quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Espectros e fantasmas sensoriais


No post anterior falei de alucinações, mas apenas de raspão. Então agora vai ser um pouco mais a sério decorrente da experiência médica natural. Posso começar por falar da experiência dos membros-fantasma das pessoas que sofrem amputação, experiência essa que não é tão rara como se possa pensar.

O membro-fantasma é o sentimento alucinatório que faz com que pareça a uma pessoa que foi amputada a continuação de possuir a parte do membro que já lá não está.

Descartes, nas suas Meditações Metafísicas, 1641, observa que, tal como o sentido da vista nem sempre era fiável, assim poderiam ocorrer também "erros de juízo" nos "sentidos internos", e escreveu: "aconteceu-me saber por pessoas cujo braço ou a perna haviam sido cortados, que em certas ocasiões continuavam a sentir dores na parte do corpo que tinham perdido, o que me fez pensar que não podia ter sequer a certeza de que um dos meus membros estava afetado quando nele sentia dores."

O que é ainda mais curioso, é o facto de os próprios amputados se inibirem a descreverem essas sensações, por medo que os acusem de estar a delirar. Toda a gente já ouviu falar, ou até mesmo alguns já tenham assistido às alucinações delirantes dos alcoólicos crónicos, quando por algum motivo, entram em abstinência. É provável que houvesse um saber popular e tradicionalmente transmitido acerca do fenómeno do membro-fantasma muito antes de qualquer descrição médica. A primeira descrição médica é de Weir Mitchell, em 1870, depois da sua experiência com mutilados da guerra. Mas vinte anos antes, Melville havia incluído em Moby Dick uma cena que nos mostra o carpinteiro do navio a tirar as medidas ao Capitão Ahab, a fim de lhe fazer uma perna em osso de baleia. Ahab dirige-se ao carpinteiro nestes termos:
Olha, carpinteiro, ouço dizer que te consideras como um bom e honesto operário que conhece o seu ofício, eh? Bem, então, sabes o que seria um bom testemunho para a tua obra? É se, quando eu pudesse essa perna que estás a fazer, sentisse apesar dela outra perna ligada no mesmo lugar, quer dizer, carpinteiro, se sentisse a minha velha perna perdida, a de carne e de sangue, compreendes? Não sérias capaz de recomeçar o velho Adão? 

O carpinteiro responde: Realmente, senhor, começo agora a compreender alguma coisa do que tem estado a dizer. Sim, ouvi coisas curiosas em tudo isso, meu senhor; como um homem desastrado não perde inteiramente o sentimento do seu velho mastro, mas que lhe comichão ainda às vezes. Posso humildemente perguntar-lhe se é realmente assim, meu senhor? 

Assim é, homem. Olha, põe a tua perna viva num lugar onde estava antigamente a minha; assim, se há, contudo, uma única perna que me pertença, para a vista, há duas para a lama. Aí sentes fremir a vida; aí, exatamente aí, aí onde eu a sinto"

Depois de Mitchell ter chamado a atenção para o assunto, outros neurologistas e psicólogos foram levados a estudar os membros-fantasma. Entre eles estava William James, que enviou um questionário a oitocentos amputados, que para isso recebeu a preciosa ajuda dos fabricantes de próteses. Responderam duzentos ao questionário. E James entrevistou pessoalmente alguns, cujo relato publicou num artigo de 1887 "The Consciousness of List Limbs" .

A razão do fenómeno só seria esclarecida um século mais tarde, quando se tornou possível visualizar através de ressonância magnética as grandes transformações na cartografia cerebral do corpo que podem ocorrer na sequência de uma amputação. Essas transformações podem ser rápidas e radicais.

As alucinações não acontecem apenas aos loucos. Estão mais frequentemente ligadas a falhas sensoriais, doenças ou lesões. Podem ocorrer em casos de enxaqueca. Ou podem aparecer com uma simples febre. Pessoas de luto podem receber visitas do falecido. De resto, o ser humano desde sempre procurou as alucinações através de substâncias. Em algumas condições as alucinações podem levar a epifanias religiosas, ou mesmo à sensação de saída para fora do corpo.

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