sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Dos códigos, sinais e linguagem



O termo “código” deve ser dos mais abrangentes que há. Aplica-se de uma forma tão ampla que é difícil em pouco tempo percorrê-los a todos. É provável que, desde o início do comportamento humano reconhecível, a codificação tenha sido fundamental a todos os grupos humanos, tal como o é agora. Viajando para trás no tempo, vamos até ao primeiro homo sapiens, altura em que a nossa espécie deve ter começado a falar. Por estimativa digamos que foi há 350 mil anos.

É claro que enquanto crianças, antes de começarmos a falar, já conseguimos descodificar algumas coisas que nos rodeiam. Mas convenhamos que é muito rudimentar. Aprender uma língua é um processo codificado altamente complexo, que envolve não apenas o domínio de um conjunto de sons, mas também as regras que os regem, a par de todos os gestos, entoações e expressões faciais.

Desde o início dos tempos, os humanos desenvolveram a capacidade de compreender o significado dos padrões naturais que a natureza lhes apresentava. Um dos primeiros exemplos é o da caça a animais selvagens. O caçador tinha de saber interpretar diversos sinais referentes aos animais, desde os seus hábitos até às pegadas. Rastos, pegadas, resíduos, cheiros – são todos índices de alguma coisa que por lá passou deixando suas marcas.


Em todos os tempos, grupos humanos constituídos em sociedade sempre recorreram a outros meios de comunicação diversos da linguagem verbal, desde os desenhos nas grutas de Lascaux (As pinturas rupestres de Lascaux, França, têm cerca de 17.000 anos), aos rituais, danças, músicas, cerimoniais, jogos… Nós Petróglifos primitivos encontramos sinais de vários tipos geométricos e pictogramas de figuras humanas e de animais, a que chamamos arte rupestre. Manifestação artística em pinturas, esculturas, poética, cenografia etc. E, quando consideramos a linguagem verbal escrita, esta também não conheceu apenas o modo de codificação alfabética criado e estabelecido no Ocidente a partir dos gregos. Há outras formas de codificação escrita, diferentes da linguagem alfabeticamente articulada, tais como hieróglifos, pictogramas, ideogramas, formas estas que se aparentam com o desenho.


 A dada altura da sua evolução há cerca de 5.500 anos, desenvolveram a escrita e criaram simbologias, dando origem às primeiras cifras. A escrita suméria (escrita cuneiforme); pouco depois no Egito a escrita hieroglífica; e depois o alfabeto. Cerca de 600 a.C. a escrita pictográfica da América Central ligada aos Zapotecas.

Portanto, desde o começo dos tempos que temos de saber descodificar o nosso ambiente físico para sobrevivermos. A sobrevivência implica decifrar sinais como, por exemplo, rastos de animais, saber ler a paisagem e o clima, e por aí fora até aos dias de hoje, com sinais de trânsito, saídas de emergência, cartazes publicitários… enfim, até sinais secretos característicos de muitos grupos humanos.

O nosso estar-no-mundo, como indivíduos sociais que somos, é mediado por uma rede intrincada e plural de linguagem, isto é, comunicamos também através da leitura e/ou produção de várias formas: imagens, gráficos, sinais, setas, números, luzes... Através de objetos, sons musicais, gestos, expressões, cheiro e tato, através do olhar, do sentir e do apalpar. Somos uma espécie animal tão complexa quanto são complexas e plurais as linguagens que nos constituem como seres simbólicos, isto é, seres de linguagem. Em termos mais latos, o pensamento é entendido como um processo simbólico. Não se trata apenas de exteriorizar o pensamento através de uma língua falada, mas também de analisar os elementos e os processos simbólicos reais e possíveis.

Santo Agostinho estudou o signo na esteira do que já haviam feito os estoicos. E enquadrou-o em dois planos: o semântico e o comunicacional. Ao apresentar-se diretamente aos sentidos, o signo oferece mais que a sua presença, algo que não passa pelos sentidos.

Hoje a semiótica é uma ciência com os mesmos pergaminhos das outras ciências desde Ferdinand de Saussure e Charles Sanders Peirce. Mas enquanto em Saussure a semiologia é a ciência geral dos signos no contexto da psicologia social e dos signos linguísticos, em Peirce tudo é integrável no espaço ilimitado da semiosis desde que haja um intérprete. Em Peirce, o signo é fundamentalmente um processo de mediação, e abre, portanto, para uma dimensão de infinitude. Semiótica, ciência de toda e qualquer linguagem.

Há inegavelmente diferenças entre a semiologia enquanto tradição da semiótica europeia contemporânea e a semiótica enquanto tradição da semiótica anglo-saxónica contemporânea. Umberto Eco fala mesmo de teóricos da primeira geração e teóricos da segunda geração: "Os teóricos da primeira geração partem de Saussure e defendem uma linguística da frase e do código. Os teóricos da segunda geração partem de Peirce e caracterizam-se pela capacidade de articularem um estudo da língua como sistema estruturado que precede as atualizações discursivas e um estudo dos discursos e dos textos como produtos de uma língua já falada". As diferenças objetivas entre semiologia e semiótica assentam em duas tradições diferentes: a tradição linguística e a tradição filosófica.

Em síntese: existe uma linguagem verbal, linguagem de sons que veiculam conceitos e que se articulam no aparelho fonador, sons estes que, no Ocidente, receberam uma tradução visual alfabética (linguagem escrita), mas existe simultaneamente uma enorme variedade de outras linguagens que também se constituem em sistemas sociais e históricos de representação do mundo.
Portanto, quando dizemos linguagem, queremos nos referir a uma gama incrivelmente intrincada de formas sociais de comunicação e de significação que inclui a linguagem verbal articulada, mas absorve também, inclusive, a linguagem dos surdos-mudos, o sistema codificado da moda, da culinária e tantos outros. Enfim: todos os sistemas de produção de sentido através de códigos. Nessa medida, o termo linguagem se estende aos sistemas aparentemente mais inumanos como as linguagens binárias de que as máquinas se utilizam para se comunicar entre si e com o homem, até tudo aquilo que, na natureza, fala ao homem e é sentido como linguagem.

 A vida está necessariamente ligada a uma linguagem, a uma ordenação obtida a partir de um compartimento armazenador da informação: o ADN. Desde a descoberta da estrutura química do código genético, nos anos 50, aquilo que chamamos de vida não é senão uma espécie de linguagem, isto é, a própria noção de vida depende da existência de informação no sistema biológico. Sem informação não há mensagem, não há plano nem reprodução, não há mecanismo de controle e comando. Portanto, os dois ingredientes fundamentais da vida são: energia (que torna possíveis os processos dinâmicos) e informação (que comanda, controla, coordena, reproduz e, eventualmente, modifica e adapta o uso da energia). Sem a linguagem seria impossível a vida, pelo menos como a concebemos nos dias de hoje. Nessa medida, não apenas a vida é uma espécie de linguagem, mas também todos os sistemas e formas de linguagem tendem a se comportar como sistemas vivos, ou seja, eles reproduzem, se readaptam, se transformam e se regeneram como as coisas vivas.

Outro tópico a considerar é o de fenómeno. Entende-se por fenómeno qualquer coisa que esteja de algum modo e em qualquer sentido presente à mente, isto é, qualquer coisa que apareça, seja ela externa, seja ela interna ou visceral, uma expectativa ou desejo, quer pertença a um sonho, ou uma ideia geral e abstrata da ciência. A Fenomenologia seria, segundo Peirce, a descrição e análise das experiências que estão em aberto para todo o homem, cada dia e hora, em cada canto e esquina do nosso quotidiano. Fenómeno é tudo aquilo que aparece à mente, corresponda a algo real ou não. Qualidade de sentir é o modo mais imediato, mas já mediatizado. Sentimento é, pois, um quase-signo do mundo: nossa primeira forma rudimentar, vaga, imprecisa e indeterminada de predicação das coisas.

Mas a qualidade (quale) é apenas uma parte do fenómeno, visto que, para existir, a qualidade tem de estar encarnada na matéria. A factualidade do existir está nessa corporificação material. Falar em pensamento, no entanto, é falar em processo, mediação interpretativa entre nós e os fenómenos. É o terceiro estádio da dialética: agir, reagir, interagir e fazer são modos marcantes de uma síntese intelectual, o pensamento em signos através do qual representamos e interpretamos o mundo.
Nessa medida, o simples ato de olhar já está carregado de interpretação, visto que é sempre o resultado de uma elaboração cognitiva, fruto de uma mediação que possibilita a nossa orientação no espaço por um reconhecimento e assentimento diante das coisas que só o signo permite.

O signo é uma coisa que representa uma outra coisa: o seu objeto. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele. Ora, o signo não é o objeto. Ele apenas está no lugar do objeto. Portanto, ele só pode representar esse objeto de um certo modo e numa certa capacidade. Por exemplo: a palavra casa, a pintura de uma casa, o desenho de uma casa, a fotografia de uma casa, o esboço de uma casa, um filme de uma casa, a planta baixa de uma casa, a maquete de uma casa, ou mesmo o seu olhar para uma casa, são todos signos do objeto casa. Não são a própria casa, nem a ideia geral que temos de casa. Substituem-na, apenas, cada um deles de um certo modo que depende da natureza do próprio signo. A natureza de uma fotografia não é a mesma de uma planta baixa.

Ora, o signo só pode representar o seu objeto para um intérprete. Ao representar produz na mente do intérprete um quase-signo, naturalmente o objeto mediado pelo signo. Em Peirce existe a noção de interpretante. Não é o intérprete do signo, mas um processo relacional que se cria na mente do intérprete. A partir da relação de representação que o signo mantém com o seu objeto, produz-se na mente interpretadora um outro signo que dá o significado do primeiro signo. Portanto, o significado de um signo é outro signo (seja este uma imagem mental, uma palavra, ou mesmo uma emoção. Ao ouvirmos uma peça de música, se não somos músicos profissionais, a audição dessa música não produzirá em nós senão uma série de qualidades de impressão, isto é, sensações auditivas, viscerais e possivelmente correspondências visuais a que podemos resumir numa emoção, e que os últimos filósofos analíticos deram o nome de qualia.



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