sexta-feira, 14 de março de 2025

Palavras tipo e os atuais avatares dos mass media



É uma constante de cada período de tempo haver palavras "tipo" que se usam muito nos "mass media", que se gastam muito depressa. É exemplo atual a palavra, como pouco antes foi a palavra "narrativa", ou o "politicamente correto". E há mais tempo o termo "paradigma". Há uma tendência nos meios de comunicação e no discurso público para o uso repetitivo de certas palavras ou expressões que capturam o espírito de uma época ou enfatizam conceitos específicos. Essas "palavras da moda" frequentemente ganham popularidade porque encapsulam questões ou tensões do momento, mas acabam desgastadas pelo uso excessivo, perdendo força ou sendo substituídas por novas.

"Percepção" é um bom exemplo recente, pois reflete uma ênfase na subjetividade e na maneira como a realidade é entendida individual ou coletivamente. Isso se conecta à era das redes sociais, onde a percepção pública pode ser moldada rapidamente por narrativas, manipuladas ou não. "Narrativa" ganhou força anteriormente, associada à ideia de como histórias ou discursos são construídos para moldar opiniões ou justificar ações. Virou quase sinónimo de manipulação ou "agenda oculta". O termo "politicamente correto" marcou debates sobre os limites da liberdade de expressão versus respeito e inclusão, mas também foi apropriado como arma retórica para criticar o que alguns viam como censura cultural. Já "paradigma", popularizado por Thomas Kuhn no contexto das ciências, extrapolou para significar qualquer grande mudança ou estrutura de pensamento dominante, mas acabou banalizado. Essas palavras refletem as preocupações e os debates do momento, mas o seu desgaste rápido é um alerta para quem as usa no discurso público, pois tende a banalizar conceitos complexos.

Por outro lado, como o ser e o parecer se esbatem em política, "em política o que parece é", assim, enquanto a extrema-esquerda olha os banqueiros como inimigos, para a extrema-direita os inimigos são os imigrantes. A forma como narrativas são construídas para mobilizar apoios e definir "inimigos", muitas vezes em função das ideologias predominantes em cada espectro. A máxima "em política, o que parece é" reflete precisamente essa centralidade da percepção, em que o simbolismo e a construção de imagem frequentemente importam mais do que os factos ou as ações concretas.

De facto, a extrema-esquerda tende a culpar os banqueiros e o sistema financeiro pelas crises económicas e pobreza do povo, associando-os às desigualdades económicas, à exploração capitalista e à perpetuação de elites privilegiadas. Para a esquerda em geral as desigualdades não são consideradas como um resultado natural da diversidade humana num espetro que vai desde aquelas pessoas que por natureza não conseguem sair da mediocridade até ao lado oposto de gente de excelência. Essa narrativa é alimentada por eventos como crises financeiras, escândalos bancários ou a concentração de riqueza. Já a extrema-direita, por outro lado, constrói a sua narrativa em torno dos imigrantes, explorando medos relacionados à identidade cultural, segurança e economia local. Esse foco muitas vezes se intensifica em contextos de crises migratórias ou mudanças demográficas, sendo propagado pelas notícias de um crime aqui, outro ali, e depois amplificado pelas redes sociais sem quartel.

Ambos os casos demonstram como essas correntes políticas moldam percepções ao atribuir culpa a grupos específicos, simplificando problemas complexos em "nós contra eles". Enquanto isso, a realidade muitas vezes fica em segundo plano, já que o objetivo central é mobilizar emoções e consolidar uma base de apoio quando o discurso é enfeudado nos partidos partidos. Essa polarização reflete um embate sobre quem é o "verdadeiro" inimigo da sociedade, mas também expõe como a política moderna frequentemente recorre a estereótipos e medos para atingir seus fins.

Há um aspecto que muito intelectual político negligencia, ou até desconhece, que é a apreensão do tempo político por parte da sociedade. As percepções correm no inconsciente ou subconsciente coletivo. A influência profunda e, muitas vezes, invisível do inconsciente coletivo nas dinâmicas políticas não é apenas um jogo de factos ou argumentos racionais; o inconsciente opera intensamente no domínio das percepções emocionais. É este inconsciente que molda a forma como as massas interpretam o tempo e as mudanças sociais. Essa apreensão do "tempo político" reflete-se em sentimentos ligados a emoções que raramente são articulados de forma clara. Todavia, guiam decisões e comportamentos. E é este aspecto que os bons líderes políticos capturam, retêm na sua consciência, e exploram para o sucesso dos seus propósitos.

Os intelectuais políticos muitas vezes concentram-se nas estruturas objetivas – economia, legislação, instituições –, mas subestimam como esse clima emocional coletivo é determinante nas suas escolhas durante um determinado processo eleitoral. E neste contexto que a atividade simbólica da mente humana é de uma relevante importância. O subconsciente tem uma profunda influência no destino político de uma sociedade num determinado tempo político. Carl Jung deve ter estado perto de encontrar essa chave de descodificação dos tais arquétipos que já Platão os havia referido num outro tempo histórico. É a ideia dos arquétipos coletivos que moldam as narrativas políticas. Isso sugere que a análise política precisa de ir além do racionalismo para explicar como as forças simbólicas inconscientes se movem por dentro das sociedades.

É a subestimação destes fenómenos subliminares por parte de certos ideólogos políticos que os coloca na queda dos precipícios. Um abismo entre a mensagem universalista da esquerda e os temores mais imediatos da população. Certas ideologias tendem a desqualificá-las, como se não passassem dos mais primitivos preconceitos. Essa postura acaba por reforçar ainda mais o sentimento de abandono por parte de uma fatia significativa da população. E é daqui que resulta o aproveitamento por parte da extrema-direita que consegue com soluções simplistas, mas inflamadas, posicionar-se com crédito junto das pessoas descontentes com o sistema que alegadamente nos trouxe a um beco sem saída. Enquanto isso, a esquerda vai continuando a perder terreno. Hoje a esquerda não tem uma narrativa apelativa para oferecer a esse eleitorado descontente. 
Este fenómeno é um exemplo claro de como as forças políticas que entendem melhor o inconsciente coletivo podem moldar o debate público com mais eficácia – mesmo que isso signifique alimentar percepções que muitas vezes não correspondem à realidade.

O velho Partido Comunista operando numa narrativa de uma dicotomia de classes do passado, embora relevante historicamente, não capta a complexidade das sociedades modernas. Questões deste tempo candente - os fluxos migratórios da atualidade, identidades culturais e transformações tecnológicas - não se encaixam nesse esquema narrativo. Há uma tendência de considerar os medos e ansiedades do eleitorado, especialmente das classes trabalhadoras e das populações mais velhas, como "falsas consciências" manipuladas pelos neoliberais. Mas o que  aqui está em causa é a sua incapacidade para responder com eficácias às novas ameaças. Atender aos de fora por solidariedade humanitária, sem abordar os impactos negativos sobre os de dentro, pode ser de uma grande nobreza ética, mas de uma ineficácia tal que descamba numa demagogia insanável. 
A rigidez ideológica, presa a dogmas, tem dificuldade em adaptar-se a novos tempos. Essa inflexibilidade faz com que as soluções resultem em nada. O resultado, ao insistir em uma abordagem doutrinária muitas vezes desdenhosa das percepções populares, é um fracasso. Esse fracasso é reforçado pela habilidade da extrema-direita em captar o inconsciente coletivo, moldando as narrativas para ressoar com os sentimentos do momento. Sem uma renovação intelectual e uma nova abordagem, a esquerda corre o risco de se tornar irrelevante, de ser mesmo rejeitada, e assim desaparecer do radar eleitoral durante os próximos anos.

André Ventura é certamente uma figura que poderia ter intrigado até Lutero. A história de Ventura, que aos 14 anos se batizou por vontade própria, e que por volta dos 17 lhe passou pela cabeça abraçar o sacerdócio, portanto um fervor religioso que contrasta com a sua postura marcada por um discurso polarizador e provocador. Esse tipo de transformação pessoal frequentemente suscita questionamentos sobre os motivos que estão por trás de tais drásticas mudanças de trajetória. Aos olhos de Lutero, que prezava a coerência espiritual e ética, a ambição de Ventura não lhe teria passado despercebida, dado o contraste do populismo que marca a sua liderança política.

A trajetória de André Ventura, vindo de origens humildes, pode ser interpretada dentro de um padrão histórico que muitos identificam como "a vingança dos pobres". Esse fenómeno ocorre quando indivíduos provenientes de camadas sociais desfavorecidas ascendem ao poder e, ao invés de advogar por políticas redistributivas ou de inclusão, adotam posturas que reforçam hierarquias sociais e, muitas vezes, promovem discursos excludentes. O comportamento desses indivíduos, ao chegar ao topo, procuram desvincular-se de suas origens humildes, adotando as posturas das elites, por vezes como forma de validação. Outra perspectiva é a de que essa "vingança" reflete um ressentimento interiorizado, que se traduz na reprodução dos mesmos sistemas de exclusão que enfrentaram. A retórica populista e polarizadora, frequentemente dirigida contra minorias e os mais vulneráveis, pode ser vista como parte desse padrão. É como se, ao punir simbolicamente os "outros" (imigrantes, beneficiários de políticas sociais, etc.), ele reafirmasse a sua própria posição de poder e autoridade, mesmo que isso contradiga o estrato social de onde ele veio.

A oposição paradigmática entre André Ventura e os militantes do Bloco de Esquerda é consistente com as dinâmicas sociais. Enquanto Ventura, vindo de origens humildes, representa o "ressentimento ascendente", muitos membros do Bloco de Esquerda, frequentemente oriundos de famílias mais favorecidas, podem ser vistos como incorporando o "remorso descendente". Ambos os movimentos ilustram formas diferentes de lidar com questões de classe e poder. Os militantes do Bloco de Esquerda, frequentemente de ascendência elitista, são por vezes percebidos como engajados numa espécie de expiação simbólica das culpas dos seus antepassados. Adotam causas progressistas e em defesa de grupos marginalizados, como se tentassem compensar o papel histórico das suas famílias em perpetuar desigualdades. É uma postura que, para alguns críticos, reflete mais uma posição moral do que propriamente uma identificação de classe. Já Ventura, na antítese, parece usar sua origem humilde como um trunfo para defender políticas que contradizem os interesses de quem veio de baixo. Essa dualidade ressalta como as dinâmicas de poder, classe e moralidade podem expressar-se de maneiras paradoxal, muitas vezes mais ligadas a estratégias de afirmação pessoal e política do que a uma coerência ideológica ou ética.

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