sábado, 22 de março de 2025

A dupla subjetividade

 

Voltando ao fenómeno da dupla subjetividade: o meu eu real e um ego ainda maior. Como diz S. Paulo "eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim". O lógico platónico declara: "penso, mas cada vez que penso corretamente, não sou eu mesmo, mas a ideia em mim".

A questão da dupla subjetividade reflete um profundo dilema filosófico e espiritual sobre a identidade e o papel do eu em relação ao transcendente ou ao universal. No caso de S. Paulo, a frase "eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim" indica uma transcendência do ego pessoal em favor de uma identidade maior, uma fusão com a divindade ou com um princípio absoluto que molda a vida de forma plena. Esse tipo de experiência sugere uma superação do ego individual, onde o eu se dissolveria em algo mais elevado.

A declaração platónica "penso, mas cada vez que penso corretamente, não sou eu mesmo, mas a ideia em mim" aponta para uma humildade do eu enquanto sujeito, sendo o Logos que assume o protagonismo. E essa é que é a Verdade. Neste pensamento herdado dos gregos clássicos que abunda nos escritos de Platão, a Verdade no pensamento não é uma mera expressão da vontade ou desejo do indivíduo, mas uma participação numa ideia universal, algo que transcende a particularidade do eu humano. A verdadeira essência ou identidade do sujeito se desvia para uma realidade que é a linguagem, e o intelecto que resulta dela. E o nosso esforço de humildade é superar o ego individual abraçando algo que é universal e circula no âmbito da linguagem a que os gregos clássicos deram o nome de Logos. Portanto, São Paulo vai beber ao grego platónico o Logos. E é daí que parte para a dualidade da subjetividade onde o ego não é mais o centro exclusivo da experiência, mas sim um reflexo ou um veículo de algo maior. 

O fenómeno da dupla subjetividade pode ser entendido, então, como a tensão entre o ego pessoal, que busca afirmar a sua identidade e autonomia, e uma dimensão mais profunda de existência, em que o sujeito se perde para se encontrar em algo maior que ele mesmo. A dialética entre esses dois estados é uma das grandes questões que atravessa as tradições filosóficas e espirituais, e é central para a compreensão do sentido da vida e da evolução espiritual ou intelectual do ser humano.

O ego das pessoas só acredita naquilo que quer ouvir. E o que quer ouvir foi capturado pelos seus desejos. E os desejos são hedonistas. As pessoas não se importam de ser enganadas, desde que o faz-de-conta seja mais agradável e as faça ser felizes. Infelizmente aprendemos as verdades apenas à custa de muito sague, suor e lágrimas. É trágica a condição humana. O desejo de prazer imediato é reforçado por sistemas económicos e culturais que incentivam o consumo, a superficialidade e a gratificação instantânea, enquanto desencorajam o sentido crítico e as reflexões profundas.

A "felicidade" baseada no autoengano é frágil, mas enquanto funciona, parece suficiente. É só quando a realidade chega à hora de cobrar é que o véu é rasgado. E é então nessa altura que as pessoas sabem o que custa a vida. Mas nessa altura já pode ser tarde de mais. Os custos são brutais. Não é preciso que tenha de ser a 3ª Guerra Mundial. Cada vez há mais mortes e destruição de casas. Ora secas, ora vendavais e inundações. Tempestades que trazem consigo mais migrações humanas. E dessa forma mais instabilidade social. E a Natureza ainda tem uma cereja que vem na forma de erupções vulcânicas, terremotos, que amplificam ainda mais o caos e a desgraça.

Há quem diga que a visão dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse vislumbra através da destruição a verdadeira purificação, a renovação. Historicamente, as crises mais devastadoras forçaram mudanças profundas. A Segunda Guerra Mundial forçou os europeus a uma reconstrução de uma Europa melhor. Apesar do horror, ela gerou um compromisso renovado com a paz (pelo menos por algumas décadas) com avanços tecnológicos e sociais. No entanto, o que torna o cenário atual particularmente desafiador é o potencial de autodestruição total. Se até aqui se puderam reconstruir, após crises localizadas, coisas melhores, hoje a escala global das ameaças pode não deixar espaço para uma segunda oportunidade. O mito dos Quatro Cavaleiros é uma advertência universal. Eles nos lembram que os desequilíbrios humanos -- ganância, violência, negligência ambiental -- cobram-se com preços muito elevados. A questão otimista é: estamos conscientes desse preço e interessados em pagá-lo? Mas a questão pessimista é: teremos sempre que pagar um alto preço para continuar a sobreviver; só não se sabe quando, nem com que intensidade. Mesmo depois da catástrofe, a humanidade será capaz de encontrar uma forma de reconstruir um sistema mais justo e sustentável? Ou as forças destrutivas prevalecerão de forma definitiva? Quem vai ter de responder à pergunta provavelmente ainda não nasceu. Ou estará quase a nascer? A história humana sugere que as gerações que enfrentam crises podem, paradoxalmente, mostrar uma resiliência surpreendente. Muitos dos avanços tecnológicos e sociais vieram de contextos de escassez e destruição.

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