quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Acontecimentos – pequenos e grandes – 'o Mundo é o que é'

 

Mudar para sobreviver. A explosão do porto de Beirute é uma viagem sem regresso. o desfecho da crise libanesa terá repercussões geopolíticas – interessa à Europa, aos Estados Unidos, à Rússia, ao Irão e à China, que parece disposta a ocupar um eventual vazio.
Conceber a vida como uma viagem, permite-nos fazer uso de todo o conhecimento que temos das viagens para refletir sobre como atribuir um significado à vida. Porque é da vida humana que se trata, por mais que nos custe ver a cidade em ruinas. A linguagem contém centenas de metáforas primárias, a maioria das quais são usadas sem termos consciência disso, uma vez que se originam das experiências corpóreas mais básicas. Daí as metáforas primárias serem as mesmas em qualquer língua. É depois no processo abstrato de pensamento que combinamos as metáforas primárias de modo a formar outras mais complexas, o que nos habilita a lançar mão de estruturas conceptuais muito subtis quando nos pomos a filosofar sobre a nossa experiência de vida.

Quando certos males nos acontecem, aqueles males que nos aconteceram sem termos morrido, é frequente os outros, que nos rodeiam e nos veem nessa situação, geralmente aqueles que nunca passaram pela mesma situação, tenderem para usar eufemismos de conforto, dizendo coisas como "deixa lá, ainda bem que não morreste", como que a desvalorizar o sofrimento por que estão a passar. E então o sofredor recorre àquele provérbio, também para se consolar, e que define a situação em qualquer parte do mundo: “pimenta nos olhos dos outros é refresco”. Repito, esta é uma reação comum a qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. Por isso, é mais do 'Mundo' ser como é, do que ser um mau feitio de pessoas a lidarem com o sofrimento uns dos outros. Até nos pode passar despercebido, até ao dia em que acontece a nós. Nessa altura sentimo-nos muito ultrajados. E algumas pessoas até muito pesarosas, são capazes de ressarcir o outro conhecido - que já tinha passado pelo mesmo, mas que lhe foi sempre completamente indiferente – com palavras muito amáveis do género: “olha que tenho pensado muito em ti!”

A Natureza não se revolta. O que há na Natureza são acontecimentos encadeados uns nos outros. Assim, nesta cadeia, a partir do momento em que consideramos um acontecimento ter sido consequência de outro acontecimento, estabelece-se assim uma sequência em cadeia de causas e consequências que nunca mais param. Esta é a noção de continuidade na Natureza. 
A continuidade na Natureza, por estranho que possa parecer, não é incompatível com uma outra característica da Natureza: a criatividade que se liga a uma outra noção, a de novidade, ou de mudança. Ao invés, a esta noção dá-se o nome de discretização. Discretização é uma noção matemática em que uma distribuição contínua é transformada em unidades individuais. 

E faço agora entrar em cena o ser humano para dizer que das coisas que existem na Natureza, o ser humano é das coisas mais criativas que existem. Ora, toda a criatividade humana entra na cadeia das causas e consequências que temos vindo a considerar. Já as considerações que respeitam ao aspeto de essas consequências serem boas ou más, são considerações que dizem respeito apenas à esfera do humano, porque para a Natureza o resultado é neutro quanto à bondade ou maldade. Essa é uma avaliação que só aos seres humanos diz respeito. Assim como é indiferente para a Natureza a extinção das espécies; ou existir ou não o vírus x, y ou z. É nestas acrobacias do pensamento que podemos ter prazer de não ter tédio, e que existe também em qualquer parte do mundo. Nós europeus, é que na nossa tradição lhe demos o nome de filosofia, e outros lhe deram o nome de meditação, e assim. E
mbora possamos ter cansaço quando se atinge um certo ponto da vida vivida, cuja longitude temporal varia de pessoa para pessoa. É o cansaço dos velhos. 

No entanto, no Ocidente, há mais do que uma tradição filosófica. Há a tradição filosófica europeia dita ‘Continental’; e há a tradição ‘Analítica anglo-americana’. Aquela tradição teve um Edmund Husserl que legou à sua tradição a Fenomenologia, um método que passou ao lado da tradição Analítica anglo-americana durante muitos anos, porque introduziu alguns elementos das tradições orientais, como a meditação. E isso fez diferença. A Fenomenologia nas suas investigações parte de um princípio fundamental: tudo aquilo de que legitimamente falamos e a que atribuímos um valor de verdade dá-se na 'vida da consciência', a qual é, em primeiro lugar – natural; e em segundo lugar – a vida de cada um

Na tradição Analítica anglo-americana há uma tendência para dizer que tudo o que vem da estrutura social, que por sua vez é uma extensão da estrutura psíquica humana, não faz parte da Natureza. Ou dito de outra maneira, é isso que distingue no mundo humano as duas esferas: a esfera espiritual (na tradição Continental), mental (na tradição em língua inglesa); e esfera natural. No vocabulário inglês o espiritual é traduzido por mental. Da esfera mental faz parte, entre muitas outras áreas: a área da linguagem, dos significados e dos símbolos que dão um sentido à ética e à estética. Ao passo que são da esfera natural: o amor, o sexo, o erótico, mas também o medo, a raiva, e tudo o mais que tenha a ver com as emoções.

Seja como for, foi toda esta ingenuidade das duas tradições ocidentais que colocou a Razão no topo da pirâmide, como a peça de resistência que faltava para distinguir o animal humano dos outros animais. E foi desta ingenuidade que em meados do século XX partiu uma guerra entre académicos das ciências duras ou naturais, e académicos das ciências sociais e humanas, que ficou conhecida como a ‘guerra das duas culturas’ que ainda hoje faz eco nas diversas manifestações dos ‘ativistas por causas’.

Quando falo aqui da consciência humana e a sua natureza – e aproveito o sentido desta palavra ‘natureza’ com letra minúscula, para justificar porque é que escrevo Natureza com letra maiúscula – reporto para uma consciência humana sentida na primeira pessoa, tal como é sentida e percecionada pela própria pessoa possuidora de consciência, e não a consciência no sentido da descrição objetiva percecionada por outra pessoa, ou seja, na terceira pessoa. E esta chamada de atenção é para dizer que por aqui se pode compreender que, se até em termos físicos, ou biológicos, é difícil ter uma ideia completa da natureza humana, muito mais difícil é falar na natureza humana na sua vertente cultural e social. Daquela parte da natureza humana, que é caracterizada pelo impulso de se voltar para dentro, isto é, de refletir sobre si própria, só se pode dizer que fica numa obscuridade completamente inacessível às nossas capacidades cognitivas.

Aquilo a que a nossa tradição cristã chama espiritualidade é a presença da mente a elevar as emoções para níveis de consciência mais raros. É claro que o corpo também está presente na espiritualidade, na medida em que não pode haver emoções sem corpo. É evidente que vísceras e carne também fazem parte do espírito. Foi através desta conceção que a ciência entrou na elucidação do que é afinal o espírito. O que significa dizer que faz parte da Natureza viva ser criativa, e, como tal, é da essência da vida a sua renovação constante. E diz o cientista: "O surgimento da novidade é uma propriedade que é prerrogativa dos sistemas abertos."

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