quinta-feira, 6 de março de 2025
As teorias pós-modernistas em tempo de Inteligência Artificial
As teorias pós-estruturalistas e pós-modernistas, especialmente aquelas desenvolvidas por pensadores como Derrida, Foucault e Lyotard, problematizaram a ideia de uma realidade objetiva plenamente acessível pela linguagem e pelo conhecimento humano. Elas enfatizaram que toda a representação da realidade é mediada por estruturas de poder, discurso e interpretação, tornando impossível um conhecimento puro ou absoluto. No entanto, com o avanço da Inteligência Artificial (IA), surge uma nova tensão entre essas perspectivas e a capacidade crescente dos sistemas algorítmicos de processar grandes quantidades de dados e identificar padrões de forma aparentemente objetiva e independente de subjetividades humanas.
A IA reforça a objetividade ou confirma o ceticismo pós-moderno? Por um lado, a IA pode parecer refutar o relativismo extremo ao demonstrar que é possível reconhecer padrões e prever fenómenos com alta precisão sem depender das limitações humanas de linguagem e interpretação. Por outro lado, a IA também pode validar o argumento de que todo o conhecimento é mediado por sistemas estruturados, pois seus modelos são treinados em conjuntos de dados históricos e, portanto, carregam vieses culturais, estruturais e epistemológicos. O pós-estruturalismo argumenta que a linguagem é um sistema arbitrário e autorreferencial. No entanto, a IA já está operando com representações matemáticas e probabilísticas que não dependem exclusivamente da linguagem natural. Isso pode sugerir que há formas de conhecimento além das limitações linguísticas humanas, questionando a ênfase extrema dada pelos pós-estruturalistas à linguagem como prisão do pensamento.
Um outro tema que se prende com este é o do conceito de verdade. Os sistemas de IA, especialmente os de aprendizagem profunda, demonstram que podem identificar regularidades na realidade sem necessidade de interpretações discursivas. Isso contraria aquela ideia de que a verdade é uma construção humana independente da realidade natural. Natural no sentido da Natureza que está para além do humano. Ora, como os dados usados para treinar a IA são, em grande parte, gerados por humanos, portanto, as construções discursivas são artificiais no sentido do artifício humano, logo, ainda moldam os resultados da IA. E neste sentido, a ideia pós-moderna de que não há uma verdade neutra e independente dos contextos culturais ainda fica de pé.
Em resumo, a IA não serve como heurística epistemológica para derrotar de vez com as teorias ou algumas das principais teses pós-estruturalistas. Se, por um lado, a capacidade algorítmica de modelar realidades complexas parece contradizer o relativismo radical, por outro, a constatação de que os sistemas de IA refletem e perpetuam estruturas discursivas preexistentes confirma a tese de que o conhecimento está sempre condicionado por fatores contextuais. O impacto da IA na epistemologia talvez esteja deslocando o debate para um nível novo, onde a questão central já não é mais a relação entre linguagem e realidade, mas sim a relação entre dados, modelos algorítmicos e a construção de sentido na era digital.
É na sequência desta conclusão acerca dos dados que voltamos a consultar os trabalhos de Wilfrid Sellars, especialmente por sua crítica à ideia de "dado puro" e sua distinção entre o "espaço das razões" e o "espaço das causas". Essa distinção torna-se ainda mais pertinente na era da inteligência artificial. Sellars argumentou contra a ideia de que há um conhecimento "puro", diretamente obtido pela experiência sensorial sem mediação conceptual. Para ele, os sinais do exterior que entram no cérebro através dos órgãos dos sentidos entram numa rede do cérebro que já foi previamente trabalhada por conceitos e inferências racionais. Ou seja, não existe uma percepção da realidade que seja “pura” sem ser filtrada por uma estrutura interpretativa. Ora, a Inteligência Artificial, que é o trabalho mecânico de “dados”, esses dados são estruturas que já foram por sua vez trabalhados conceptualmente. A IA é frequentemente apresentada como capaz de processar "dados puros", mas esses dados já são extraídos, selecionados e estruturados de acordo com escolhas humanas prévias. Isso confirma o que Wilfrid Sellars defendia. Não há um acesso neutro à realidade, pois toda a colheita de dados implica decisões sobre relevância e categorização.
Sellars distingue entre o "espaço das razões" (onde operam conceitos, justificações e inferências) e o "espaço das causas" (onde ocorrem meros processos naturais, como reflexos físicos). A IA opera, de facto, em modo máquina (hardware), ou seja, opera no espaço das causas, pois seus processos são estatísticos e associativos, sem um entendimento real dos conceitos, mas trabalha conceitos (software). Sellars nos lembra que o hardware é um nível que trabalha no espaço das causas, mas o que ela trabalha pertence ao nível do espaço das razões que não pode ser reduzido a meros processos causais. A IA, por mais sofisticada que seja, não transcendeu esse dilema: ela pode "correlacionar" sem "compreender". Sellars nos ajuda a perceber que os sistemas de IA não escapam das estruturas humanas de significado e assim, o mito do dado ainda persiste. A IA possa processa dados em larga escala. Mas isso não significa que tenha entrado, ou pertença por si própria no espaço das razões. A IA é um instrumento poderoso, mas não como uma entidade epistémica independente no sentido pleno.
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