quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Do Imaginário - [4] - Preste João em Baudolino de Umberto Eco


Baudolino falou durante longo tempo e Nicetas estava com fome. Teofilato levou-o à mesa de jantar oferecendo-lhe caviar de vários peixes, seguido por uma sopa de cebolas e azeite de oliva, servida num prato cheio de migalhas de pão, depois molho de moluscos triturados, temperados com vinho, alho, óleo, cinamomo, orégão e mostarda. Embora a contragosto, Nicetas não fez má figura. Enquanto as mulheres, que jantaram à parte, preparavam-se para dormir, Nicetas voltou a interrogar Baudolino, ansioso para saber se finalmente havia chegado ao reino do Preste João.
Tu gostarias que eu corresse, senhor Nicetas, mas nós ficamos em Pndapetzim durante dois longos anos, e o tempo corria sempre igual. De Zósimo, nenhuma notícia, e Praxeas nos fazia entender que, se não chegasse o décimo segundo do nosso grupo, sem o anunciado presente para o Padre, seria inútil viajar. Além disso, a cada semana nos dava novas e desconfortantes notícias: a estação das chuvas havia durado mais tempo que o previsto e o pântano ficara mais intransitável, não se tinham notícias dos embaixadores enviados ao Padre, talvez não conseguiam encontrar o único caminho possível... Depois vinha a boa estação e se vociferava que os hunos brancos estavam chegando, um núbio os avistara ao norte, e não podiam sacrificar homens para nos acompanhar numa viagem tão difícil, e assim por diante.
Nos confins da cidade, surgiram cinco ou seis casebres, mas numa certa manhã viram-nos sendo ocupados pelos homens sem língua, vagabundos por vocação, e preguiçosos. Buscaram desalojá-los com pedradas, mas eles resistiram. Boidi olhava todas as noites para a garganta para ver se o tempo melhorava. Cada um inventara, afinal, o próprio passatempo, e já estávamos acostumados àquela comida insossa e, sobretudo, não conseguíamos mais ficar sem burq. Consolava-nos o facto de que o reino estava a dois passos de distância, ou seja, a um ano de marcha, se tudo corresse bem, mas já não tínhamos o dever de descobrir nada, nem de encontrar caminho algum, devíamos apenas esperar que os eunucos nos guiassem na direção correta. Estávamos, como posso dizer, bem-aventuradamente extenuados e felizmente entediados. Cada um de nós, com exceção de Colandrino, já estava com uma certa idade; eu passava dos cinquenta, e, nessa idade, as pessoas morrem, se é que já não morreram há muito tempo; agradecemos ao Senhor, e se vê que aquele ar nos fazia bem, porque parecíamos todos mais jovens, eu aparentava dez anos a menos de quando chegara. Nosso corpo era vigoroso, embora nosso ânimo estivesse debilitado, se assim posso dizer. Estávamos nos identificando totalmente com a gente de Pndapetzim e havíamos começado inclusive a nos apaixonar pelos seus debates teológicos.
Qual era a vossa posição?
Com efeito, tudo começara porque o Poeta sentia o sangue ferver-lhe nas veias e não aguentava mais ficar sem mulher. E pensar que até o pobre Colandrino conseguia aguentar, mas ele era um anjo na terra, como a sua pobre irmã. A prova de que até os nossos olhos estavam se acostumando àquele lugar, foi quando o Poeta começou a ter as suas fantasias com uma panota. Fora atraído pelos seus ouvidos fluentes, excitava-o a brancura de sua pele, considerava-a delgada e de lábios bem definidos. Vira dois panotos copulando no campo e imaginava que a experiência devia ser deliciosa: ambos se encobriam, um ao outro, com suas orelhas, e faziam amor como se estivessem dentro de uma concha, ou como se fossem aquela carne triturada envolvida por folhas de parreira, que comeram na Arménia. Deve ser esplêndido, disse. Depois, tendo reações negativas da panota, da qual tentara se aproximar, se enrabichara por uma mulher dos blemyos.

O único que gostaria de mostrar o seu desapontamento por aquela nossa familiaridade com os blemyos era, evidentemente, Gavagai, mas agora o fiel sciápode nos adorava e o que fazíamos não podia ser senão bem-feito. Um pouco por ingenuidade, um pouco por amor, convencera-se de que íamos aos ritos dos blemyos para ensinar-lhes que Jesus era filho adotivo de Deus.

A igreja dos blemyos ficava ao rés-do-chão, uma única fachada com duas colunas e um tímpano, e o resto no fundo da rocha. O padre chamava os fiéis para a assembleia, batendo com um martelete numa lâmina de pedra envolvida por cordas, que produzia um som de sino quebrado. Dentro, via-se apenas o altar iluminado por lâmpadas que, pelo cheiro, queimavam não óleo, mas manteiga, talvez de leite de cabra. Não havia crucifixos nem outras imagens porque, como explicava o blemyo que nos guiava, eles julgavam (os únicos que pensavam bem) que o Verbo não se fez carne, e que portanto não podiam adorar a imagem de uma imagem. Tampouco, pelas mesmas razões, podiam levar a sério a eucaristia, e, portanto, a missa deles não conhecia a consagração das espécies. Não podiam sequer ler o Evangelho, porque era a história de um engano.

Um dos fiéis pôs-se de pé e recordou que talvez o Jesus da Paixão não fosse propriamente um fantasma, razão pela qual não se levou a sério os apóstolos, mas era uma potência superior emanada do pai, um Éon, que entrara no corpo já existente de algum marceneiro da Galileia. Outro fez notar que talvez, como sugeriam alguns, Maria tinha realmente dado à luz um ser humano, mas o Filho, que não podia se fazer carne, passara através dela como água por um tubo, ou talvez entrara ali por um ouvido. Houve então um coro de protestos, e muitos gritaram: “Pauliciano! Bogomilo!”, para dizer que o orador proferiu uma doutrina herética — e com efeito foi expulso do templo. Um terceiro arriscou que aquele que sofrera na Cruz fora o Cireneu, que substituíra Jesus no último momento, mas os outros mostraram-lhe que, para substituir alguém, devia haver alguém.

Enquanto Baudolino e os outros cristãos dedicavam-se a tais experiências, Solomon interrogava um a um todos os habitantes de Pndapetzim para saber algo das tribos perdidas. A alusão de Gavagai aos rabinos, no primeiro dia, dava-lhe a entender que estava na pista certa. Mas, seja porque os monstros das diferentes raças nada sabiam de verdade, seja porque o argumento era tabu, Solomon não conseguia tirar o coelho da toca. Finalmente, um dos eunucos disse-lhe que sim, a tradição afirmava que, através do reino do Preste João, haviam passado as comunidades dos judeus, muitos séculos antes, mas depois decidiram seguir viagem, talvez por medo de que a ameaçada invasão dos hunos brancos os obrigasse a enfrentar uma nova diáspora, e só Deus sabia por onde andavam. Solomon achou que o eunuco mentia, e continuou a esperar o momento no qual iriam para o reino, onde certamente encontraria os seus correlegionários.

Às vezes Gavagai buscava convertê-los para o pensamento certo. O Pai é o que de mais perfeito e distante de nós pode existir no Universo, não é? E assim como poderia ter gerado um Filho? Os homens geram filhos para continuarem através da prole e nela viver num tempo em que não estarão mais vivos, porque serão arrebatados pela morte. Mas um Deus que precisa gerar um filho não seria mais perfeito desde o início dos séculos. E se o Filho tivesse existido sempre junto com o Pai, sendo da mesma divina substância ou natureza como se queira (aqui Gavagai confundia-se, citando termos gregos como ousia, hyposthasis, physis e hyposopon, que nem mesmo Baudolino conseguia decifrar), teríamos o facto inacreditável de que um Deus, por definição não gerado, foi desde o início dos séculos gerado. Assim, pois, o Verbo, que o Pai gera para que se ocupe da redenção do género humano, não é da mesma substância do Pai: é gerado depois, certamente antes do mundo e superior a qualquer outra criatura, mas, ao mesmo tempo, inferior ao Pai. O Cristo não é potência de Deus, insistia Gavagai, não é certamente uma potência qualquer como o gafanhoto, ao contrário, é uma grande potência, mas é primogénito e não ingénito. E depois pensou: tenho cá as minhas dúvidas de que Baudolino me esteja a contar balelas, mas um semibárbaro como ele, que viveu entre alamanios e milaneses, que mal distinguem a Santíssima Trindade de São Carlos Magno, não poderia saber essas coisas, se não as tivesse ouvido lá. Ou será que ouviu algures? Se nós, eunucos, pudermos contar com o apoio e com a autoridade dos Magos, aumentará o nosso poder. Aumenta e se fortalece aqui, mas também poderá estender-se... algures.”

"No reino do Padre?”, perguntou o Poeta.
“Se chegardes até lá, devereis ser reconhecidos como legítimos senhores. Para chegardes até lá, precisareis de nós, e nós precisaremos de vós aqui. Somos uma estranha raça, não como os monstros daqui, que se reproduzem, segundo as miseráveis leis da carne. Tornamo-nos eunucos porque outros eunucos nos escolheram, e assim nos fizeram. No que muitos reputam uma desventura, nós nos sentimos unidos numa única família, digo nós com todos os outros eunucos que governam algures, sabemos que existem outros muitíssimo poderosos até no longínquo Ocidente, para não falar de muitos outros reinos da Índia e da África."
Com a permissão dos eunucos, Baudolino ia frequentemente visitar o Diácono. Haviam-se tornado amigos; Baudolino contava-lhe sobre a destruição de Milão, a fundação de Alexandria, como se escalam as muralhas ou o que é preciso fazer para incendiar as calandras e os bate-estacas dos sitiantes. Ouvindo tais histórias, Baudolino diria que os olhos do jovem Diácono brilhavam, mesmo que o seu rosto continuasse velado. Depois, Baudolino perguntou ao Diácono a respeito das controvérsias teológicas que se espalhavam pela sua província, e pareceu-lhe que o Diácono, ao responder, sorrisse com melancolia. 
“O reino do Preste João”, disse, “é muito antigo e nele encontram abrigo todas as seitas, que no correr dos séculos foram excluídas do mundo dos cristãos do Ocidente.” 
E ficava claro que, também para ele, Bizâncio, de que pouco sabia, era o Extremo Ocidente. 
O Preste João não quisera tirar de nenhum desses exilados a própria fé, e a pregação de muitos seduziu as várias raças que habitam o reino. Mas, afinal, que importa saber como é realmente a Santíssima Trindade? Basta que essa gente siga os preceitos do Evangelho, e não irão ao Inferno somente porque pensam que o Espírito procede apenas do Pai. É gente boa, como terás observado, e aperta-me o coração saber que um dia todos talvez deverão morrer, servindo como baluarte para os hunos brancos. Observa, enquanto meu Pai estiver vivo, governarei um reino de moribundos. Mas talvez eu morra primeiro.” 
“O que estás dizendo, senhor? Pela voz e pela tua própria dignidade de padre hereditário, sei que não és velho.” O Diácono balançou a cabeça. Baudolino, então, para consolá-lo, tentou fazer com que risse, contando-lhe as suas e outras façanhas de estudante em Paris, mas percebeu que infundia no coração daquele homem desejos furiosos, e a raiva de não poder jamais tirá-los dali. Assim, Baudolino mostrava-se como era e como fora, esquecendo que era um dos Magos. Mas o Diácono também não reparava mais nisso, e dava a entender que jamais acreditou naqueles onze Magos, e repetia apenas a lição sugerida pelos eunucos."
Certo dia Baudolino, diante de seu evidente desconforto por se sentir excluído das felicidades que a juventude a todos consente, tentou dizer-lhe que podemos ter o coração cheio de amor mesmo por uma amada inatingível, e contou-lhe a respeito de sua paixão por uma dama nobilíssima e das cartas que lhe escrevera. O Diácono interrogava com voz excitada, e depois explodia num lamento de animal ferido:
“Um dia farei, um dia serei...”, murmurou o Diácono. “Quem garante? Vês, Baudolino, meu sofrimento é profundo, Deus me perdoe por essa dúvida que me aflige, a de que o reino não exista. Quem me falou a respeito? Os eunucos, desde que eu era pequeno. De onde voltam os mensageiros que eles, eu disse eles, enviam para meu pai? Deles, dos eunucos. Esses mensageiros partiram realmente? Voltaram realmente? Acaso existiram?"
“Não senhor, não meu amigo”, consolava-o Baudolino, “o reino de teu pai existe, porque ouvi falar dele não pelos eunucos, mas por pessoas que acreditavam nele. A fé torna verdadeiras as coisas; os meus concidadãos acreditaram numa cidade nova a ponto de incutir medo a um grande imperador, e a cidade surgiu porque eles queriam acreditar nisso. O reino do Preste João é verdadeiro porque eu e meus companheiros consagramos dois terços de nossa vida a buscá-lo.”

“Quem sabe”, dizia o Diácono, “mas mesmo que exista, não o verei.”

“Agora basta”, disse-lhe um dia Baudolino. “Temes que o reino não exista e, enquanto esperas vê-lo, te consomes num tédio sem fim, que acabará por te matar. No fundo não deves nada aos eunucos ou ao Padre. Eles te escolheram, eras uma criança e não podias escolher. Queres uma vida de aventura e de glória? Parte, monta num de nossos cavalos, alcança as terras da Palestina onde cristãos valorosos combatem contra os mouros. Torna-te o herói que querias ser, os castelos da Terra Santa estão cheios de princesas que dariam a vida por um sorriso teu.”
Talvez, após a morte do Padre, um deles tomará meu lugar, e ninguém poderá dizer que não sou eu, porque aqui ninguém nunca viu o meu rosto, e no reino me viram apenas quando eu ainda bebia o leite de minha mãe. Eis por que, Baudolino, aceito a morte por tédio, de que estou entranhado até os ossos pela morte. Jamais serei cavaleiro, jamais serei amante. Tu também agora, e sem perceber, deste três passos para trás. E, se notaste, Praxeas, quando fala comigo, fica a pelo menos cinco passos para trás. Vê, os únicos que ousam estar junto de mim são esses dois eunucos velados, jovens como eu, flagelados pelo mesmo mal, e que podem tocar os objetos que eu toquei, sem perder nada com isso. Deixa que eu me cubra de novo, e talvez não me considerarás novamente indigno da tua compaixão, ou ao menos da tua amizade.

Eu buscava palavras de conforto, senhor Nicetas, mas não conseguia encontrá-las. Não dizia palavra. Depois disse-lhe que talvez, dentre todos os cavaleiros que iam assaltar uma cidade, ele era o verdadeiro herói, que consumia a sua sorte em silêncio e dignidade. Agradeceu-me, e naquele mesmo dia pediu para que eu fosse embora. Mas eu já me afeiçoara àquele infeliz, e comecei a visitá-lo quotidianamente, contava-lhe minhas leituras de outrora, as discussões ouvidas na corte, e lhe descrevia os lugares que vi, de Ratisbona a Paris, de Veneza a Bizâncio, e depois Icónio e a Arménia, e os povos que havíamos encontrado em nossa viagem. Estava condenado a morrer sem jamais ter visto nada senão dos lóculos de Pndapetzim, e eu procurava fazê-lo viver através de minhas histórias.

Quem sabe, até, cheguei a inventar, falei de cidades que jamais visitei, de batalhas em que jamais combati, de princesas que jamais possuí. Contava-lhe as maravilhas das terras onde o sol morre. Fiz com que usufruísse ocasos na Propôntide, reflexos de esmeralda na laguna veneziana, um vale na Hibérnia, onde sete igrejas brancas se espalham às margens de um lago silencioso, entre rebanhos de ovelhas igualmente brancas, contei como os Alpes Piréneos estão sempre cobertos por uma delicada substância branca, que no verão se dissolve em majestosas cataratas e se perde por rios e riachos, ao longo de declives exuberantes de castanheiros, falei dos desertos de sal que se espraiam nas costas da Apúlia, e o fiz estremecer, evocando mares nos quais jamais naveguei, onde saltavam peixes tão grandes quanto um vitelo, tão mansos que os homens podiam cavalgá-los, narrei as viagens de São Brandão às Ilhas Afortunadas e como um dia, acreditando ter aproado numa terra no meio do mar, descera no dorso de uma baleia, que é um peixe tão grande quanto uma montanha, capaz de engolir um navio inteiro, mas tive de explicar-lhe o que eram navios, peixes de madeira, que sulcavam as águas movendo asas brancas, listei-lhe os animais prodigiosos de minhas terras, o cervo, que tem dois grandes chifres em forma de cruz, a cegonha, que voa de terra em terra, e cuida dos próprios pais senis, carregando-os às costas pelo céu, a joaninha, que se parece com um pequeno cogumelo, vermelha e pontilhada de manchas lácteas, a lagartixa, que é como um crocodilo, mas tão pequena que passa por baixo das portas, o cuco, que põe seus ovos nos ninhos dos outros pássaros, a coruja, de olhos redondos, que parecem duas lâmpadas em plena noite, e vive tomando o azeite das candeias nas igrejas, o ouriço, animal coberto de aguilhões, que chupa o leite das vacas, a ostra, cofre vivo, que produz às vezes uma beleza morta, mas de inestimável valor, o rouxinol, que passa a noite cantando e vive em adoração da rosa, a lagosta, monstro lorigado de um vermelho chamejante, que anda para trás para fugir à caça de quem é ávido de suas carnes, a enguia, assustadora serpente aquática de sabor suculento e refinado, a gaivota, que sobrevoa as águas como se fosse um anjo do Senhor, mas que emite gritos estrídulos como um demónio, o melro, pássaro negro de bico amarelo que fala como nós, sicofanta que conta o que lhe confiou seu dono, o cisne, que sulca, majestoso, as águas de um lago e canta ao morrer, uma doce melodia, a doninha, sinuosa como uma menina, o falcão, que voa a pique sobre a sua presa e a leva até ao cavaleiro que o criou. Imaginei o esplendor de jóias que ele nunca viu — nem eu com ele —, as manchas purpúreas e lácteas da murra, os veios violáceos e brancos de algumas pedras egípcias, a brancura do oricalco, a transparência do cristal, o fulgor do diamante, depois celebrei o esplendor do ouro, metal delicado que se pode plasmar em folhas finas, o chiado de lâminas incandescentes, quando são imersas dentro d’água para serem temperadas, que inimagináveis relicários se pode ver nos tesouros das grandes abadias, como são altas e pontudas as torres de nossas igrejas, como são altas e retas as colunas do Hipódromo de Constantinopla, que livros lêem os judeus, cobertos de sinais que parecem insetos, e que sons produzem quando os lêem, como um grande rei cristão recebera de um califa um galo de ferro, que cantava apenas quando o sol nascia, a esfera que roda, arrotando vapor, como queimam os espelhos de Arquimedes, como é assustador ver de noite um moinho de vento, e depois contei-lhe sobre o Greal, dos cavaleiros que ainda estavam a procurá-lo na Bretanha, e de nós que o devolveríamos a seu pai tão logo tivéssemos encontrado o infame Zósimo. Vendo que estes esplendores o fascinavam, mas que a sua inacessibilidade o entristecia, pensei que seria bom, para convencê-lo de que o seu não era o pior tormento, contar-lhe do suplício de Andrónico com tantas minúcias que superavam de longe o que se lhe fizera, dos massacres de Crema, dos prisioneiros com a mão, a orelha e o nariz cortados, fiz brilhar diante de seus olhos doenças inenarráveis, diante das quais a lepra era um mal menor, descrevia-lhe como horrivelmente horríveis a escrófula, a erisipela, a dança de São Vito, o fogo de Santo António, a mordida da tarântula, a sarna, que faz a coçar toda a pele, a ação pestilenta da áspide, o suplício de Santa Ágata, de quem arrancaram os seios.

“Talvez, mas pelo pouco que viveu ainda, eu o tornei feliz. Além disso, falo desses nossos colóquios como se tivessem acontecido todos num só dia, mas nesse meio-tempo acendeu-se também dentro de mim uma nova chama, e eu vivia num estado de exaltação contínua, que procurava transmitir-lhe, dando-lhe sob falsas aparências parte do meu bem. Eu encontrara Hipácia.”

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