segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Os Templários no Pêndulo de Foucault, de Umberto Eco



Belbo passou imediatamente aos seus destilados preferidos, Diotallevi refletiu um bom tempo, hesitante, e optou pela água tónica. Arranjamos uma mesinha ao fundo, naquele instante deixada livre por dois trambestuurder que deviam acordar cedo na manhã seguinte.

"Com que então", disse Diotallevi, "aqueles Templários..." 


"Não, agora por favor não me ponham em crise... São coisas que se podem ler em qualquer parte..."


"Somos pela tradição oral", disse Belbo. 


"É mais mística", disse Diotallevi. "Deus criou o mundo falando, e não mandando um telegrama." 


"Fiat lux, stop. Segue epístola", disse Belbo. 


"Aos tessalonicenses, imagino", disse. 


"Os Templários?", perguntou Belbo. "Pois", disse eu. 


"Não se começa nada com pois", objetou Diotallevi. 


Fiz menção de levantar-me. Esperei que me pedissem para ficar. Não o fizeram. Sentei-me e falei.

"Bem, quero dizer, a história todos sabem. Houve a primeira cruzada, está bem? Godofredo adora o Santo Sepulcro e escolhe o claustro, Balduíno torna-se o primeiro rei de Jerusalém. Um reino cristão na Terra Santa. Mas uma coisa é ter Jerusalém, outra coisa o resto da Palestina, e os sarracenos foram vencidos mas não eliminados. A vida naquela parte não é fácil, nem para os novos entronizados, nem para os peregrinos. E eis que em 1118, sob o reinado de Balduíno II, aparecem nove personagens, liderados por um certo Hugues de Payns, e constituem o núcleo de uma Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo: ordem monástica, mas com espada e armadura. Os três votos clássicos, pobreza, castidade e obediência, e mais o de defesa dos peregrinos. O rei, o bispo, todos, em Jerusalém, logo ajudam com dinheiro e alojamento, e os instalam no claustro do velho Templo de Salomão. E aí está por que se tornaram os Cavaleiros do Templo."

"Quem eram?"

"Provavelmente Hugues e os primeiros oito eram idealistas, devotos da mística da cruzada. Mas em seguida agirão como cadetes em busca de aventuras. O novo reino de Jerusalém é um pouco a Califórnia daqueles tempos, pode-se fazer fortuna. Em sua terra não são muitas as perspetivas, e é de supor que entre eles haja algum que tenha feito das suas. Penso no assunto em termos de legião estrangeira. Que fazes se estás em apuros? Fazes-te Templário, pode-se conhecer novas terras, a gente se diverte, combate, dão-te comida, vestes e no fim até salvas a alma. É verdade, é preciso que estejas bastante desesperado, pois se trata de vagar pelo deserto, dormir em tendas, passar dias e dias sem ver vivalma a não ser os outros Templários e a cara de algum turco, a cavalgar debaixo do sol, dividindo as rações de água e estripando outros pobres-diabos..."

Calei-me por um instante.

"Talvez esteja tornando a coisa demasiadamente western. Há provavelmente uma terceira fase: a ordem torna-se poderosa, procuram fazer parte dela mesmo aqueles que têm boa posição na pátria. Mas naquela altura ser Templário já não significa necessariamente trabalhar, pode-se ser Templário até em casa. História complexa. Às vezes parecem recrutas sem eira nem beira, outras vezes demonstram ter certa sensibilidade. Por exemplo, não se pode dizer que fossem racistas; combatiam os muçulmanos, estavam ali para isso, mas com espírito cavalheiresco, e admiravam-se mutuamente. Quando o embaixador do emir de Damasco visita Jerusalém, os Templários destinam-lhe uma pequena mesquita, já transformada em igreja cristã, para que possa fazer as suas orações. Um dia entra um franco que se indigna de ver um muçulmano num lugar sagrado, e o trata mal. Os Templários correm com o intolerante e desculpam-se com o muçulmano. Essa fraternidade de armas com o inimigo os levará mais tarde à ruína, porque com o correr do tempo serão até mesmo acusados de terem tido ligações com seitas esotéricas muçulmanas. E talvez seja verdade, um pouco assim como aqueles aventureiros do século passado tomados pelo mal da África, que não tinham uma educação monástica regular, não eram assim tão subtis em entender as diferenças teológicas, imagine-os como outros Lawrences da Arábia, e com pouco se vestem como xeiques... Mas depois é difícil avaliar suas ações, porque amiúde os historiógrafos cristãos como Guilherme de Tiro não perdem ocasião de denegri-los."

"Porquê?"

"Porque se tornam poderosos demais e muito diligentes. Tudo começa com São Bernardo. Estão vendo São Bernardo, não? Grande organizador, reforma a Ordem Beneditina, elimina da igreja as condecorações, quando um colega o irrita, como Abelardo, ataca-o à McCarthy, e se pudesse o mandaria à fogueira. Não podendo, manda queimar seus livros. Depois prega a Cruzada, armai-vos e parti..."

"Não lhe é nada simpático, não", observou Belbo.

"Não, não o suporto, se dependesse de mim iria terminar num dos círculos horrendos, apesar de santo. Mas era um bom agente de publicidade de si mesmo, veja a homenagem que lhe presta Dante, nomeando-o chefe de gabinete de Nossa Senhora. Torna-se imediatamente santo porque alcovitou com a gente certa. Mas falava dos Templários. Bernardo intuiu logo que a ideia era de se cultivar, e apoia aqueles nove aventureiros, transformando-os numa Militia Christi, digamos mesmo que os Templários, em sua versão heróica, quem inventa é ele. Em 1128 faz convocar um concílio em Troyes especialmente para definir o que são aqueles novos monges soldados, e alguns anos depois escreve um elogio daquela Milícia de Cristo, e prepara uma regra de setenta e dois artigos, divertida de se ler, porque aí se encontra de tudo. Missa todos os dias, não devem frequentar cavaleiros excomungados, mas se algum deles solicita admissão no Templo devem acolhê-lo cristãmente, e vejam que eu tinha razão quando falava de legião estrangeira. Vestirão manto branco, simples, sem peles, a não ser que sejam de ovelha ou de carneiro, proibido usar calçados recurvos e macios segundo a moda, devem dormir de camisa e ceroulas, um colchão, um lençol e uma coberta..."

"...não decerto sem motivo", comentou Belbo. "São Bernardo certamente não era nenhum estúpido." 


"Não, estúpido não era, mas era monge também ele, e naqueles tempos o monge tinha uma estranha ideia do corpo... Ainda há pouco estava receoso de ter levado a minha história um pouco demais para o western, mas, pensando bem, ouçam o que dizia Bernardo sobre seus cavaleiros prediletos, trago aqui comigo a citação porque vale a pena: 'Evitam e aborrecem os mimos, os prestidigitadores e os ilusionistas, as canções inconvenientes e as farsas, cortam curtos os cabelos, tendo aprendido do apóstolo ser ignomínia o homem cuidar da própria cabeleira. Jamais são vistos penteados, raramente lavados, a barba hirsuta, fétidos de pó, sujos por causa da armadura e do calor'."

"Eu é que não queria morar junto deles", disse Belbo.

Diotallevi sentenciou: "Sempre foi típico do eremita cultivar uma sadia sujeira, para humilhar o próprio corpo. São Macário não vivia sobre uma coluna e, quando os vermes lhe caíam das costas, os recolhia e os punha de novo no corpo para que eles, também criaturas do Senhor, tivessem o seu festim?"

"O estilita era são Simeão", disse Belbo, "e acho que ficava em cima da coluna só para cuspir na cabeça daqueles que passavam por baixo." 


"Odeio o espírito do iluminismo", disse Diotallevi. "Em todo o caso, Macário ou Simeão, houve um estilita com vermes como eu disse, mas não sou autoridade na matéria porque não me ocupo das loucuras dos gentios."

"Acaso eram limpos os teus rabinos de Gerona?" perguntou Belbo. "Estavam em lúgubres casebres porque vocês os gentios os confinavam no gueto. Os Templários ao contrário se emporcalhavam por gosto."

"Não dramatizemos", disse eu. "Já viram um pelotão de recrutas depois da marcha forçada? Mas contei estas coisas para fazer-vos compreender a contradição dos Templários. Deve-se ser místico, ascético, não comer, não beber, não varrer, mas vai para o deserto, corta a cabeça aos inimigos de Cristo, quanto mais cortas tanto mais ganhas cupões para o paraíso, fede, faz-se hirsuto a cada dia que passa, e Bernardo ainda pretendia que depois de haver conquistado uma cidade não se atirassem sobre alguma mocinha ou velhinha que fosse, e que nas noites sem lua, quando como se sabe o simum sopra no deserto, não se deixassem fazer um servicinho qualquer pelo seu companheiro de armas preferido. Só porque és monge e espadachim, estripas muçulmanos e rezas a Avé-Maria, não deves encarar tua prima e quando entras numa cidade, depois de dias e dias de assédio, os outros cruzados fodendo a mulher do califa diante dos teus olhos, sulamitas maravilhosas abrindo o corpete e dizendo-te toma-me, toma-me mas deixa-me a vida... E o Templário nada, devia ficar duro, fedorento, hirsuto como o queria são Bernardo a recitar completas... Além do mais, basta ler os Retraits..."


"Que era isso?"

"Estatutos da Ordem, redigidos bem mais tarde, digamos quando a Ordem já estava de pantufas. Não há nada pior do que um exército que se entedia porque a guerra acabou. Por exemplo proibiram-se as rixas, que se ferisse um cristão por vingança, comércio com as mulheres, caluniar o irmão. Não se deve perder um escravo, encolerizar-se e dizer "vou para o lado dos sarracenos!", deixar extraviar por incúria um cavalo, dar animais com exceção de cães e gatos, partir sem permissão, quebrar o sigilo do Mestre, deixar a capitania de noite, emprestar dinheiro da ordem sem autorização, atirar o hábito por terra quando enfurecido."

"Através de um sistema de vetos pode-se intuir o que as pessoas faziam habitualmente", disse Belbo, "e com isso traçar esboços da vida quotidiana."

"Vejamos", disse Diotallevi, "um Templário, irritado por alguma coisa que os irmãos lhe haviam dito ou feito àquela noite, sai tarde sem permissão, a cavalo, com um sarracenozinho de escolta e três capões pendurados na sela, para ir à casa de uma rapariga de costumes indecorosos e locupletando-a com os ditos capões dela obtém as vantagens de ilícito conúbio... Depois, durante a esbórnia, o mourinho escapa com o cavalo e o nosso Templário, mais sujo suado e hirsuto que de costume, volta para casa com o rabinho entre as pernas e procurando passar despercebido entrega dinheiro (do Templo) ao usurário do costume, um judeu que o espera como um abutre sobre a trípode..."

"Tu o disseste, Caifás", observou Belbo.

"E assim por diante, segundo os estereótipos. O Templário procura reaver se não o mouro, pelo menos uma sombra do cavalo. Mas um co-templário percebe a tramoia e à noite (estamos vendo, naquela comunidade a inveja é de casa), quando entre a satisfação geral chega a carne, faz pesadas alusões. O capitão fica desconfiado, o suspeito se atrapalha, enrubesce, arranca o punhal e atira-se sobre o tipo..."

"Sobre o sicofanta" , precisou Belbo.

"Sobre o sicofanta, bem dito, atira-se sobre o miserável golpeando-lhe o rosto. Este arranca da espada, litigam indecorosamente, o capitão procura acalmá-los a catanadas, os irmãos escarnecem..."

"Bebendo e praguejando como Templários..." disse Belbo.

"Jurodeus, nomededeus, pordeus, afédedeus, sanguededeus!" dramatizei.

"Sem dúvida, o nosso Templário se altera, assim... como diabo fica um Templário quando se altera?"
"Fica com o rosto pavonáceo", sugeriu Belbo. 


"Isso, tal como dizes, fica com o rosto pavonáceo, arranca o hábito e o arremessa por terra... Fiquem com esta túnica de merda vocês e seu maldito templo!" propôs. "Depois, dá uma espadagada no sinete, despedaça-o e grita que lá se vai unir aos sarracenos."Violando pelo menos oito preceitos de um só lance." Concluí, para melhor ilustrar minha tese: "Pois ali havia tipos assim, que dizem lá me vou com os sarracenos, no dia em que o bailio do rei os prende e os faz ver o ferro em brasa: Fala marrano, diz que lhe metias no traseiro! Nós? Mas a mim as vossas tenazes me fazem rir, não sabem do que é capaz um Templário, meto no traseiro vosso, do papa, e se estiver à mão até mesmo no do rei Filipe!"

"Confessou, confessou! Foi decerto assim a coisa", disse Belbo. "E já para o calabouço, uma passada de óleo todos os dias, que assim queima melhor." 


"Como crianças", concluiu Diotallevi.

Fomos interrompidos por uma jovem, com uma nódoa de morango no nariz, e folhas de panfleto na mão. Perguntou-nos se já havíamos assinado pelos companheiros argentinos presos. Belbo logo assinou, sem sequer olhar a folha. "Em todo o caso, estão pior que eu", disse a Diotallevi, que o observava com ar perdido. Depois voltou-se para a moça: "Ele não pode assinar, pertence a uma minoria indiana que proíbe escrever o próprio nome. Muitos deles estão na cadeia porque o governo os persegue." A garota fixou Diotallevi com compreensão e passou o papel para mim. Diotallevi relaxou-se.

"Quem são?" perguntei.

"Como quem são? Companheiros argentinos."

"Sim, mas de que grupo?"

"Taquara, não?"

"Mas os Taquaras são fascistas", arrisquei, ao que sabia.

"Fascista", me sibilou com ódio a jovem. E lá se foi.

"Mas, em suma, esses Templários eram então uns pobres coitados?" perguntou Diotallevi. 


"Não", disse eu, "e tenho a culpa, porque estava procurando tornar mais viva a minha história. Tudo o que dissemos respeita à tropa, mas a ordem desde o início recebeu doações fantásticas e pouco a pouco foi constituindo capitanias em toda a Europa. Notem que Afonso de Castela e Aragão presenteou-a com um país inteiro, e, além disso, em seu testamento lhe deixa o reino caso venha a morrer sem herdeiros. Os Templários não confiam no gesto e fazem uma transação, como quem diz contentamo-nos com pouco, mas esse pouco são nada menos que uma dezena de fortalezas na Espanha. O rei de Portugal lhes doa uma floresta, e como ainda estivesse ocupada pelos sarracenos, os Templários se metem ao assalto, expulsam os mouros, e por assim dizer fundam Coimbra. E são apenas episódios. Em resumo, uma parte combate na Palestina, mas o grosso da ordem progride em casa. E que acontece? Se alguém tem que ir à Palestina e precisa de dinheiro, e não tem coragem de viajar com joias e ouro, entrega-os aos Templários na França, na Espanha ou na Itália, recebe um bónus que pode ser resgatado no Oriente."

"A carta de crédito?" perguntou Belbo.

"Isto mesmo, inventaram o cheque, e antes dos banqueiros florentinos. Donde se compreende que, por força de doações, conquistas à mão armada e corretagens sobre operações financeiras os Templários se tenham tornado uma multinacional. Para dirigir uma empresa do género era preciso gente de boa cabeça. Gente que consegue convencer Inocêncio II a conceder-lhes privilégios excepcionais: a ordem pode ficar com as pilhagens de guerra, e onde tiver bens não está obrigada a prestar obediência ao rei, aos bispos ou ao patriarca de Jerusalém, mas apenas ao Papa. Isentados em toda parte do pagamento da dízima, têm o direito eles próprios de impô-la nas terras que controlam... Em suma, trata-se de uma empresa sempre no ativo na qual ninguém pode meter o bedelho. Compreende-se por que passam a ser malvistos pelos bispos e reinantes, que contudo não podem passar sem eles. Os cruzados são uns trapalhões, gente que parte sem saber para onde vai nem o que vai encontrar. Já os Templários neste particular estão em casa, sabem como tratar o inimigo, conhecem o terreno e a arte militar. A ordem dos Templários é uma coisa séria, ainda que se sustente sobre as fanfarronadas de sua tropa de choque."

"Mas eram fanfarronadas?" perguntou Diotallevi. 


"Muitas vezes sim, e de novo nos surpreendemos com a variedade entre seu conhecimento político e administrativo, e seu estilo de boinas-verdes, todo fígado e nenhum cérebro. Tomemos a história de Ascalão."

"Tomemos", disse Belbo, que se havia distraído para cumprimentar com ostensiva luxúria uma certa Dolores que entrava.

Esta veio sentar-se ao nosso lado, dizendo: "Quero ouvir a história de Ascalão, quero ouvir.

"Ora, um dia o rei de França, o imperador germânico, Balduíno III de Jerusalém e dois grão-mestres dos Templários e dos Hospitalários decidiram assediar Ascalão. Partem todos para o assédio, o rei, a Corte, o patriarca, os padres com as cruzes e estandartes, os arcebispos de Tiro, de Nazaré, da Cesareia, em suma, uma grande festa, com as tendas erguidas diante da cidadela inimiga, e as auriflamas, o grande paves, os tambores... Ascalão era defendida por cento e cinquenta torres e os habitantes já estavam preparados há tempos para o assédio, cada casa dispondo de seteiras, outras tantas fortalezas na fortaleza principal. Digo, os Templários, que eram tão hábeis, deviam saber essas coisas. Mas nada, todos se excitam, constroem tartarugas e torres de madeira, sabem aquelas construções sobre rodas que se empurram para junto dos muros do inimigo e lançam fogo, pedras, flechas, enquanto de longe as catapultas bombardeiam com pedregulhos... Os ascalonitas procuram incendiar as torres, o vento lhes é desfavorável, as chamas pegam nas muralhas, que pelo menos em um ponto cedem. A brecha! Neste ponto todos os assediantes entram como se fossem um só, e acontece um facto estranho. O grão-mestre dos Templários faz uma barragem, de modo que na cidadela só entrem os seus. As más línguas dizem que fez isso para que o saque enriquecesse só os Templários, os de boa-fé acham que temendo uma emboscada quisesse mandar na vanguarda os seus audazes. Em todo o caso não daria a eles a direção de uma escola de guerra, porque quarenta Templários percorrem toda a cidade a cento e oitenta a hora, vão dar de cara com a muralha do lado oposto, freiam levantando grande nuvem de poeira, olham uns para os outros e se perguntam que coisa estão fazendo ali, invertem a marcha e desfilam precipitadamente entre os mouros, que os perseguem atirando-lhes pedras e venábulos das janelas, massacrando-os todos inclusive o grão-mestre, e em seguida tapam a brecha, penduram nos muros os cadáveres e fazem figa para os cristãos entre escárnios obscenos."

"O mouro é cruel", disse Belbo. 


"Como as crianças", repetiu Diotallevi.

"Mas eram uns bardamerdas do cacete esses seus Templários", disse Dolores, excitada.

"A mim fazem lembrar o Tom & amp; Jerry", disse Belbo.

Arrependi-me. No fundo estava há dois anos vivendo com os Templários, e os amava. Intimidado pelo snobismo dos meus interlocutores, acabei apresentando-os como personagens de desenho animado. Talvez fosse culpa de Guilherme de Tiro, historiador infiel. Não eram assim os cavaleiros do Templo, barbudos e flamejantes, com a bela cruz encarnada sobre o manto cândido, esvoaçante à sombra de sua bandeira branca e negra, o Beauceant, destinados — e maravilhosamente — à sua festa de morte e de audácia, e o suor de que falava São Bernardo talvez fosse um lucilar brônzeo que conferia uma nobreza sarcástica ao seu sorriso tremendo, enquanto estavam assim aplicados em festejar cruelmente o adeus da vida... Leões na guerra, como dizia Jacques de Vitry, cordeiros cheios de doçura na paz, rudes na batalha, devotos na prece, ferozes com os inimigos, benévolos com os irmãos, marcados do branco e do negro de seu estandarte porque cheios de candor pelos amigos de Cristo, soturnos e terríveis para com seus adversários... Patéticos campeões da fé, último exemplo de uma cavalaria no crepúsculo, por que me comportar em relação a eles como um Ariosto qualquer, quando poderia ser seu Joinville? Vieram-me à mente as páginas que lhes dedicara o autor da História de São Luís, que havia seguido para a Terra Santa em companhia do Rei Santo, escrivão e combatente ao mesmo tempo. Enfim os Templários existiam há cento e cinquenta anos, haviam feito cruzadas bastantes para extenuar qualquer ideal. Desaparecidas como fantasmas as figuras heroicas da rainha Melisanda e de Balduíno, o rei leproso, consumadas as lutas intestinas daquele Líbano ensanguentado desde então, tendo caído já uma vez Jerusalém, Barba Roxa afogando-se na Cilícia, Ricardo Coração de Leão, derrotado e humilhado que regressa à pátria travestido precisamente de Templário, a cristandade perde sua batalha, e os mouros têm uma ideia bem diversa da confederação dos potentados autónomos mas unidos na defesa de uma civilização — leram Avicena, não são ignorantes como os europeus, como é possível permanecer dois séculos exposto a uma cultura tolerante, mística e libertina, sem ceder às lisonjas, podendo-a comparar à cultura ocidental, rude, insolente, bárbara e germânica? Até que em 1244 ocorre a última e definitiva queda de Jerusalém, a guerra, iniciada cento e cinquenta anos antes, é perdida, os cristãos irão deixar de empunhar armas numa terra destinada à paz e ao perfume dos cedros do Líbano, pobres Templários, de que serviu vossa epopeia? Ternura, melancolia, valores de uma glória fenecente, por que não se dedicar então à consulta das doutrinas secretas dos místicos muçulmanos, à acumulação hierática de tesouros ocultos? Talvez daí tenha nascido a lenda dos cavaleiros do Templo, que até hoje obsidia as mentes desiludidas e desejosas, a história de uma potência sem limites que já agora não sabe mais sobre o que se exercitar...

Contudo, já no ocaso do mito, aparece Luís, o rei santo, o rei que tem por comensal o Aquinate, que ainda acredita na cruzada, mau grado dois séculos de sonhos e tentativas falidas pela estupidez dos vencedores, vale a pena tentar mais uma vez? Vale a pena, diz Luís, o Santo, os Templários topam, seguem-no na derrota, pois é este o seu dever, como justificar o Templo sem a cruzada? Luís ataca Damieta por mar, a praia inimiga é todo um reluzir de lanças e alabardas e auriflamas, escudos e cimitarras, bela e valorosa gente de se ver, diz Joinville cavalheiresco, que portam armas de ouro percutidas pelo sol. Luís poderia esperar, decide em vez disso desembarcar a qualquer custo. "Meus fiéis, seremos invencíveis se formos inseparáveis em nossa fé. Se formos vencidos seremos mártires. Se triunfarmos, a glória de Deus estará acrescida." Os Templários não vão na conversa, mas foram educados para serem cavaleiros do ideal, e tal é a imagem que devem apresentar de si mesmos. Seguiram o rei em sua mística loucura.

O desembarque incrivelmente teve êxito. Os sarracenos incrivelmente abandonam Damieta, tanto assim que o rei hesita em entrar na cidade pois não crê naquela fuga. Mas é verdade, a cidadela é sua e seus são os tesouros e as cem mesquitas que imediatamente Luís converte em igrejas do Senhor. Agora se trata de tomar uma decisão: marchar sobre Alexandria ou sobre o Cairo? A decisão prudente teria sido Alexandria, para subtrair ao Egito um porto vital. Mas lá estava o génio mau da expedição, o irmão do rei, Robert d’Artois, megalómano, ambicioso, sedento de glória e impulsivo, como todo o benjamim. Aconselha a marcha sobre o Cairo, coração do Egito. O Templo, a princípio prudente, obedece contrariado. O rei havia vetado as escaramuças isoladas, mas é o marechal do Templo que infringe a proibição. Vê um destacamento de mamelucos do sultão e grita: "Vamos a eles, em nome de Deus, pois não posso suportar uma vergonha destas!"

Os sarracenos em Mansurah se entrincheiram do outro lado de um rio, os franceses tratam de construir um dique para poderem vadeá-lo, protegendo-o com suas torres móveis, mas os sarracenos aprenderam com os bizantinos a arte do fogo grego. O fogo grego tinha uma ponta grossa como um barril, a cauda era como uma grande lança, chegava como um raio e parecia um dragão que voasse pelos ares. E desprendia tal luz que o campo ficava claro como se fosse dia. Enquanto o campo cristão está todo em chamas, um beduíno traidor indica ao rei um vau, por trezentos besantes. O rei decide atacar, a travessia não é fácil. Muitos se afogam e são arrastados pelas águas, e na margem oposta estão à espera trezentos sarracenos a cavalo. Porém, o grosso do exército finalmente toca em terra, e de acordo com as ordens os Templários cavalgam na vanguarda, seguidos do conde de Artois. Os cavaleiros muçulmanos põem-se em fuga e os Templários esperam o resto do exército cristão. Mas o conde de Artois avança com os seus em perseguição do inimigo.

Então os Templários, para não ficarem desonrados, lançam-se também eles ao ataque, mas cavalgando apenas na retaguarda de Artois, que já invadiu o campo inimigo e andava a fazer estragos. Os muçulmanos empreendem a fuga em direção a Mansurah. Para Artois, é como um convite para a festa, e toca a persegui-los. Os Templários tentam detê-lo, o irmão Gules, comandante-em-chefe do Templo, lisonjeia-o dizendo que Artois já havia realizado uma empresa admirável, das maiores empreendidas em terras de ultramar. Mas Artois, janota sedento de glória, acusa de traição os Templários, aduzindo ainda que, se tivessem querido, os Templários e os Hospitalários aquela terra já teria sido conquistada há muito, e ele próprio dera uma prova do que se podia fazer quando se tinha sangue nas veias. Era demais para a honra do Templo. O Templo não se deixa secundar por ninguém. Todos se atiram em direção à cidade, invadem-na, seguem o inimigo até às muralhas do lado oposto, e naquele instante os Templários se dão conta de estarem repetindo o erro de Ascalão. Os cristãos, Templários inclusive, demoraram-se em saquear o palácio do sultão, os infiéis se reorganizam, precipitam-se sobre aquela malta de aves de rapina, já agora dispersa. Será que os Templários mais uma vez se deixaram cegar pela cobiça? Já outros afirmam que, antes de seguir Artois na invasão da cidade, o irmão Gules lhe dissera com lúcido estoicismo: "Sir, eu e meus irmãos não temos medo e vos seguiremos. Mas sabei que duvidamos, e muito, que ambos possamos retornar." Em todo o caso, Artois, graças a Deus, acaba sendo morto, e com ele tantos outros bravos cavaleiros, inclusive duzentos e oitenta Templários. Deus seja louvado por tudo que lhe mandar, e grossas lágrimas lhe rolam dos olhos.

Mas não é sempre balé, por angélico e sanguinário que seja. Morre o grande mestre Guillaume de Sonnac, queimado vivo pelo fogo grego, o exército cristão, em razão da fedentina dos cadáveres e da escassez de víveres, acaba vítima do escorbuto, a armada de são Luís está a caminho, o rei é minado pela disenteria, de tal forma que tem de cortar o fundilho dos calções para ganhar tempo em meio das batalhas. Damieta é perdida, a rainha tem de pactuar com os sarracenos e lhes paga quinhentas mil liras tornesas para salvar a vida. Mas as cruzadas se faziam com teologal má-fé. Em São João de Acre, são Luís foi acolhido como triunfador e toda a cidade se dirige ao seu encontro em procissão, com o clero, as mulheres e as crianças. Os Templários conhecem a história toda e procuram entrar em tratativas com Damasco. Luís vem a sabê-lo, não admite ser apeado do trono, excomunga o novo grão-mestre em frente dos embaixadores muçulmanos, e o grão-mestre desrespeita a palavra dada aos inimigos, ajoelha-se diante do rei e lhe pede perdão. Não se pode dizer que os cavaleiros não se tenham batido bem, e desinteressadamente, mas o rei de França os humilha, para reafirmar seu poder - e para reafirmar seu poder, meio século depois, seu sucessor Filipe os mandará à fogueira.

Em 1291 São João de Acre é conquistada aos mouros, todos os seus habitantes são imolados. O reino cristão de Jerusalém chega ao fim. Os Templários estão mais ricos, mais numerosos e mais poderosos que nunca, criados para combater na Terra Santa e na Terra Santa não se encontram mais.Vivem esplendidamente sepultados nas capitanias de toda a Europa e no Templo de Paris, e sonham ainda com a esplanada do Templo de Jerusalém em seus tempos de glória, com a bela igreja de Santa Maria de Latrão constelada de capelas votivas, com buquês de troféus, e um rebuliço de forjas, selarias, lojas de fazendas, celeiros, uma cavalariça para dois mil cavalos, um enredar de escudeiros, fâmulos, turcópolos, as cruzes vermelhas sobre os mantos brancos, as cotas castanhas dos auxiliares, os enviados do sultão com grandes turbantes e elmos dourados, os peregrinos, um emaranhado de belas patrulhas e estafetas, e a euforia dos cofres cheios, o porto do qual partiam ordens e disposições e encargos para os castelos da mãe-pátria, das ilhas e das costas da Ásia Menor...

Tudo acabou, meus pobres Templários.

Percebi aquela noite, no Pilades, já então no quinto uísque, que Belbo estava me dando corda, que eu estava sonhando, com sentimento (que vergonha), mas em voz alta, e devo ter contado uma história belíssima, com paixão e compaixão, porque Dolores estava com os olhos lúcidos, e Diotallevi, precipitado na insânia de uma segunda água tónica, volvia os olhos seráficos para os céus, ou antes para o teto nada sefirótico do bar, e murmurava: "E talvez fosse tudo isso, almas perdidas e almas puras, palafreneiros e cavaleiros andantes, banqueiros e heróis...

"Certo que eram singulares", foi a síntese de Belbo. "Mas, Casaubon, quero saber se os ama?"

"Faço uma tese sobre eles, e quando se faz uma tese seja lá sobre a sífilis a gente acaba amando o treponema pálido."

"Belo como um filme", disse Dolores. "O caso é que agora tenho que me mandar, estão ouvindo, pois amanhã bem cedo vou circular uns volantes por aí. Vamos ajudar nos piquetes na Marelli."

"Tu é que tens sorte, que ainda te podes permitir essas coisas", disse Belbo. Ergueu a mão fatigada e acariciou-lhe os cabelos. Pediu, disse, o último uísque. "É quase meia-noite", observou. "Não falo por causa dos humanos, mas por Diotallevi. Porém, terminemos a história, quero saber do processo. Quando, como, porquê..."

"Cur, quomodo, quando", assentiu Diotallevi. "Isso, isso."

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