maurizio Ferraris é italiano, mas muito influente no mundo anglo-saxónico. Criador do termo “novo realismo”, propõe que os factos do mundo são independentes das nossas construções discursivas. 
Markus Gabriel é alemão, mas atua internacionalmente, desenvolvendo a teoria do "novo realismo ontológico", defendendo que a realidade se compõe de múltiplos domínios independentes. Hilary Putnam é um americano de gema, embora não um "novo realista" no sentido estrito. As críticas ao relativismo e a defesa do realismo internalista influenciaram esse movimento. Quentin Meillassoux é francês, mas com forte impacto em debates anglo-saxónicos. É crítico do correlacionismo kantiano, defendendo um realismo especulativo baseado na contingência radical da realidade.
Graham Harman dos EUA, embora mais próximo do realismo especulativo, contribui para o movimento ao defender um "realismo orientado a objetos". Os novos realistas acusam Rorty de reduzir a verdade a um consenso sociolinguístico, minando a objetividade científica. O novo realismo busca restaurar uma ontologia robusta em que a realidade não depende apenas da linguagem, das crenças ou das estruturas sociais. É um movimento que se opõe diretamente ao relativismo pragmatista de Rorty, e a outras vertentes pós-modernas.

Sem comentários:

Enviar um comentário