quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Do Imaginário - [3] - O Preste João no Imaginário do Libro del Conosçimiento

O Preste João é um dos exemplos das mirabilia que mais aparece na literatura medieval. E por maioria de razão nos livros de viagens da Idade Média. A localização geográfica é diversa, inicialmente na Ásia (Índia), passou depois, e é o caso do Libro del Conosçimiento, para a África, mais precisamente Etiópia ou Abissínia.

Portanto, de começo trata-se de um Rei-Papa que vive algures na Índia numa corte sumptuosa, em tudo superior ao que pode encontrar-se a Ocidente. Não só é cristão como está pronto para celebrar uma união com os cristãos ocidentais que permita à Cristandade livrar-se de vez dos mouros. Depois do fracasso das Cruzadas, era preciso continuar a luta pela libertação do Santo Sepulcro por outros meios. Diz-se que o bispo de Gabula (Biblos) aquando da visita ao papa Alexandre III em Viterbo, 
lhe falou de “um certo João para lá da Pérsia e da Arménia, a quem o povo chama Preste João, um Rei-Papa, e que tivera grandes vitórias contra os mouros.” Estamos em 1145, depois de Edessa ter caído nas mãos dos muçulmanos, enquanto D. Afonso Henriques forjava um Portugal independente.

Este rei, pertencendo à família dos Magos, já aparecera em várias fontes, nomeadamente fontes judaicas. O Preste João é aquilo a que os psicólogos de hoje chamariam “mito de salvação” ou “mito redentor”. Parte de toda uma tradição de literatura de sonhos que inventa utopias. O mito está cheio de falsas pistas que distraem e confundem o leitor literalista, deixando a metáfora para aqueles que têm a mente aberta. Estamos também num tempo em que surgem os primeiros romances de cavalaria, as lendas do rei Artur, e de Alexandre, e das Ilhas Afortunadas. Histórias de licornes e pigmeus a lutar com garças, pigmeus e homens só com um olho. 




Na ilustração acima, o ilustrador desenhou e coloriu um homem em posição sentada com um enorme pé, com cinco dedos, que lhe serve de sombra. Trata-se de um sciapode. Nu, mas com a cabeça coberta por um provável turbante terminando em ponta. Plínio o Velho, na sua História Natural, atribui a Ctésias a descrição de uma raça de homens denominados monocoli devido ao facto de apenas possuírem uma perna. São seres dotados de uma surpreendente agilidade para dar saltos. São também chamados sciapodes, porque quando faz mais calor deitam-se de costas no chão, para se protegerem com a sombra provocada pelo seu enorme pé.

Portanto, nos relatos de viagens da Idade Média, o Imaginário ocupa um lugar de destaque. São narrativas de caráter fabuloso intrinsecamente associadas aos espaços percorridos. A meio da descrição do seu itinerário, o narrador do Libro del Conosçimiento interrompe a narrativa para falar do maravilhoso que vira ou ouvira falar. Não existe uma clara separação entre geografia, história, lenda e mito. Aqui, ao contrário das Imago mundi, que apresentam estes campos claramente independentes, a menção a um determinado espaço pode também servir para evocar um acontecimento político decorrido no mesmo , nomear os seus habitantes fantásticos ou mesmo para recordar um herói ligado à sua fundação. Lenda e história, fábula e realidade caminham assim lado a lado. Os autores, de um modo geral, estabelecem duas categorias de enunciação de mirabilia no seu discurso, diretamente ligadas às noções de "dado certo" e "dado duvidoso". O advérbio "antigamente", ou a utilização de tempos pretéritos, relaciona-se com referências à Antiguidade, ou seja, às "autoritas", o que legitima a validade das narrativas dos "tempos medievais". O emprego do verbo "dizen" evoca acontecimentos maioritariamente ligados ao testemunho oral e, em consequência, mais sujeitos à dúvida e à construção lendária.



No Libro del Conosçimiento as mirabilia do mundo manifestam-se de duas formas distintas: através da redação de lendas e mitos, e da representação iconográfica - desenhos de que dou conta com alguns exemplares que acompanham este capítulo dos meus apontamentos acerca desta temática. O texto do Libro del Conosçimiento surge assim pautado por ilustrações coloridas que têm a função de ajudar o leitor a perceber melhor do que se está a falar quando se fala em seres extraordinários. Os inigmas do mundo, a hierarquia das sociedades, a natureza política da humanidade, eis os conhecimentos ligados à viagem na época coeva do autor.

A crença na existência de uma raça humana com cabeça de cão é a mais difundida de todas as que marcam o imaginário medieval ocidental. A ampla difusão que esta lend aalcançou reflete-se na própria segurança com que o autor do Libro del Conosçimiento a evoca. A lenda dos cinocéfalos remonta à Antiguidade. Ctésias localizou-os nas montanhas da Índia. E na mesma linha é evocada por Plínio o Velho na História Natural. E Santo Agostinho também. Os cinocéfalos alcançaram tal popularidade que os próprios missionários afirmavam com total segurança tê-los encontrado. Foram, inclusive, associados a Gog e Magog. pertenciam a esta raça alguns povos atrás das portas dos montes Cáspios.

Percorrer o mundo é igualmente percorrer os seus mistérios, as suas interrogações,o seu passado e o seu futuro. Viajar apresenta-se assim como uma iniciação ao imaginário. Ao nível do Imaginário, o Libro del Conosçimiento retoma o espírito da Antiguidade, onde viajar era ver as maravilhas do mundo. Mas não devemos esquecer que nos inícios de 1400 d.C. o Libro del Conosçimiento alcançou grande popularidade em Castela e Aragão, dado que nessa altura os expedicionários levavam a sério o seu conteúdo, considerando-o rigoroso e fidedigno.

O itinerário do Libro del Conosçimiento é longo e complexo, em que os lugares visitados tocam pontos muito distantes e de acesso difícil. Mas parece um itinerário aleatório, sem qualquer plano, exceto a descrição do sítio de partida e o sítio de chegada que é Sevilha. Ora isso torna a viagem em si inverosímil. A primeira parte ocupa-se exclusivamente da Europa: da Península Ibérica à Escandinávia; das Órcades à Letónia. A segunda etapa da viagem abrange a Europa e a África. E a terceira e última etapa abrange os três continentes. Chega ao Oriente depois de uma passagem pela Arábia, privilegiando as cidades e as ilhas. Os meios de transporte são diversificados: camelos, naus e cogas.

Em meados do século XIII, nas costas meridionais do mar do Norte e do Báltico, ocorreram transformações cruciais ao nível da construção naval que culminaram com o aparecimento de um novo tipo de navio denominado coga (Kogge ou Koggen). Com o passar do tempo, desde os construtores viquingues, os conhecimentos técnicos navais evoluíram de acordo com a sua versatilidade e robustez. Assim passou a arvorar um ou dois mastros, possuir castelos à popa e à proa, e ter até três cobertas. Estes navios eram sobretudo utilizados pelas grandes grandes cidades da liga Hanseática. Mas também haviam os barcos de pequeno e médio porte que tinham sido utilizados pelos cruzados normandos que aportavam constantemente em Portugal. Aliás foi numa destas embarcações que Gil Eanes dobrou o cabo Bojador em 1434.

Mas as naus nos finais de 1300 eram já de uso comum na Catalunha, aliás o nome "nau" é de origem catalã. Eram embarcações já de grande porte. No Códice "Las siete partidas" de Afonso X (1221-1284) já se fala na nau que é superior à carraca. No entanto, esta nau dista ainda muito das naus que a frota de Vasco da Gama utilizou para chegar à Índia.

A atração e a paixão desencadeada pelas terras do Preste João a Oriente, como horizonte onírico da Cristandade ocidental, era inevitável numa mundividência ainda muito influenciada pelas lendas e mitos bíblicos, tais como o Dilúvio e a Arca de Noé, Sodoma e Gomorra, a Torre de Babel. A distância geográfica era diretamente proporcional ao medo dos perigos desconhecidos, como era o caso, por exemplo, dos povos de Gog e Magog. Temas maravilhosos como o batismo pelo fogo ou os castelos de Gog e Magog. A Terra Santa, o Paraíso Terreal e o reino do Preste João, faziam parte da trilogia das Grandes Mirabilia.

O Preste João medieval é o soberano cristão que do seu reino longínquo das três Índias - algures entre a Torre de babel e os confins do Oriente - se constitui ainda como promessa de reunificação. E, com efeito, no Libro del Conosçimiento esta figura lendária é representada como um grande monarca. Do que já está dito para trás, recordemos que o último viajante europeu a localizar o Preste João em território asiático foi Odorico de Pordenone, por volta de 1320. Desde então o mito migra para África, mais precisamente a Etópia. Como tantas outras maravilhas, a localização simplesmente mudou de lugar.




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