terça-feira, 17 de setembro de 2019

O que dizem os Lusitanos nas pedras?


No interior centro e sul de Portugal, encontramos em locais com topografias sensivelmente semelhantes umas enigmáticas pedras esculpidas, parecidas com tinas de imersão dedicadas a misteriosos cultos do sagrado, sendo uma constante os carvalhos por perto. 
A escolha do local nunca é feita ao acaso, mas fruto de critérios específicos previamente estabelecidos. A topografia do local desempenha aqui um importante papel.

A prática desses cultos e mistérios da Natureza dos povos lusitanos estava ainda ativa quando cá chegaram os romanos. Um lugar sagrado revela-se por si próprio e, mais do que as características físicas que este possa apresentar – tais como a sua situação topográfica, a eventual presença de eminentes afloramentos rochosos, nascentes ou cursos de água, determinadas espécies vegetais que possam estar aí localizadas –, é o impacto emocional que a dada altura desperta nos indivíduos que assinala a sacralidade. Por conseguinte, um lugar sagrado nunca é escolhido: ele revela-se por si mesmo. 

É o caso do Santuário de Panóias, no concelho de Vila Real, um lugar sagrado onde se deviam realizar rituais muito antes da chegada dos romanos. O santuário é um recinto onde se encontram três grandes fragas, com cavidades de vários tamanhos, nas quais foram também construídas escadas de acesso. No penedo situado na entrada do recinto foram gravadas várias inscrições - três em latim e uma em grego, descrevendo um ritual de iniciação com uma ordem e um itinerário muito precisos. O sacrifício de animais, nunca humanas, começava pela sangria e depois a incineração. Depois a carne era consumida e revelado o nome da autoridade máxima dos infernos. Por fim, a purificação. 
No segundo penedo do recinto a iniciação repetia-se num grau mais elevado. E no terceiro, mais elevado ainda, onde acontecia o ato principal da iniciação – a morte ritual, o enterro e a ressurreição. Neste existe um orifício que serviria para colocar uma barra de ferro, ou de bronze, apoiado em duas escoras, onde se prendiam os animais a sacrificar. 


Calpurnius Rufinus, senador, introduziu este culto onde já haveria um culto nativo. Foi provavelmente um alto funcionário do governo provincial romano. A sua língua original era o grego, mas na inscrição o uso da palavra “mystaria” em vez de “mysteria” demonstra o uso de um dialeto dórico ou pseudo-dórico. Os dados sobre a sua origem permitem supor com grande probabilidade que seja de Perge - Panfilia, Anatólia, cidade de tradição dórica e um dos centros do culto de Serápis. 

Existem, portanto, em Panóias testemunhos de um rito de iniciação dos mistérios das divindades infernais. As prescrições identificam-se como partes de uma lei sagrada, mas aplicadas a um local concreto e preciso.  Os sacerdotes, com vestes brancas e coroas feitas de vergonteas de louro, carvalho, azevinho, hera, parra, conforme o deus a que se destinava o sacrifício, traziam nas mãos a pátera, uma espécie de prato redondo de metal. Depois, vinham os victimarii, munidos da securis, machadinha utilizada no esquartejamento das vítimas. 

Quando tudo estava preparado, um arauto impunha silêncio e os profanos abandonavam o local sagrado. Os sacerdotes aspergiam a vítima com a mola. Os presentes bebiam um pouco de vinho, com que também faziam a libação derramando um pouco na cabeça do animal. Acendia-se a fogueira no respectivo lacus e queimava-se incenso. Aí, os Popae, nus da cintura para cima, conduziam a vítima ao altar, onde era ferida de morte com um machado pelos Cultrarii, que lhe cortavam a garganta. O sangue era recolhido na pátera e derramado nos laciculi. O animal era colocado na mesa anclabris, onde era esfolado e esquartejado. De acordo com uma epígrafe há décadas destruída, queimavam-se as vísceras da vítima em honra dos deuses e a outra carne era grelhada e comida pelos presentes, em confraternização com as divindades.

Cerca de vinte metros, do lado do nascente, conservam-se ainda, numa pequena rocha, os restos de um altar pré-romano constituído por diversas covinhas ligadas entre si por sulcos, onde os Lapiteas teriam prestado culto aos seus deuses, como a Reva Marandiguius, divindade que morava nas alturas do Marão, e, hipoteticamente, às serpentes e aos javalis. Segue-se, na direção norte, por uma escada escavada na rocha, e depara-se com outro altar dos Lapiteas, constituído por covinha e sulco.

Mais a norte ainda se encontra a terceira pedra, com as escadas e corrimão milenários. No alto, em larga plataforma, abriram-se a pico "sepulturas" rectangulares e os alicerces de um terceiro templo, que também desapareceu. Aqui realizava-se a incubafio, onde os mysfae "morriam" simbolicamente, dormindo toda a noite, sonhavam com as divindades que lhes transmitiam os seus oráculos, e ressuscitavam para uma vida nova.

Com a designação popular – Penedo das Pias dos Mouros – encontramos em Garfe, freguesia da Póvoa de Lanhoso, um santuário rupestre num vale com carvalhos frondosos. Não podemos ignorar a denominada “estrada da Serra do Carvalho”, entre Braga e a Póvoa de Lanhoso, por onde se passa para ir e vir do Gerês, e que antigamente (três a quatro décadas) o paralelo polido dava azo a muitos acidentados rodoviários que iam parar à Urgência do Hospital de São Marcos em Braga. 


Implantado num afloramento granítico, de forma tendencialmente circular e superfície arredondada, exibe no topo três tanques escavados: o maior em forma de T, apresenta uma orientação de E-O, numa clara alusão ao nascimento-morte; o segundo, de menor dimensão e menos profundo, ostenta uma forma retangular, e está paralelo ao primeiro; o terceiro, e último, também retangular, foi construído perpendicularmente aos dois primeiros.

A foto a seguir, mostra em Antas, Penedono, dois sarcófagos, um deles esculpido com forma humana. Mas poderá nem ter sido um sarcófago, mas sim uma “tina” ou “pia”


E ainda a Necrópole de São Gens, situada na freguesia de Fornotelheiro, Celorico da Beira, outro lugar misterioso com sarcófagos ou pias, que inclui também na paisagem o curioso “Penedo do Sino”. Como em todos os outros lugares, aqui também existem orifícios circulares insculpidos na rocha.


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