quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A propósito de fake news de declarações de Joacine Katar Moreira acerca do QI dos afrodescendentes



Esta notícia foi avaliada pelo Polígrafo da SIC, em 24 de agosto de 2020, com o carimbo de falso.

A propósito desta notícia veio-me à memória o processo de avaliação do QI dos imigrantes por parte de cientistas americanos na viragem do século XIX para o século XX. Nesta história entra um tal Henry Herbert Goddard [1866-1957], um proeminente psicólogo e eugenista norte-americano do início do século XX. Ele é especialmente conhecido pelo seu trabalho de 1912 The Kallikak Famili: A Study in the Heredity of Feeble-Mindedness, que ele mesmo mais tarde passou a considerar um disparate. Foi ele que cunhou o termo “idiota” (QI 51-70) para rotular os débeis mentais, um termo que com o passar do tempo passou a ser usado como injúria. De 1906 a 1918, Goddard foi diretor de pesquisa na Vineland Training School for Feeble-Minded Girls and Boys, em Vineland, Nova Jersey. Foi o primeiro laboratório para o estudo do atraso mental. Atualmente os termos idiota e imbecil estão arraigados na linguagem injuriosa, mas naquela altura faziam parte de uma taxonomia bem precisa: os idiotas não dominavam com suficiência a linguagem falada acima dos três anos de idade. E os imbecis não conseguiam adquirir a capacidade de escrita acima dos sete anos de idade. E a seguir vinham as pessoas com idades mentais entre os oito e os doze designados por débeis metais. Estes trabalhos inseriam-se num programa mais vasto que pretendia evitar a entrada de imigrantes atrasados mentais na América do Norte.


Mas antes de prosseguir com a saga da imigração dos europeus para a América do Norte no dealbar dos anos 1900, e o QI, façamos o enquadramento do caso Joacine Katar Moreira, por um lado, e as narrativas eufóricas dos psicólogos eugenistas da viragem século XIX/século XX.


A introdução de quotas étnico-raciais foi uma das “bandeiras” da campanha de Joacine Katar Moreira para as eleições legislativas de 6 de outubro de 2019. A agora deputada não inscrita era a cabeça de lista do Livre por Lisboa e defendia que o sistema servia para reduzir assimetrias estruturais que só com dezenas de anos é que iam ser resolvidas. E não para valorizar uns e desvalorizar outros. “O ideal era que não fossem necessárias quotas para as pessoas que não estão em Portugal continental, o ideal era que não fossem precisas quotas para pessoas com deficiência, o ideal era que também não fossem necessárias quotas para mulheres. Isto no mundo ideal, só que infelizmente não vivemos no mundo ideal”, disse Katar Moreira numa entrevista à Agência Lusa em 14 de setembro de 2019. “Se existem essas quotas, é natural que também seja necessário a existência de quotas étnico-raciais”, defendeu na mesma altura. No entanto, a agora deputada nunca falou na criação de quotas étnico-raciais na educação pelo facto de os alunos afrodescendentes serem menos inteligentes, assim como nunca abordou o tema das prisões nessa perspetiva. Tal como Katar Moreira, o Livre também não fala de quotas nas prisões ou na educação, nem de um QI inferior nos afrodescendentes em comparação com os caucasianos. Portanto, a avaliação do Polígrafo é: Falso.


Uma vez que alegadamente Goddard tinha identificado o gene causador da deficiência mental, o remédio parecia ser bastante fácil: proibir a reprodução dos débeis mentais nativos, e impedir a entrada de elementos estrangeiros desse tipo no país. Assim, em 1912, Goddard e seus colaboradores visitaram a Ilha Ellis a fim de ver a melhor solução para identificar os deficientes mentais. A Ilha Ellis é uma ilha na foz do Rio Hudson que, ao longo do século XIX e começo do século XX, foi a principal entrada de imigrantes nos Estados Unidos. A ilha, situada no porto de Nova Iorque, é um símbolo da imigração para os Estados Unidos. Lê-se numa transcrição de declarações de Goddard:
[...] Naquele dia, pairava uma bruma sobre o porto de Nova Iorque e nenhum imigrante podia chegar a terra. Mas uma centena deles estava a ponto de sair do controlo. Por isso, pegou num rapaz que lhe pareceu um atrasado mental, e com a ajuda de um intérprete, já radicado, submeteu-o ao teste. Goddard, usando a escala de Binet, obteve o resultado: 8. Goddard disse que ele era um deficiente. Mas o intérprete reagiu dizendo: isso parece-me injusto, pois eu, quando vim para cá, se tivesse feito o teste nem isso atingiria.[...]
Mas Goddard, entusiasmado com as experiências, por ser o primeiro a introduzir a escala do célebre Binet na América, angariou fundos para realizar um estudo como devia ser. E então, na Primavera de 1913, enviou duas colaboradoras à Ilha Ellis para trabalharem durante dois meses e meio. Tinham instruções para selecionar os débeis mentais com um simples olhar, tarefa que Goddard preferia confiar a mulheres, a quem atribuía uma intuição inaptamente superior. 

Mais do lado americano do que do lado europeu, diga-se de passagem, foram adotados testes de inteligência para avaliar o grande contingente de imigrantes europeus que assolava o porto de Nova Iorque no início do século XX. O estado de pobreza e de fome era tal nesses imigrantes, que os americanos meteram na cabeça a ideia, que se tornou paranoica, que se tratavam de débeis mentais, e passaram a recear que, se não tomassem medidas, tal debilidade mental iria propagar-se por via genética a toda a América do Norte.

A Família Kallikak foi o grande objeto de estudo de Goddard - um estudo sobre a hereditariedade da debilidade mental, 1912. Goddard concluiu que várias características mentais eram hereditárias e que a sociedade deveria limitar a reprodução de pessoas que possuíssem essas características. O nome Kallikak é um pseudónimo usado como nome de família ao longo do livro. Goddard cunhou o nome das palavras gregas καλός / kallos que significa bom; e κακός / kakos, que significa mau.

Concluiu no estudo que todos eram descendentes de um soldado que entrou na Guerra dos Estados Unidos. Martin Kallikak casou-se com uma nobre mulher Quaker, todos os seus filhos eram crianças saudáveis sem sinais de atraso mental. Mais tarde foi descoberto que Kallikak tinha tido um relacionamento com uma jovem atiradiça. Como resultado dessa união, várias gerações de criminosos nasceram, a que Goddard chamou: "uma raça de degenerados defeituosos". No início o livro teve imenso sucesso. Mas não tardaram as críticas aos métodos utilizados. E o que é de assinalar é o facto de passados dez anos Goddard passou a concordar cos os seus críticos.

O uso incorreto dos testes de inteligência tiveram efeitos muito perniciosos. Por um lado reforçou a tese hereditária; segundo induziu a falácia da inteligência como um bloco, uma única entidade, uma grandeza escalonada situada na cabeça das pessoas. É uma falácia monstruosa pensar que a inteligência é algo herdável de forma irreversível, em vez de ser um conjunto de aptidões modificáveis pela educação. A falácia habitual consiste em supor que, se a herança explica determinada percentagem de variação entre os indivíduos pertencentes a um mesmo grupo, o mesmo deve explicar entre grupos distintos, por exemplo, entre brancos e de cor. 

Alfred Binet evitou estas falácias, mas os psicólogos americanos deturparam as intenções de Binet, achando que estavam a medir uma entidade chamada inteligência. Essa suposta objetividade esteve na base da Lei de Restrição da Imigração promulgada em 1924, através da qual se restringia o acesso aos Estados Unidos de pessoas provenientes de regiões "geneticamente" desfavorecidas. A teoria da hereditariedade do QI foi uma invenção americana. Quando Alfred Binet (1857-1911) decidiu estudar o QI, não podia pôr em causa o estado da ciência que vigorava na altura, como aliás nenhum cientista em qualquer época consegue fazer um trabalho de investigação desrespeitando as regras estabelecidas. E o que vigorava era a medição dos crânios. Assim, Binet escreveu em 1898: "A relação entre a inteligência dos indivíduos e o volume da sua cabeça foi confirmada por todos os investigadores metódicos sem exceção em várias centenas de sujeitos. É incontestável". 

Binet era incapaz de contestar Broca, que era vaca sagrada. Mas, cinco anos mais tarde, Binet já não tinha tantas certezas depois de ter estudado crianças nas escolas, comparando a medida dos seus crânios com a classificação dos professores acerca dos mais inteligentes e dos mais estúpidos. Não batia a cara com a careta. A dada altura, como Binet era um eminente psicólogo da Sorbonne, começou a temer a sua vulnerabilidade: por um lado à sugestão, que consistia na tenacidade dos preconceitos inconscientes; e depois era surpreendente como a maleabilidade dos dados quantitativos e objetivos se moldavam a uma ideia pré-concebida. Binet tinha visto o perigo quando a certa altura começou a aperceber-se da tentação inconsciente que tinha de arredondar para cima o volume da cabeça de uma criança inteligente, e de arredondar para baixo a de uma não inteligente. Binet e o seu discípulo Simon tinham medido as mesmas cabeças de indivíduos classificados de idiotas e imbecis no hospital onde Simon fazia estágio. E então Binet verificou que os valores de Simon eram claramente inferiores aos seus. E atirou o defeito às medições dele e não às de Simon. Mas da segunda vez, com as mesmas cabeças, fez questão de se preocupar com isso. E a verdade é que, como estava à espera, as diferenças foram menores. De facto, todas as cabeças haviam encolhido de uma experiência para a outra.

Binet já nessa altura temia aquilo que viria a ser chamado de "profecia que induz a sua própria realização". Corresponde àquela frase que os antigos professores, e já na sua idade, se dirigiam a um aluno, filho de um seu ex-aluno, com a seguinte frase: "tu és burro, que o teu pai já era burro".

É realmente muito fácil descobrir sinais de atraso num indivíduo quando se foi previamente advertido que ele é atrasado. Binet era contrário à posição dos hereditaristas, que consideravam uma criança atrasada para sempre. Como podíamos ajudar uma criança se lhe empigirmos um rótulo de incapacidade biologicamente determinada? Todas as suas advertências foram mais tarde ignoradas, e as suas instruções distorcidas pelos hireditaristas americanos.

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