domingo, 30 de agosto de 2020

Uma multidão


O caráter de uma multidão é mais do que a soma dos indivíduos que a formam. Ou seja, não é pelo comportamento individual dos membros que a formam que podemos avaliar os efeitos da multidão como entidade única.


Às Portas de Brandemburgo 20.000 pessoas num mar de cartazes, exibindo slogans para vários gostos, desde teóricos da conspiração a acusar Bill Gates, símbolos de grupos conotados com a extrema direita, e até com Ramakrishna, sem máscara nem distanciamento, desafiam as autoridades que não tinham autorizado a manifestação. Mas o tribunal solicitado a intervir, deferiu a autorização da manifestação, com a ladainha do cumprimento das regras emanadas pela autoridade de saúde pública. O tribunal determinou que o uso de máscara no protesto não é obrigatório, mas que os participantes devem manter uma distância de 1,5 metros entre si.

O protesto, intitulado “Festa da liberdade e da paz”, reúne “pensadores livres”, ativistas anti-vacinas, adeptos das teorias da conspiração, militantes da extrema-direita ou até comerciantes que prejudicados pelas restrições. Uma multidão muito heterogénea, com pessoas de todas as idades, famílias com crianças, enquadrada por um forte dispositivo policial de cerca de 3.000 agentes. “Não sou simpatizante da extrema-direita, estou aqui para defender as liberdades fundamentais”, afirmou um manifestante, Stefan, um berlinense de 43 anos, com uma t-shirt com a inscrição “Pensar ajuda!”, ouvido pela agência France-Presse (AFP). “Estamos aqui para dizer que é preciso ter atenção. Com ou sem crise do coronavírus, temos de defender as nossas liberdades”, disse Christina Holz, uma estudante de 22 anos, que usava uma t-shirt pedindo a libertação de Julien Assange, fundador da Wikileaks detido no Reino Unido

As pessoas, a começar pelos comentadores e pivôs dos telejornais, manifestam-se estupefactas com este tipo de manifestações de protesto em maça não apenas em Berlim, mas também em Paris e Londres, contra a obrigatoriedade do uso da máscara na rua, numa altura em que os casos de infectados com o SARS-CoV-2 está de novo a subir em flecha nessas cidades. 

Ora, isto é caso para dedicarmos um tempinho a estudar o assunto, pedindo ao Ramalho que vire a página e volte a ler de novo. Esta é a ciência da convivência social em contexto, analisando o comportamento das pessoas a fim de seguirmos a exploração da natureza humana agrupada numa multidão. O enigma do fenómeno humano formatado em multidão. As influências situacionais das manifestações nas ruas são variadas na sua natureza, mas esta não tem aparentemente ligação direta com o tipo de crises que mobiliza as pessoas para a rua a fim de protestar. Agora, há um padrão que é constante: no meio de uma multidão as pessoas modificam-se. A conformidade é a cola que ajuda a manter a sociedade coesa. Ela mantém as ruas lotadas da cidade em sincronia durante um determinado tempo.

Seguir o grupo pode-nos conduzir através de situações desafiadoras, mas não garante o acerto, nem mesmo um resultado positivo. Em alguns casos, as consequências de conformidade podem ser totalmente destrutivas. A conformidade pode contribuir para o funcionamento eficiente da sociedade. Mas as pessoas estão a conformar-se demais, entrando num processo de automatismo. E isso não é bom porque retira o sentido crítico necessário à eficácia da ação. O rumo dos acontecimentos pode ser diferente se várias pessoas, ou até apenas uma, acabar por liderar o rebanho ousando questionar com mais vigor o rumo dos acontecimentos.

Nós, humanos, temos por hábito nos debater com perguntas sobre o eu. A questão de quem realmente somos nos impulsiona a fazer viagens inspiradoras de autoexploração, mas também nos conduz a revelações preocupantes de deficiências pessoais. E é aqui que surge o momento do eu cultural. Os processos de autopercepção dependem do contexto. E a introspecção gera informações diferentes em momentos diferentes. O sentido do “Eu” varia, dependendo de com quem se está. A identidade é maleável e as preferências pessoais são construídas na hora. Mas nada disso é mau. Então você não é a pessoa que pensou que fosse, pelo menos não o tempo todo. Nenhum de nós é um produto acabado. Quando acreditamos que há um “Eu” verdadeiro esperando para ser descoberto, é quando damos com os burros na água. O nosso potencial parece que se estreita, e o mundo à nossa volta parece estar cheio de ameaças que carecem de explicação.

Tal como acontece com grande parte da vida diária, esse processo de introspeção está sujeito ao poder do contexto. Ou seja, a conclusão de que as situações importam não se limita ao comportamento público ou ao que pensamos sobre os outros. Mesmo a mais particular das perceções - o nosso próprio sentido de eu - é influenciada por onde estamos e com quem estamos, embora possamos resistir quando são outros que nos dizem diretamente o que somos ou deveríamos ser. Em outros casos, usamos o desempenho dos outros como ponto de comparação mental. Esta influência de outras pessoas sobre a forma como pensamos o “Eu” prende-se com o carácter social que o “Eu” comporta. Contextos sociais mais amplos influenciam a nossa percepção do “Eu” de forma significativa. É a cultura em que crescemos que nos ensina a pensar sobre nós mesmos, tanto através do ensino explícito como por sinais subliminares. Na cultura ocidental, enfatizamos o que nos distingue das outras pessoas. Cada pessoa é incentivada a explorar o seu potencial. E assim, a frase muito em voga nos últimos dias “Black Lives Matter” é um exemplo disso. Todos somos especiais. É preciso elevar a nossa autoestima, como quem diz “quem chora mama”. Ao passo que nas culturas asiáticas, como a China e Japão, o “Eu” é enquadrado numa visão mais interdependente, assim como em muitas culturas africanas e latino-americanos. Nessas sociedades, a identidade é tipicamente um conceito mais coletivista que enfatiza a ligação entre o indivíduo e aqueles ao seu redor. Ou seja, o “Eu” é pensado mais significativamente em termos de relações com os outros e como alguém se encaixa na trama da sociedade como um todo.

Claro que, como ocorre com qualquer generalização, essa divergência de mentalidade cultural é uma tendência, e não uma regra. A excelência individual e a realização pessoal não são ignoradas nas sociedades asiáticas, nem a coesão interpessoal é um conceito estranho para os americanos. Ora a psicologia das multidões tem recebido ultimamente grande atenção por parte dos cientistas sociais devido ao novo paradigma mediático resultante do efeito da Internet. Seres humanos conectados por redes sociais vulneráveis à manipulação por meio de mecanismos automatizados de difusão de desinformação.

A teoria do contágio, formulada por Gustave Le Bom, afirma que uma multidão exerce uma influência hipnótica sobre os seus membros. Protegidos por anonimidade, as pessoas abandonam a sua responsabilidade individual e cedem às emoções contagiosas da massa. Assim, a multidão assume vida própria, agitando emoções e conduzindo as pessoas para irracionalidade, que muitas vezes termina em violência. No entanto, o paradigma que tem norteado a opinião dos sociólogos até agora não tem demonstrado que exista uma tal "mente coletiva".

Entretanto a teoria de Gustave Le Bom tem sido reformulada com o contributo de autores de variadas tendências epistemológicas. Segundo Robert Park, as interações sociais se fortalecem quando as pessoas sob pressão partilham o mesmo tipo de emoção, de maneira que os indivíduos tendem a refletir o comportamento coletivamente. Qualquer pessoa pode agir como líder do grupo por meio de ações autoritárias, e esta posição pode variar de acordo com a situação. Membros da multidão tendem a seguir o líder instintivamente. Freud também teorizou o fenómeno das multidões, segundo ele, quando uma pessoa se torna membro de uma multidão, a sua mente inconsciente é liberta. A multidão fornece uma libertação momentânea de desejos reprimidos. Apesar de a sua teoria ser útil para explicar o comportamento de massas, argumenta-se que ela não é fundada em observação factual. Em alguns casos, massas podem ser a manifestação de desejos reprimidos, mas isso não é verdade para todas as multidões.

A tradição da identidade social assume que as massas são formadas por múltiplas identidades, e constituem sistemas complexos, ao invés de um sistema unitário, uniforme. Esta teoria destaca a distinção entre identidade pessoal, que se refere a características únicas de um indivíduo, e a identidade social, que se refere ao próprio reconhecimento do indivíduo como membro de uma determinada categoria social. Embora tais termos possam ser ambíguos, é importante salientar que todas as identidades são sociais no sentido de definir uma pessoa em termos de relações sociais. E que a identidade social é o que conecta e aproxima os membros de uma multidão.

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