Portanto, de começo trata-se de um Rei-Papa que vive algures na Índia numa corte sumptuosa, em tudo superior ao que pode encontrar-se a Ocidente. Não só é cristão como está pronto para celebrar uma união com os cristãos ocidentais que permita à Cristandade livrar-se de vez dos mouros. Depois do fracasso das Cruzadas, era preciso continuar a luta pela libertação do Santo Sepulcro por outros meios. Diz-se que o bispo de Gabula (Biblos) aquando da visita ao papa Alexandre III em Viterbo, lhe falou de “um certo João para lá da Pérsia e da Arménia, a quem o povo chama Preste João, um Rei-Papa, e que tivera grandes vitórias contra os mouros.” Estamos em 1145, depois de Edessa ter caído nas mãos dos muçulmanos, enquanto D. Afonso Henriques forjava um Portugal independente.
Este rei, pertencendo à família dos Magos, já aparecera em várias fontes, nomeadamente fontes judaicas. O Preste João é aquilo a que os psicólogos de hoje chamariam “mito de salvação” ou “mito redentor”. Parte de toda uma tradição de literatura de sonhos que inventa utopias. O mito está cheio de falsas pistas que distraem e confundem o leitor literalista, deixando a metáfora para aqueles que têm a mente aberta. Estamos também num tempo em que surgem os primeiros romances de cavalaria, as lendas do rei Artur, e de Alexandre, e das Ilhas Afortunadas. Histórias de licornes e pigmeus a lutar com garças, pigmeus e homens só com um olho.
Portanto, nos relatos de viagens da Idade Média, o Imaginário ocupa um lugar de destaque. São narrativas de caráter fabuloso intrinsecamente associadas aos espaços percorridos. A meio da descrição do seu itinerário, o narrador do Libro del Conosçimiento interrompe a narrativa para falar do maravilhoso que vira ou ouvira falar. Não existe uma clara separação entre geografia, história, lenda e mito. Aqui, ao contrário das Imago mundi, que apresentam estes campos claramente independentes, a menção a um determinado espaço pode também servir para evocar um acontecimento político decorrido no mesmo , nomear os seus habitantes fantásticos ou mesmo para recordar um herói ligado à sua fundação. Lenda e história, fábula e realidade caminham assim lado a lado. Os autores, de um modo geral, estabelecem duas categorias de enunciação de mirabilia no seu discurso, diretamente ligadas às noções de "dado certo" e "dado duvidoso". O advérbio "antigamente", ou a utilização de tempos pretéritos, relaciona-se com referências à Antiguidade, ou seja, às "autoritas", o que legitima a validade das narrativas dos "tempos medievais". O emprego do verbo "dizen" evoca acontecimentos maioritariamente ligados ao testemunho oral e, em consequência, mais sujeitos à dúvida e à construção lendária.
A crença na existência de uma raça humana com cabeça de cão é a mais difundida de todas as que marcam o imaginário medieval ocidental. A ampla difusão que esta lend aalcançou reflete-se na própria segurança com que o autor do Libro del Conosçimiento a evoca. A lenda dos cinocéfalos remonta à Antiguidade. Ctésias localizou-os nas montanhas da Índia. E na mesma linha é evocada por Plínio o Velho na História Natural. E Santo Agostinho também. Os cinocéfalos alcançaram tal popularidade que os próprios missionários afirmavam com total segurança tê-los encontrado. Foram, inclusive, associados a Gog e Magog. pertenciam a esta raça alguns povos atrás das portas dos montes Cáspios.
Percorrer o mundo é igualmente percorrer os seus mistérios, as suas interrogações,o seu passado e o seu futuro. Viajar apresenta-se assim como uma iniciação ao imaginário. Ao nível do Imaginário, o Libro del Conosçimiento retoma o espírito da Antiguidade, onde viajar era ver as maravilhas do mundo. Mas não devemos esquecer que nos inícios de 1400 d.C. o Libro del Conosçimiento alcançou grande popularidade em Castela e Aragão, dado que nessa altura os expedicionários levavam a sério o seu conteúdo, considerando-o rigoroso e fidedigno.
O itinerário do Libro del Conosçimiento é longo e complexo, em que os lugares visitados tocam pontos muito distantes e de acesso difícil. Mas parece um itinerário aleatório, sem qualquer plano, exceto a descrição do sítio de partida e o sítio de chegada que é Sevilha. Ora isso torna a viagem em si inverosímil. A primeira parte ocupa-se exclusivamente da Europa: da Península Ibérica à Escandinávia; das Órcades à Letónia. A segunda etapa da viagem abrange a Europa e a África. E a terceira e última etapa abrange os três continentes. Chega ao Oriente depois de uma passagem pela Arábia, privilegiando as cidades e as ilhas. Os meios de transporte são diversificados: camelos, naus e cogas.
Em meados do século XIII, nas costas meridionais do mar do Norte e do Báltico, ocorreram transformações cruciais ao nível da construção naval que culminaram com o aparecimento de um novo tipo de navio denominado coga (Kogge ou Koggen). Com o passar do tempo, desde os construtores viquingues, os conhecimentos técnicos navais evoluíram de acordo com a sua versatilidade e robustez. Assim passou a arvorar um ou dois mastros, possuir castelos à popa e à proa, e ter até três cobertas. Estes navios eram sobretudo utilizados pelas grandes grandes cidades da liga Hanseática. Mas também haviam os barcos de pequeno e médio porte que tinham sido utilizados pelos cruzados normandos que aportavam constantemente em Portugal. Aliás foi numa destas embarcações que Gil Eanes dobrou o cabo Bojador em 1434.
Mas as naus nos finais de 1300 eram já de uso comum na Catalunha, aliás o nome "nau" é de origem catalã. Eram embarcações já de grande porte. No Códice "Las siete partidas" de Afonso X (1221-1284) já se fala na nau que é superior à carraca. No entanto, esta nau dista ainda muito das naus que a frota de Vasco da Gama utilizou para chegar à Índia.
A atração e a paixão desencadeada pelas terras do Preste João a Oriente, como horizonte onírico da Cristandade ocidental, era inevitável numa mundividência ainda muito influenciada pelas lendas e mitos bíblicos, tais como o Dilúvio e a Arca de Noé, Sodoma e Gomorra, a Torre de Babel. A distância geográfica era diretamente proporcional ao medo dos perigos desconhecidos, como era o caso, por exemplo, dos povos de Gog e Magog. Temas maravilhosos como o batismo pelo fogo ou os castelos de Gog e Magog. A Terra Santa, o Paraíso Terreal e o reino do Preste João, faziam parte da trilogia das Grandes Mirabilia.
O Preste João medieval é o soberano cristão que do seu reino longínquo das três Índias - algures entre a Torre de babel e os confins do Oriente - se constitui ainda como promessa de reunificação. E, com efeito, no Libro del Conosçimiento esta figura lendária é representada como um grande monarca. Do que já está dito para trás, recordemos que o último viajante europeu a localizar o Preste João em território asiático foi Odorico de Pordenone, por volta de 1320. Desde então o mito migra para África, mais precisamente a Etópia. Como tantas outras maravilhas, a localização simplesmente mudou de lugar.
Sem comentários:
Enviar um comentário