sexta-feira, 7 de agosto de 2020

O cérebro é plástico, mas não é de plástico




Uma das características do cérebro, que durante muito tempo foi ignorada, é a sua plasticidade que continua pela vida fora, não sendo exclusivo da criança. A plasticidade do cérebro é a sua capacidade de se adaptar continuamente a novas circunstâncias. Tem a ver com a aprendizagem. E a verdade é que ao longo de uma vida temos sempre de lidar com coisas novas. E este encontro implica novos caminhos. Há uma enorme capacidade para a mudança no cérebro adulto, limitada apenas pelo declínio natural da velhice. O cérebro adapta-se continuamente ao ambiente que o rodeia. Mas para manter uma competência aprendida, tem de ser continuamente exercitado, porque senão essa competência desaparece ou enfraquece.

É o cérebro que gera a consciência. Mas a consciência é uma propriedade do ser vivo completo. Obviamente o cérebro não tem consciência. Para avaliarmos o critério, de uma pessoa estar ou não consciente, temos de observar essa pessoa, plena e total, e não o seu cérebro. O mesmo se aplica ao conhecimento. Quem conhece é: o animal, a pessoa, a João, o gato da João – e não o seu cérebro.

A ideia central é: viver e conhecer são atributos indissociáveis de qualquer ser vivo. E em alguns seres vivos, não em todos, a consciência é indispensável para conhecer. O ser humano para viver precisa de conhecer o meio ambiente e conhecer-se a si próprio. E para isso precisa de estar consciente. A consciência não é uma coisa que se tenha dentro da cabeça, é uma propriedade, ou uma função, que se tem. Portanto, a consciência é um processo dinâmico e funcional. É necessário que compreendamos estas questões, como, por exemplo, compreender que a cognição, ou o processo de conhecimento, são processos que fazem parte do viver. E quem vive são animais, plantas, pessoas. Pode ser excessivo, ou até abusivo, usar este conceito de conhecimento e aplicá-lo também às plantas, ao reino vegetal. Mas limitemo-nos então apenas ao reino animal, para não chocar, e digamos que a cognição é a atividade que garante aos seres vivos a sua geração e perpetuação. Por outras palavras, a cognição é o próprio processo da vida.

Assim, a atividade organizadora dos sistemas vivos, e falemos em sistemas vivos para incluir aqui também, por exemplo, os corais, ou seja, todos os níveis de vida, para utilizar a expressão 'mental' como metáfora de toda a atividade viva. Assim, pode dizer-se que as interações de um organismo vivo com o ambiente – seja ele vegetal, animal ou humano – são interações cognitivas. Vida e cognição são conceitos inextricáveis. A mente – ou melhor, a atividade mental – é algo que emerge naturalmente dos níveis da matéria para os níveis da vida. E a mente envolve todo o processo da vida – perceção, emoção, comportamento – e nem sequer depende necessariamente da existência de um cérebro, ou de um sistema nervoso.

A frase: quem conhece não é o cérebro, mas sim o animal, seja ele humano ou não humano – exprime uma proposição, porque tem valor de verdade. O que interessa nas frases é o que queremos dizer com elas, exprimindo ideias ou conceitos. Mas nem todas as frases exprimem proposições. Só as frases assertivas, ou declarativas, ou seja, que fazem afirmações, são proposições. E diz-se que as proposições têm valor de verdade, porque em relação à verdade: ou são verdadeiras; ou são falsas.

A metáfora do computador para explicar a mente consciente humana tem muitas limitações: a começar pelo facto de a mente consciente ser uma emanação dos sistemas vivos. E o computador é um mero artefacto não vivo, e não consciente, ainda que se possa dar de barato que seja uma extensão da mente humana. E a mente humana implica experiência subjetiva, que é uma experiência consciente, ainda que tenha surgido espontaneamente da natureza sem qualquer plano ou intenção. Ao passo que o computador não é nada disso, resulta de um propósito humano. E tudo o que o computador faz é sempre numa perspetiva humana, e não numa perspetiva de computador. Por outro lado, a experiência consciente é uma propriedade que surge espontaneamente sem que para isso tenha de existir um local específico no cérebro para a executar. É um processo dinâmico e holístico que pode envolver todo o cérebro conforme os vários níveis de consciência que podem existir: o nível da consciência do sonho a dormir, e o nível do êxtase místico, são níveis extremos opostos do estado de consciência comum que temos no nosso dia-a-dia, como quando comemos brincamos ou escrevemos. Os estados conscientes surgem e desaparecem continuamente mobilizando muitas funções cerebrais diferentes.

Não podemos conceber uma cor sem estar agarrada a uma superfície. E mutatis mutandis, não podemos pensar numa superfície sem cor. Podemos usar este exemplo como analogia aplicando-a à relação entre a mente humana e o indivíduo humano, a tradicional relação mente-corpo. Não podemos conceber a mente humana sem estar "agarrada", passe a expressão, a um corpo de uma pessoa. E, com as devidas proporções, não podemos pensar a pessoa sem uma mente.

Tudo isto pode oferecer ainda mais dificuldades consideráveis na sua compreensão quando a ideia de o cientista ser neutro, quando estuda a mente humana, ser uma falácia. Só um cientista marciano seria neutro. Mas parece que não há marcianos. Podemos simplesmente dizer que em qualquer investigação antropológica, fenomenologicamente orientada ou não, o homem é em simultâneo o sujeito e o objeto desse estudo. A mente humana, e até a biologia no seu todo, não é como a matemática: 2+2 são 4 e viva o velho, não há mais nada a dizer. Não há nenhum investigador da mente e da consciência humana que se possa distanciar suficientemente da sua humanidade para afirmar que estuda a autoconsciência, ou a sua própria subjetividade, com a máxima objetividade. O investigador é um sujeito de atos antes de ser investigador, ou seja, alguém que que já realiza a consciência na sua vertente subjetiva, ou de primeira pessoa, antes ainda de ter compreendido a sua natureza.

Bom, sabemos que o nosso pensamento, e, por conseguinte, a linguagem, contém centenas de metáforas primárias, a maioria das quais nós as usamos sem ter consciência disso; e, uma vez que se originam das experiências corpóreas mais básicas, as metáforas primárias tendem a ser as mesmas na maioria das línguas. Nos nossos processos abstratos de pensamento, nós combinamos as metáforas primárias de modo a formar outras metáforas mais complexas, e isso nos habilita a lançar mão de um rico imaginário e de estruturas conceptuais subtis quando refletimos sobre as nossas experiências de vida. O ato de conceber a vida como uma viagem, por exemplo, nos permite fazer uso de todo o conhecimento que temos das viagens para refletir sobre como levar uma vida significativa.

As organizações vivas, como sociedades, estados ou nações, não podem ser controladas através de intervenções diretas, como se fossem máquinas. Podem ser influenciadas através de impulsos, mas não com instruções de software. Assim, é muito raro as mudanças significativas das organizações sociais serem feitas exclusivamente por vontades. As mudanças nas sociedades E isto porque exige mudança de perceções. O que é tudo menos fácil. Essas mudanças a que me estou a referir. geralmente são espontâneas. Que quando acontecem, trazem consigo grandes recompensas. Quando trabalhamos com os processos intrínsecos dos sistemas vivos, não temos de despender um excesso de energia para pôr a organização em movimento. Não há necessidade de empurrá-la, puxá-la ou forçá-la a mudar. O ponto central não é nem a força nem a energia: é o significado. Perturbações significativas podem chamar a atenção da organização como um todo, e desencadear mudanças estruturais.

A partir do homo habilis, tudo indica que foi de um modo gradual e não abrupto, que os nossos ancestrais hominídeos transpuseram o abismo que separa os movimentos das mãos dos movimentos da boca para falar. A ciência ainda não compreendeu tudo o que esteve envolvido no surgimento da linguagem falada, particularmente no que respeita à sua componente sintática, mas sabe-se que evoluiu a partir da gesticulação e da habilidade das mãos que já vinha a ser desenvolvida por via dos movimentos para a fabricação de utensílios. Foi preciso também que se tivessem dado simultaneamente outros desenvolvimentos no cérebro para combinar símbolos de maneira a veicular significados. O que é interessante é o facto inequívoco de a linguagem e a consciência terem evoluído acompanhando a par e passo a evolução da capacidade tecnológica. 

O cérebro é apenas uma parte na produção da linguagem, uma vez que é o corpo todo que é envolvido.  É com a movimentação do nosso corpo que nós criamos as nossas estruturas conceptuais e modos de raciocínio. Muitos dos nossos raciocínios abstratos nascem da nossa experiência corpórea. O enigma foi resolvido pela neurologista Doreen Kimura, que descobriu que a fala e os movimentos precisos das mãos da linguagem gestual, para surdos e autistas, são controlados nas mesmas regiões do cérebro. O facto mais extraordinário, e a princípio totalmente inesperado, foi que as crianças autistas começaram a falar depois de terem estado a aprender sinais da linguagem gestual durante algumas semanas. É como se estas crianças tivessem percorrido o caminho evolutivo de dois milhões de anos dos nossos ancestrais hominídeos apenas em poucas semanas. Seja como for, ainda persiste a ideia de ter sido há 200.000 anos que o homem passou a falar como fala hoje, na qualidade de homo sapiens.

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