terça-feira, 17 de setembro de 2019

Na rota do Endovélico

Ara votiva, que se encontra no Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa

O Deus Endovélico é um deus protetor da saúde, da terra e dos animais. Das origens, como quase sempre, pouco se pode falar com segurança. O que se pode fazer é especulação através das etimologias, e neste aspeto, cada escola sua sentença. A consideração de Endovélico como lusitano ou celta, ou não-celta, provoca polémica entre os pesquisadores, como a própria caracterização do povo lusitano.

Depois de pernoitarmos na Península de Tróia, concelho de Grândola, lá seguimos a estrada para Redondo e Vila Viçosa, à procura de um santuário proto-histórico de penedos escarpados que se encontra num  local chamado Rocha da Mina, Alandroal. É um lugar mágico de forte magnetismo. Os povos célticos, da segunda idade do ferro, parece terem sido atraídos por este local. Ora, este santuário encontra-se junto à Ribeira de Lucefecit, onde os Lusitanos adoravam o deus Endovélico

Os vestígios encontrados vão desde o tempo pré-romano até à idade média, com a construção de igrejas, algumas delas aproveitando estruturas de cultos pagãos. Existem várias igrejas, como a da Fonte Santa, São Miguel da Mota e o Santuário da Nossa Senhora da Boa Nova, esta, ainda local de peregrinação. Subindo os degraus do santuário da Rocha da Mina, deparamos de frente o ‘Sol Nascente’. As escadas e os pavimentos talhados na rocha são elementos recorrentes num número relativamente elevado de santuários pré-romanos, alguns dos quais romanizados, e são interpretados frequentemente como ‘altares de sacrifício’. Ir a este santuário é mais do que uma experiência visual, é uma experiência sensorial e poder-se-ia mesmo dizer, apesar do esoterismo implícito, que é uma experiência mística. O caminho em direcção ao santuário, por entre o bosque denso, mesmo em dias de sol parece ter uma escuridão própria, que acentua o som do curso da Ribeira de Lucefecit. Ainda a alguma distância do santuário, por entre a folhagem dos altos eucaliptos, começa-se a visualizar um elevadíssimo afloramento natural de xisto, uma visão imponente e poderosa que de imediato nos provoca uma sensação de respeito e solenidade. Apesar de se tratar de um afloramento natural, ao caminhar em direcção ao mesmo consegue-se ter a percepção de se estar perante alguma forma de templo, tal a atmosfera criada pelo afloramento, que parece engolir o sol em grande parte do dia, ficando os seus raios a reluzir nos contornos do imponente templo natural, em concordância com o carácter tanto ctónico como luminoso de Endovélico.



O Santuário da Rocha da Mina, mais tarde, foi adaptado pelos próprios romanos, que assimilaram o Endovélico a Esculápio ou Serápis. Várias inscrições apontam para a existência da função oracular no templo de Endovélico, tendo uma delas a expressão ex imperato averno que Leite de Vasconcelos traduziu: “segundo a determinação que emanou de baixo”. Sugere, portanto, que, tal como acontecia no templo de Apolo em Delfos, uns vapores ou algo semelhante emanava do interior da terra com o poder oracular, que a pitonisa interpretava sentada numa trípode de bronze, que estava sobre uma greta do solo de onde emanavam os tais vapores embriagantes. É bem patente o estado modificado de consciência que a pitonisa atinha de atingir para pronunciar os oráculos.Regista-se que perto de Ávila existe o Santuário do Castro de Ulaca dedicado a Vaelicus, localizado no limite do que era a antiga província romana da Lusitânia.  também foi reverenciado entre os Vetones, naturalmente a que davam o nome de Endovelicus.

Para os Celtas, ou para os povos aparentados como devem ter sido os Lusitanos, os templos e santuários divinos encontram-se na própria Natureza, e não em construções por mão humana. Ao contrário do santuário romano, de génese posterior, no outeiro de São Miguel da Mota, já romanizado e como tal tendo sido um reduto de colunas de mármore e estátuas representativas de Endovélico, o Santuário de Rocha da Mina deverá ter sido o santuário primitivo a Endovélico, provavelmente Lusitano. Apesar do Santuário de São Miguel da Mota ser muito importante devido ao número de estelas com dedicações a Endovélico em latim e estátuas representativas, o carácter primitivo de Rocha da Mina também mereceu a atenção por parte de eminentes arqueólogos como Leite de Vasconcelos, e mais recentemente por arqueólogos contemporâneos como Manuel Calado ou Maria João Correia Santos, além de estudos mais ao nível do carácter esotérico e iniciático do santuário por parte de Paulo Alexandre Loução.


No regresso a Tróia, evocámos este baixo-relevo do século III, atualmente no Museu Nacional de Arqueologia de Lisboa, mas originário de Tróia, representando uma alegoria mitraica muito rica em símbolos: no canto superior direito da imagem vemos Mitra (o ‘Filho’) com um barrete frígio, e a seu lado Hélios (Deus-Sol – o ‘Pai’). Seguram ambos um pequeno vaso com a bebida ritual – o vinho. Em baixo uma serpente enrolada bebe o ‘vinho ritual’. Do lado esquerdo o pão celeste. Esta imagem que não tem a ver com o Endovélico, foi uma coincidência entre o Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa, e a passagem por Tróia, antes de zarparmos para o interior na rota do Endovélico. É um exemplar do culto mitraico, cuja autoria material deve ser de origem romana. 

Deus Mithra é representado muitas vezes sacrificando um touro, com o gorro frígio e uma serpente associada. Esta divindade indo-iraniana, aparece mencionada como deus protetor dos juramentos, num tratado do século XV a.C. realizado entre os hititas e o reinado dos Mitani. Tornou-se muito importante na Pérsia antiga vindo a ganhar posteriormente um lugar de destaque no Império Romano. Tendo nascido a 25 de dezembro, está diretamente relacionado com o ciclo solar da mesma forma que o misterioso Abraxas gnóstico.Dezembro é o mês em que se marca o Solstício de Inverno, que, de algum modo, se comemorava em Roma com as Saturnália, um festival em honra de Saturno. Celebrava-se no dia 17 de dezembro, mas ao longo dos tempos, foi estendida a uma semana completa, terminando a 23 de dezembro. Também o deus Mitra, cujo nascimento era evocado a 25 de dezembro, tal como virá a acontecer com o Menino Jesus, tinha uma forte relação com o Sol. Este deus de origem oriental teve grande adesão junto dos soldados romanos, os legionários, e também entre os funcionários administrativos e comerciantes. No Ocidente, o seu culto acabou por confundir-se com o do Sol Invictus, ou Sol Invencível, pois verifica-se, em finais do século III, o sincretismo entre a religião de Mitra e outros cultos solares de procedência oriental.

Esta finisterra da Europa, que é Portugal, não foi por estar na extremidade do continente europeu que deixou os seus povos indígenas a salvo de sucessivas invasões a partir de há pelo menos dois mil anos. Antes dos romanos, que trouxeram para cá outros cultos, muitos povos deixaram por cá os seus vestígios arqueológicos. A partir de meados do segundo milénio e inícios do primeiro milénio a.C. muitos outros povos assentaram neste território. Quer dizer, se os povos de várias tribos dispersas a que se convencionou chamar “celtas” (englobando os povos de língua indo-europeia onde estão incluídos germanos e lusitanos) assentaram predominantemente no norte, os povos mediterrânicos - fenícios, cartagineses, gregos, romanos, anatólios e judeus sefarditas -  ao longo de pelo menos o mesmo período dos primeiros fizeram-no no sul, de línguas predominantemente de origem semita.

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