sexta-feira, 6 de setembro de 2019

O Portugal dos mitos


Mosteiro dos Jerónimos – Escudo de Portugal no Portal Oriental, que dá entrada para a Igreja dos Jerónimos. Segundo a tradição está assim rachado de alto a baixo, na forma em que hoje se vê, desde a “morte em África do Senhor Rey D. Sebastião”. Cerimónia que se costumava fazer quando falecia um Rei: quebrar o Escudo.

Faz parte de qualquer ser humano, inserido em sociedade, partilhar o sentimento de pertença a um povo cujo espaço do imaginário apresenta traços próprios que o singularizam desde a sua fundação como país. O que significa falar de imaginário é colher imagens num fundo arquetípico.

Mas em primeiro lugar, é preciso saber se existem verdadeiros mitos. Ou seja, narrativas ou situações imaginárias que se distinguem pela sua persistência em objetivarem os acontecimentos. No caso Português os mitos estão objetivados: primeiro, no território da reconquista cristã aos mouros; segundo, na ultrapassagem dos limites continentais à descoberta das ilhas afotunadas; terceiro, na aventura marítima à conquista do mundo. 


Assim como a História é coisa respeitável, também o Mítico o é. O Mito é uma elaboração imaginária com uma existência real no mundo a que os materialistas dialéticos denominavam de superestrutura, o qual interatuava com o mundo histórico das infraestruturas. O mito é um operador lógico que resolve contradições.

Onde reside o interesse da navegação, se isso implica arriscar a vida no oceano tenebroso? Talvez resida nos Sonhos, cuja superestrutura se traduz nos seus efeitos poéticos, seja de um Camões, seja de um Pessoa. São precisamente estes sonhos duradouros que é necessário interrogar para compreender a alma secreta dos portugueses. Sonhos repetidos de conquistas dramáticas e triunfais.

Segundo Gilbert Durand, poder-se-ão talvez distinguir quatro grandes grupos míticos: 1 - 
Fundador vindo de fora; 2 - Nostalgia do impossível; 3 - Salvador oculto; 4 - Transmutação dos atos.

1 - Fundador Vindo de Fora:
O primeiro mitologema, o do herói fundador vindo de fora é um dos mais arquetípicos, isto é, mais universal. Henrique, "segundo filho do rei da Hungria", na verdade Borguinhão, recebe do rei de Castela as terras portuguesas e a própria filha do rei, Teresa. O filho destes, por sua vez, conquista Lisboa, ela própria fundada por um estrangeiro (Ulisses - Olissippo). É também o caso de São Vicente, que é um mártir de Saragoça/Valência, e que em 1173 Afonso Henriques trouxe para Lisboa as suas relíquias que estavam no promontório de Sagres, Algarve, timonado por dois corvos, que irão figurar no brasão de Lisboa. E Sagres será onde mais tarde o Infante D. Henrique constituirá a sua Escola Naval. Assim, a lenda de São Vicente, o "estrangeiro", a navegação funerária, que remete para o complexo de Coronte, vem ainda reforçar o simbolismo das aves mensageiras. São Vicente, padroeiro dos navegadores - tal como figura no políptico de Nuno Gonçalves ao lado do Infante D.
Henrique - é verdadeiramente o mensageiro do além, de um além dos mares - o apelo do Oceano. A reconquista do território termina nas praias do Algarve, que convidam à viagem e - no Cabo de São Vicente - à conquista do mundo.

2 - Nostalgia do impossível
Uma lógica interna liga o mitologema do Oceano Desconhecido e tenebroso à audácia do impossível. Pode entrar aqui também a Saudade - um mal de que se gosta, e um bem que se padece - o fado.

3 - Salvador oculto 
O rei escondido, espera a hora do regresso. Este mitologema é também dos mais universais - o do Messias. E temos o Prestes João que se mantém oculto no fim do mundo (de que temos vindo a falar nos posts anteriores). Para o Islão o Messias é o Mahdi, ou o XII Imã oculto no xiismo. Ou o Senhor da Montanha da ordem militar dos Assassinos, tão conhecidos dos Cruzados e dos Templários. Ou o mito do rei Artur na cultura celta. Mas o caso especificamente português é o rei D. Sebastião que há de voltar numa manhã de nevoeiro. Estas são as famosas Trovas de Bandarra. E no século XVII temos o Padre António Vieira na História do Futuro e na Clavis Prophetorum, num joaquimismo franciscano renovado no mito do V Império. Almeida Garrett também chega lá por outros meios no Frei Luís de Sousa

4 - Transmutação dos atos
É o "Complexo de Canaã", o mitologema da transubstanciação, da transformação milagrosa da água em vinho, ou do pão dos pobres em rosas da Rainha Santa Isabel.



Tomar é a capital templária de Portugal. O Templo, a Cavalaria, a Demanda do Graal, a Idade do Espírito Santo e a futura Idade de ouro do Quinto Império, tiveram em Portugal um grande eco devido a vários fatores: o facto de a Ordem do Templo, que inequivocamente desempenhou um papel fundamental na fundação de Portugal, não ter sido linearmente extinta em Portugal, dado que D. Dinis, muito sabiamente lhe mudou o nome para Ordem de Cristo; esta, por sua vez, acabou por ser o motor dos Descobrimentos. O Infante D. Henrique, ao ser o Administrador da Ordem, conferiu-lhe um caráter universal; o culto popular do Espírito Santo introduzido pela Rainha Santa Isabel, mulher de D. Dinis, que ao ser transmitido a outras paragens do ultramar deu uma dimensão paraclética quinto-imperial ao projeto português; e o Quinto Império proposto por António Vieira, ao ser amplificado pelo esoterista Fernando Pessoa na Mensagem, também o universalizou. 



O iconoclasmo das mediações metafóricas por parte de um pensamento conceptual e matemático, combinado com a perceção direta dos objetos, tem início no chamado Renascimento dos séculos XII/XIII, numa vasta corrente em que avulta, por exemplo, Guilherme d'Ockham, o decidido menosprezador dos Universais.

Mas o símbolo é um signo concreto que evoca, através de uma relação natural, algo ausente ou impossível de apreender. O primeiro parâmetro constitutivo do símbolo é a identidade de localização num espaço-tempo que ocupa. Ora, é por aqui que volta a entrar Einstein e Niels Bohr com mais uma transmutação epistemológica dos conceitos de mito, símbolo e imaginário. E essa dinâmica do simbolismo encerra em si mesma todas as contradições da visão científica do mundo aplicada à própria vida, a que Schrödinger acolheu com o seu gato, e com o seu livro intitulado precisamente "O que é a vida?" Entretanto - Husserl, com "Ideias para uma fenomenologia pura, 1905"; e Heidegger com "O Ser e o Tempo" e "O que é a metafísica?" - Já haviam apelado aos métodos da fenomenologia para que se fizesse um esbatimento entre a heurística do historicismo positivista e a hermenêutica do homo religiosus.

Foi com essa viragem epistemológica que um Jung ou um Georges Dumézil puderam retomar o estudo do simbólico das profundezas da alma onde reside o homo religiosus, e assim entrar mais a fundo no nosso drama contemporâneo. A eles se juntaram Henry Corbin, Gilbert Durand, Mircea Eliade, Gaston Bachelard, Claude Lévi-Strauss e muitos mais, que numa extraordinária concentração de saber, conseguiram entre 1933 e 1960 estabelecer um novo guia de uma hermenêutica simbólica de um domínio do espírito do homo sacer (homem sagrado na expressão de Giorgio Agamben) completamente desprezado pelas elites científicas iluminadas pelo Iluminismo, passe a redundância.

Jung, na sua condição de psicólogo e psiquiatra, situa-se do lado dos elementos subjetivos. Dumézil, como filólogo, historiador e sociólogo da Antiguidade, do lado das classificações sociais. A sua abordagem antropológica não tem nada a ver com teologia, mas também rejeitam enveredar por um reducionismo tão peculiar do positivismo.

Volto então, para terminar, ao princípio deste texto para reafirmar a atitude displicente moderna face à cultura idiossincrática portuguesa ligada ao mito do desconhecido oceano. Basta colocarmo-nos em Belém e olhar para o Mosteiro dos Jerónimos para levar a sério a enorme pressão espiritual que ali é materializada nas pedras. Note-se que foi sobretudo o rei D. Manuel I o promotor das viagens de Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral, e ao mesmo tempo protetor dos frades Jerónimos. E não foi aleatória a construção do Mosteiro à beira do Tejo, do local de onde partiam as naus. Mas há aqui um pormenor, que nos deve despertar a atenção. Se é um facto, por um lado, Santo António disputar o patrocínio de Lisboa por parte dos franciscanos (outros reis portugueses foram "frades" da Ordem Terceira) os quais se encontraram à proa das descobertas portuguesas, por outro lado descobre-se que o culto de São Jerónimo foi promovido e apoiado pelos adversários (não inimigos mas saudavelmente concorrentes) dos franciscanos - os filhos do espanhol Domingos d'Osma. Domingos de Gusmão, foi estudar para Palência em 1196, tendo-se tornado após a conclusão dos seus estudos membro do cabido de Osma. Outros mosteiros jeronimitas foram igualmente célebres como difusores da Ordem na Península Ibérica: O Mosteiro de São Jerónimo de Yuste, para onde se retirou Carlos V, e o famoso Escorial, mandado edificar por seu filho, Filipe II, rei de Espanha e Portugal.


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