quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Os Lusitanos e Viriato – depois do massacre de Galba



««[…] Em busca de melhor sorte e de enriquecer facilmente, Lúcio Licínio Lúculo veio ocupar o lugar de cônsul da Hispânia em 151 a.C. E com ele veio o pretor Sérgio Sulpício Galba. Fiéis à política belicista do Senado, vinham para a Hispânia para enriquecer e acabar de vez com a resistência lusitana, custasse o que custasse. Ora, Galba não conseguia estancar as terríveis perdas que bandos de Lusitanos lhe estavam a causar. Então Lúculo foi forçado a dirigir-se para a Bética a fim de ajudar Galba. […]»»

Ocupando o território entre Douro e Tejo na faixa atlântica da Península Ibérica, havia um povo com o nome de Lusitanos, cuja verdadeira origem ainda hoje é controversa. Dada a inexistência de escavações arqueológicas sistemáticas na zona, embora haja algum apoio dos escassos documentos arqueológicos e epigráficos, muito do que se conhece resulta da leitura de textos de autores da época: Políbio, Diodoro, Estrabão, Apiano, Plínio, etc. É claro que a discrepância entre eles é tão grande que se torna difícil traçar o verdadeiro retrato dos Lusitanos e da Lusitânia nos seus limites geográficos. Uns consideram que se tratava de uma etnia de origem pré-ibérica, que terá sido subjugada pelos Celtas aquando das primeiras invasões, mas que posteriormente se terá de novo autodeterminado. Outros autores entendem que são genuinamente um povo indo-europeu oriundo das zonas helvéticas.


 Na Ora Marítima de Avieno, uma parte da Península Ibérica é chamada Ofiússa, literalmente "Terra de Serpentes". Segundo Avieno, Ofiússa era antigamente habitada pelos estrímnios, um povo que poderia ser herdeiro da cultura megalítica europeia. Segundo uma lenda recolhida por Avieno, os estrímnios foram expulsos de suas terras por uma invasão de serpentes, o que deu origem às mais variadas interpretações pelos estudiosos. Schulten acreditava que a invasão das serpentes simbolizava os sefes, povo celta que teria invadido a região e expulsado os estrímnios. O poema menciona vários nomes geográficos, atualmente localizados em território português: uma ilha dedicada a Saturno, possivelmente as Berlengas; o Cabo de Ofiússa, provavelmente o Cabo da Roca; o Cabo Cémpsico, que seria o Cabo Espichel; e a Ilha de Ácala, possivelmente hoje fazendo parte da Península de Troia.



Rufo Festo Avieno, século IV, dedica a seu amigo Probo a descrição geográfica das costas da Europa, desde as Ilhas Britânicas até ao Mar Negro (Ponto Euxino). Avieno pode ter feito algumas viagens, mas muitas das descrições são copiadas de outras mais antigas, como por exemplo: O Périplo Massaliota, séc. VI a.C., um manual de algum autor de Massília (Marselha) que na altura era uma colónia grega. 

Caminho marítimo entre o Mediterrâneo e o Atlântico Norte conhecido pelo menos desde o século VI a.C. por fenícios, oriundos do que é hoje o Líbano e a Palestina; e por gregos, sobretudo os fócios, habitantes da Fócia, na Ásia Menor, provavelmente os primeiros colonos que fundaram Marselha. É já do tempo da Idade do Ferro, mas recolhe conhecimento anterior do tempo da "rota do estanho". Este documento é o primeiro que descreve os vínculos comerciais à volta da Europa, também testemunhado pelas evidências arqueológicas deste período e anteriores.

Segundo Diodoro de Sicília, a sociedade lusitana era uma sociedade aristocrática na medida em que o poder político, social e a maior parte da riqueza estavam nas mãos de um reduzido número de pessoas que integravam a sociedade. Estes aristocratas mostravam o seu status social pela posse de uma panóplia completa de guerreiros. O regime de governo era a chefia militar que ocorria em momentos específicos, concretamente em caso de guerra. Os caudilhos, ou chefes militares, eram eleitos em assembleias populares.



Na guerra civil entre César e Pompeu, os lusitanos combateram ao lado de uma das fações. Foi nesta altura que se procedeu ao traçado da estrada que iria de Mérida a Astorga – Rota da Prata. A partir da época de Augusto, as fontes literárias mantêm um respeitoso silêncio acerca do território lusitano, e quando no século II aparecem algumas informações, constata-se que surgiram vários municípios flávios e que há muitos outros com estatuto desconhecido. E as divindades romanas vão ganhando raízes no primitivo panteão dos lusitanos. O objetivo principal da presença romana na Península Ibérica era impedir que os cartagineses nela circulassem e agissem em inteira liberdade. Mas depois, é claro, foram interesses económicos em proveito próprio que motivaram a decisão romana de se apoderar da Península Ibérica. A ocupação romana da Hispânia foi uma operação necessária na estratégia romana da Segunda Guerra Púnica. Mas depois as guarnições foram ficando, fosse por inércia política, fosse por outros interesses económicos. Daí que a partir de certa altura as populações nativas passassem a sentir a necessidade de fazer alguma coisa para evitar a opressão.

O alistamento de lusitanos pobres em diversos exércitos para obterem algum ganho nos despojos, era um procedimento habitual desde os finais do século III a.C. Em 218 a.C. já havia tropas lusitanas nos exércitos que combatiam com Aníbal, em Itália, tropas às quais Aníbal recordou, num discurso, os sacrifícios que tinham de suportar nas suas terras, pois a dedicação à pastorícia nunca lhes proporcionaria proveitos significativos.

Politicamente, o ano de 197 a.C. foi especialmente significativo para a Hispânia. Nesse ano é concluída a divisão do território conquistado em duas províncias: A Citerior, mais próxima de Roma, e a Ulterior, mais afastada: Lusitânia, Tarraconense e Bética. Esta reforma administrativa da Hispânia determinará todo o processo político de conquista, e afetará, evidentemente, as terras lusitanas.


A forma como as comunidades lusitanas se integraram no mundo romano não foi através de deditiones, como habitualmente acontecera nas regiões ibéricas ou celtibéricas onde o proto-urbanismo estava mais desenvolvido do que nas lusitanas, mas sim através de acordos e pactos. Assim, em 151 a.C. a derrota lusitana possibilitou um acordo com Marco Atílio, que supunha a submissão de alguns lusitanos e vetões. Pouco tempo depois este acordo foi quebrado pelos lusitanos. Galba pretendeu estabelecer outro acordo com os lusitanos, mas também não o conseguiu. Em 145 a.C. dá-se uma nova tentativa, por parte dos lusitanos, de estabelecer um pacto com o governador Vetílio, em troca da promessa de obediência a Roma, tentativa essa gorada pela intervenção do próprio Viriato. Mas o seu poder acaba por ser reconhecido quando o senado de Roma o considerou amicus populi romani reconhecendo a sua liderança nas terras da Lusitânia. Roma colocava Viriato ao mesmo nível de outros reis aliados importantes. Deste modo, a própria sociedade lusitana tenderia a evoluir para formas mais complexas de organização política que, a certa altura, poderia ser uma monarquia governada por Viriato. Mas a história não se fez assim. Viriato morre em 139 a.C. 

Falar de lusitanos é o mesmo que chamar povo de Viriato, líder que se notabilizou na luta pela liberdade contra o Império Romano na segunda metade do século II a.C. Uma grande parte da biografia de Viriato difundida no seio dos portugueses é lendária.  Atualmente os historiadores defendem que se tratava de um líder político, um excelente estratega militar, que ao comando de um corpo de guerreiros composto por elementos de diversas tribos, se impôs contra a subjugação romana, cuja campanha de aguentou durante oito anos. Teve, contudo, um desenlace infeliz, uma conspiração movida pelos romanos culminou no seu assassinato à traição.

Para o estudo de Viriato apenas dispomos de fontes romanas. Na tradição oral ibérico-lusitana não há nada sobre a sua pessoa. E se alguma coisa houvesse, teria sido modificada e manipulada pelos seus inimigos romanos. A sua pátria parece ter sido a Serra da Estrela – Mons Hermínius. Diodoro de Sicília diz que Viriato é de origem lusitana, “nascera na parte ocidental do território perto do Oceano”. Também se ignora o ano em que nasceu. A data é estimada fazendo a seguinte conta: tendo à volta de 20 anos quando aparece pela primeira vez na História – 150 a.C. Então deverá ter nascido cerca de 170 a.C. Mas a baliza oficial está compreendida entre 181 – 139 a.C.

Ora, Viriato foi o grande estratega da guerrilha ofensiva, e não apenas defensiva contra os romanos, como havia sido em Numância. A característica essencial da estratégia de Viriato era o ataque. O seu objetivo político-militar era a independência da sua pátria em relação a Roma. Mas para isso faltava-lhe quase tudo menos audácia – capacidade organizativa e administrativa, recursos materiais para além dos saques e homens para lutar. Por isso a sua estratégia não ia além da tática de desgaste, que apesar de algumas investidas terem sido letais, o resultado era apenas dilatório.

Viriato era um mestre na dissimulação da fuga. Fingia fugir para de imediato atacar. Aproveitava-se do efeito surpresa que na confusão tirava proveito do seu maior conhecimento do terreno. O assalto a colunas de abastecimento e a destacamentos de apoio eram muito proveitosos. Apesar de as opiniões sobre a estratégia de Viriato serem elogiosas nos relatos dos autores romanos, a verdade é que Viriato comandou a guerra lusitana mais pela força das circunstâncias do que por uma decisão pensada.

As negociações entre Viriato e Cepião são sobejamente conhecidas através de relatos de Apiano, Diodoro e Dião Cássio. Ocorreram no ano de 139 a.C. visto que Tito Lívio reporta a morte de Viriato a esse mesmo ano. Viriato formou uma comissão com três dos seus soldados – que eram homens provenientes da província romana da Bética que se tinham passado para o seu lado – e foram negociar ao acampamento romano. E foi aqui que Viriato cometeu um erro de palmatória: não foi difícil a Cepião convencer estes homens a assassiná-lo com promessas de vantagens pessoais e posse de terras. Quando regressaram ao acampamento de Viriato mataram-no enquanto dormia. Sem demora fugiram para o acampamento romano em busca da recompensa, mas os seus cálculos saíram-lhes furados.

Em Roma este assassinato foi considerado um ato indigno. E o sentimento dos lusitanos foi de uma dimensão inaudita. Os lusitanos realizaram exéquias como se de um ente divino se tratasse. O cadáver foi queimado sobre uma pira gigantesca e ofereceram inúmeras vítimas aos deuses. Foram imolados animais de várias espécies. Em seguida, perante as suas cinzas, mais de duzentos pares pronunciaram cânticos de celebração e promessas de combates em sua honra. E a luta dos lusitanos contra os romanos, ainda que por pouco tempo. A morte de Viriato, como esperaram os romanos, foi o fim da resistência lusitana.

A época do Humanismo, com o renascimento do estudo do mundo clássico e da literatura antiga, proporcionou a ressurreição da recordação histórica das raízes lusitanas do povo português, e a reabilitação heróica de Viriato. Luís de Camões dedicou-lhe uma emotiva evocação na sua epopeia nacional – Os Lusíadas. Os vestígios de um acampamento romano, localizado nas proximidades de Viseu, foi dado como correspondência ao que era relatado por alguns autores como “A Cova de Viriato”. Para Portugal, Viriato passou a marcar o seu herói mais antigo que está na raiz mais profunda da nacionalidade portuguesa.

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