terça-feira, 11 de agosto de 2020

Interseccionalidade


Não se sabe bem como é que as sociedades acolhem ideias radicais estapafúrdias, sem que as interroguem devidamente antes de as transformarem em chavões e ideias feitas. Interseccionalidade é um tema de estudo recente, que consiste na sobreposição, ou intersecção, de várias questões que têm a ver com os sistemas de opressão, discriminação e dominação que incidem num leque substancial de identidades. Ultimamente a imprensa está cheia de artigos, e as livrarias de livros, chamando a atenção para a teoria interseccional, que só recentemente saiu para fora do círculo académico das faculdades de ciências sociais, onde a doutrina já circula há anos, sobretudo nos EUA, visando culpabilizar o 'homem branco', e discriminar positivamente, ou favoravelmente, as minorias incluídas num espectro muito abrangente, entre a raça e o género. 


Laith Ashley, um/a proeminente modelo transgénero, quando numa entrevista lhe perguntaram se ele encontrou alguma discriminação por ter transmigrado de mulher para homem, ele respondeu que não. Mas salientou que alguns ativistas lhe disseram que ele havia ganhado privilégios de macho. Como é que ele poderia posicionar-se na escala opressora: se deu um par de passos à frente por se ter tornado homem?; quando estava um par de passos atrás por ser de cor?; embora um passo à frente na diagonal por ser um preto claro. Ele passava o cabo dos trabalhos para equilibrar tanta contradição ao mesmo tempo, quando ainda por cima se sentia uma pessoa muito atraente.

É claro que o que aconteceu recentemente na América, um polícia assassinar um homem negro asfixiando-o sadicamente com o joelho até à morte: não tem perdão; e deve ser exemplarmente punido e tudo o que seja preciso fazer para que tal ato bárbaro não volte a ser praticado. Entretanto o mundo indignou-se e revoltou-se contra este estado de coisas que ainda acontecem nos dias de hoje.

O que merece agora ser analisado é o comportamento dos radicais nesta maré de protestos que veicula doutrinas, como aquela que ataca o “privilégio branco”, metendo tudo no mesmo saco. O homem branco desempregado, ou explorado com salário de miséria, terá esse privilégio? E como classificaremos essas pessoas em conjunto com mulheres negras ricas? Todas estas ideologias, para além de parecerem contraditórias em muitos pontos, também parecem fingir justiça quando a realidade não bate a bota com a perdigota. Por exemplo, está a verificar-se que a Google, Facebook, e outros, estão a tentar moldar os seus utilizadores nessa linha, manipulando o passado com revisionismos históricos insidiosos e escandalosos. 

Uma música de Migue Araújo, lançada num single em 2012 - "Os Maridos das Outras" - e fazendo parte do álbum do mesmo ano intitulado "Cinco dias e meio", nos seguintes verso diz:


Toda a gente sabe que os homens são lixo
Gostam de músicas que ninguém gosta
Nunca deixam a mesa posta
Abaixo de bicho, abaixo de bicho
Toda a gente sabe que os homens são lixo


Estes versos têm graça, mas ao mesmo tempo parece uma piada ao extremismo feminista que na realidade usa essas expressões como discurso de ódio contra os homens – a chamada "misandria do feminismo da quarta vaga" – feministas que chegaram a proclamar nas suas manifestações nos EUA slogans como: “Os homens são lixo”; “Matem todos os homens”. As feministas mais antigas, as da primeira e segunda vaga, consideram-nas uma vergonha. A igualdade de género que as feministas da primeira e da segunda vaga lutaram não tem nada que ver com esta última variedade de feminismo. O mesmo se passa com a cartada racial que, sob o pretexto dos estudos universitários, inventaram coisas como "estudos da branquitude", uma "disciplina" dedicada à "problematização" dos brancos.

Género, sexo, raça, classe, sexualidade, religião – podem-se combinar para catalogar a discriminação e privilégio. A interseccionalidade identifica vantagens e desvantagens sentidas pelas pessoas devido a uma combinação de fatores. Por exemplo: uma mulher negra tem um negócio, que por combinações de múltiplos inerentes ao negócio, tal como acontece com qualquer negociante, o negócio está a enfrentar dificuldades; os primeiros fatores que invadem o espírito da negociante negra são dois sentimentos - o de raça e o de género - e sente que está a ser discriminada por isso, quando todos os homens de negócio sabem que 
o negócio não discrimina negros, nem o seu género. São combinações de outros fatores. Mas a interseccionalidade amplia as lentes das ondas do feminismo que inicialmente se concentraram nas experiências das mulheres da classe média, para incluir agora as diferentes experiências de mulheres de cor, mulheres pobres, mulheres imigrantes e outros grupos. O que acontece agora, na verdade, é que o feminismo interseccional visa separar-se do feminismo branco, uma vez que as experiências e identidades das mulheres de cor, que não são apenas negras, mas hispânicas e asiáticas, são diferentes das experiências e identidades das mulheres brancas do passado. 

Resumindo, a interseccionalidade é uma estrutura analítica qualitativa desenvolvida em finais do século XX, identificando os sistemas de poder que afetam os marginalizados da sociedade, a fim de promover a igualdade social e política. Assim, a  interseccionalidade opõe-se aos sistemas analíticos que tratam cada fator opressor isoladamente, como se a discriminação contra as mulheres negras pudesse ser explicada apenas como uma simples soma da discriminação contra os homens negros e a discriminação contra as mulheres brancas. A interseccionalidade envolve temas semelhantes como opressão tripla, que é a opressão associada a ser uma mulher, pobre, e de cor. Os defensores da justiça social e das políticas de identidade e intrseccionalidade sugerem que vivemos em sociedades racistas, sexistas, homofóbicas e transfóbicas. Sugerem que estas opressões estão interligadas e que, se pudermos aprender a ver através desta teia e a desenredá-la, podemos finalmente desligar as opressões interligadas do nosso tempo. Depois disto, algo acontecerá. Esta é a base de uma moralidade completamente nova. É assim que se pratica a compaixão, lutando por causas e exaltando-as. É esta a nova forma de mostrar que se é boa pessoa. 

Como esta moralidade nova ataca sobretudo o branco europeu, sem qualquer contemplação, não faltam os críticos que classificam esta nova moralidade de injusta e ambígua, uma vez que a Europa é o lugar onde abundam os melhores exemplos e não o contrário. E esta objeção é pertinente, quando a evidência ainda mostra que há 73 países onde é ilegal ser gay, e 8 em que isso é punido com pena de morte. Mas nenhum é europeu. Em países por todo o Médio Oriente e África são negados às mulheres alguns dos direitos mais básicos de todos, onde ocorrem explosões de violência entre etnias. Até a África do Sul, onde brilhou a estrela das melhores estrelas contra o racismo e a xenofobia – Nelson Mandela – tem visto recentemente o regresso de moçambicanos para Moçambique depois de terem sido atacados com dezenas de mortos e milhares de desalojados. 

A ambiguidade da interseccionalidade significa que ela pode ser percebida como desorganizada e sem um conjunto claro de objetivos definidores. Como o foco se baseia na subjetividade das experiências pessoais, as contradições são muitas quanto à identificação das causas da opressão. Daí que essa sede de justiça social pareça paradoxal, quando é apontada a culpa ao homem branco europeu, quando se sabe inequivocamente, que não há outro lugar no mundo onde os direitos sociais e a proteção das minorias seja mais respeitada do que na Europa. Talvez este paradoxo seja deslindado com a seguinte observação: “as queixas de violações dos direitos humanos, porque é demasiadamente humano, só acontecem onde elas podem ser exprimidas livremente. Daí ocorrerem na proporção inversa em relação aos outros países, sobretudo naqueles onde essas violações existem em fartura, mas queixas zero. O que se passa? Simplesmente porque nesses países não podem ser livremente denunciadas. Só numa sociedade verdadeiramente livre se permite a queixa. E até o incentivo à queixa das suas próprias iniquidades. 

Seja como for, este espírito de acusação, com ódio e ressentimento, espalhou-se com uma velocidade superior à que seria humanamente admitida, na medida em que parece que as pessoas enlouqueceram em massa quando dizem que todo aquele que não alinhe nisto é um opressor. As pessoas deviam compreender que é impossível conciliar tantas contradições em conflito numa só luta. Há pessoas que se vestem duma forma extravagante para se apresentarem de forma ridícula, para provocar e experimentar as reações; e depois queixam-se que são ridicularizadas por pessoas preconceituosas e maldosas, como quando na rua alguém lhes manda um piropo. 

Sem comentários:

Enviar um comentário