domingo, 9 de março de 2025

A saga abraâmica e mosaica


Afinal quem é o precursor do monoteísmo: Abraão ou Moisés? O título de precursor do monoteísmo costuma ser atribuído tanto a Abraão como a Moisés, dependendo do contexto histórico e teológico em que a questão é discutida. Abraão é visto como o "pai do monoteísmo" em tradições religiosas como o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Segundo a Bíblia, ele estabeleceu um pacto com Deus (Yahweh), comprometendo-se a uma adoração exclusiva. Essa aliança é considerada o marco inicial do monoteísmo, embora Abraão tenha vivido em um contexto onde o politeísmo era predominante. No entanto, alguns estudiosos sugerem que o culto de Abraão a Deus pode não ter sido estritamente monoteísta, mas henoteísta, ou seja, a adoração de um deus sem negar a existência de outros. Moisés é frequentemente associado ao desenvolvimento do monoteísmo formal e sistemático. Ele é creditado por introduzir a Lei Mosaica e reforçar a exclusividade do culto a Yahweh, como explicitado nos Dez Mandamentos: "Não terás outros deuses diante de mim". Moisés também liderou o povo hebreu no Êxodo e consolidou a identidade religiosa de Israel, proibindo a idolatria. Para muitos estudiosos, o monoteísmo puro começa a tomar forma nesse período.

Do ponto de vista histórico, há debate sobre quando o monoteísmo estrito surgiu. Alguns acreditam que ele se desenvolveu gradualmente, atingindo a sua forma mais clara apenas durante ou após o exílio babilónico (século VI a.C.). Antes disso, a religião hebraica pode ter sido mais  de um henoteísmo monolátrico. Assim, enquanto Abraão é uma figura fundadora e simbólica do monoteísmo em suas origens, Moisés é visto como o legislador que consolidou essa fé de maneira institucional e prática. Ambos, portanto, desempenham papéis complementares.

Nesta controvérsia, há quem defenda que Moisés, sendo o portador, na saída do Egito, da revolução teológica de Akhenaton que não vingou no Egito. Teoria defendida por alguns estudiosos e teólogos que remonta ao século XIX, ganhando força com Sigmund Freud em seu livro Moisés e o Monoteísmo (1939). Segundo essa visão, o monoteísmo israelita liderado por Moisés teria sido influenciado, ou até mesmo derivado, do monoteísmo revolucionário do faraó Akhenaton (ou Amenhotep IV), que governou o Egito no século XIV a.C. Akhenaton é conhecido por ter instituído o culto exclusivo a Aton, o deus solar, abandonando o tradicional politeísmo egípcio centrado no deus Amon e outros deuses do panteão. Ele mudou a capital para Akhetaton (atual Amarna) e promoveu uma reforma religiosa que enfatizava Aton como o único deus universal. No entanto, sua reforma foi efémera. O Egito rapidamente voltou ao politeísmo tradicional depois da sua morte.

A teoria sugere que Moisés, vivendo no Egito (segundo a narrativa bíblica), teria sido influenciado por ou até participado do círculo de Akhenaton. Quando a revolução monoteísta de Akhenaton fracassou, Moisés teria "salvado" a ideia ao liderar os hebreus no Êxodo e adaptado os conceitos monoteístas para criar o culto exclusivo a Yahweh. Freud argumentou que Moisés poderia ter sido um sacerdote egípcio adepto de Aton, que levou essa teologia com ele ao conduzir os hebreus para fora do Egito. Outros estudiosos apontam semelhanças culturais e simbólicas entre o culto a Aton e a fé mosaica inicial, como a centralidade de um deus único e universal. Moisés é central para o Judaísmo, representando a entrega da Torá e a fundação das práticas religiosas e éticas do povo judeu. Ele simboliza a lei, a liderança e o pacto consolidado com Yahweh. Por isso, os judeus veem em Moisés o verdadeiro arquétipo da identidade religiosa e cultural.

Há Críticas à Teoria: Falta de evidências concretas. Não há registos arqueológicos ou textos que liguem diretamente Moisés a Akhenaton ou ao culto de Aton. A cronologia bíblica do Êxodo não é clara e muitas vezes não coincide com o período de Akhenaton. Outros pesquisadores sugerem que o monoteísmo israelita foi um desenvolvimento autónomo, influenciado por fatores culturais e espirituais próprios da região de Canaã. A realidade é sempre mais complexa do que a versão da História. De qualquer forma, os judeus de hoje preservam mais Moisés do que Abraão, que os árabes também veneram. E não deve ter sido por acaso que Trump se ligou aos "Acordos de Abraão".

De facto, a escolha do nome Acordos de Abraão para o tratado de normalização entre Israel e alguns países árabes foi carregada de simbolismo. Abraão é uma figura compartilhada e venerada por judeus, cristãos e muçulmanos, sendo considerado o patriarca comum dessas tradições monoteístas. Essa escolha estratégica tinha como objetivo reforçar uma mensagem de unidade histórica e espiritual entre povos que frequentemente se veem em conflito. Abraão, por outro lado, é uma figura mais universal e menos específica. Ele é o "pai" das três grandes religiões abraâmicas, mas a sua narrativa na Bíblia hebraica não apresenta o mesmo detalhamento normativo e legislativo que a de Moisés. No Islamismo, Abraão (Ibrahim) tem um papel igualmente fundamental, sendo considerado o restaurador do monoteísmo puro e o ancestral direto de Maomé.

Trump e seus conselheiros perceberam a potência diplomática desse simbolismo. Ao invocar Abraão, eles apelaram para a noção de uma "ancestralidade comum" que poderia transcender rivalidades políticas e religiosas contemporâneas. Embora os acordos fossem mais pragmáticos do que idealistas, visando interesses económicos, estratégicos e de segurança regional, o nome ajudou a suavizar o caráter transacional das negociações. Ao nomear os Acordos de Abraão, Trump conseguiu evitar o uso de símbolos exclusivamente judaicos ou islâmicos, optando por uma figura conciliatória que, ao menos no plano simbólico, poderia ser aceite por ambos os lados. Porém, como a História demonstra, o simbolismo pode ser poderoso, mas não é suficiente para superar as complexidades e contradições da realidade política.

A longevidade e o impacto da mitologia abraâmica, particularmente no Judaísmo, são notáveis, especialmente considerando o contexto de perseguições e dispersão que os judeus enfrentaram ao longo dos séculos. Essa "perseverança" está profundamente enraizada na identidade cultural e religiosa dos judeus, que conseguiram adaptar-se a diferentes circunstâncias históricas sem perder a sua coesão e suas tradições fundamentais. A mitologia abraâmica oferece uma narrativa de origem que conecta os judeus a um propósito divino e histórico, como o povo escolhido. Essa visão os fortalece diante de adversidades. A história judaica é marcada por tragédias, como os pogroms, a Inquisição e, no século XX, o Holocausto. Esses eventos, longe de destruírem a cultura judaica, frequentemente reforçaram sua unidade e identidade. A ideia de resistência por meio da memória e da educação é um traço marcante. Por exemplo:

A influência persistente dessa mitologia, tanto no Judaísmo como nas tradições derivadas: Cristianismo e o Islamismo - é um testemunho do poder das narrativas fundadoras. Elas oferecem sentido, identidade e propósito, mesmo diante das forças da modernidade e da secularização. A história dos judeus é, sem dúvida, um dos exemplos mais emblemáticos da força dessas ideias na formação e na sobrevivência de um povo. O Êxodo narra uma jornada épica da escravidão à liberdade, da opressão à redenção. Ele carrega uma mensagem universal que comove o indivíduo e a coletividade, pois simboliza a luta contra forças que negam a dignidade humana. O mito do Êxodo é um espelho da condição humana: ao mesmo tempo uma bênção e um fardo, uma promessa de redenção e uma lembrança constante dos desafios que vêm com a liberdade e a responsabilidade. A inteligência acima da média atribuída aos judeus é, em grande parte, fruto de séculos de valorização, adaptação cultural e sobrevivência criativa em ambientes desafiadores. Não se trata apenas de genética ou acaso, mas de uma confluência complexa de fatores que moldaram um povo com uma identidade cultural única. É essa riqueza de história e tradição que continua a inspirar admiração e curiosidade.

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