quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Equívocos da perceção


O verdadeiro movimento dos espermatozoides, não é o único facto com que a ciência tem andado enganada há 370 anos, no que respeita aos fenómenos da visão e perceção. 
Descartes morreu em 11 de fevereiro de 1650.



A notícia prende-se com a rotação do espermatozoide. Recorrendo à microscopia em 3D e à matemática, os investigadores Hermes Gadêlha, da Universidade de Bristol, Gabriel Corkidi e Alberto Darszon, da Universidade Nacional Autónoma do México, conseguiram reconstituir o verdadeiro movimento do espermatozoide em 3D. Utilizando uma câmara de alta velocidade apta a capturar 55 mil imagens por segundo e um microscópio adaptado com um dispositivo capaz de gerar tensão elétrica, permitindo mover a amostra a elevada velocidade para cima e para baixo, foi possível captar o movimento completo das células em 3D. Até aqui, os microscópios 2D, dada a rotação extremamente rápida e sincronizada destas células, criavam uma ilusão de simetria. Graças agora à tecnologia de ponta utilizada neste estudo foi possível desvendar a forma de natação dos espermatozoides, o que poderá trazer avanços para o campo da fertilidade. Compreender a cauda do espermatozoide humano, que tem a ver com a mobilidade do espermatozoide, é fundamental para desenvolver futuras ferramentas de diagnóstico para identificar espermatozoides pouco saudáveis. ado. Conhecia-se ainda muito pouco sobre o intrincado ambiente dentro do aparelho reprodutivo feminino e sobre as implicações da forma como o espermatozoide nada na fertilização. Estas novas ferramentas abrem (literalmente) os nossos olhos para vermos exatamente como certas coisas se movem na realidade, na natureza, para que sobre essa visão possamos ter uma melhor perceção do mundo, tal como ele de facto é na realidade.

Nesta tradição de 370 anos, dita cartesiana, por exemplo, Immanuel Kant, defendia a ideia que na experiência de ver, o que nós víamos era uma representação no nosso cérebro, e não diretamente as coisas no mundo. E dizia que a ideia de vermos as coisas realmente como elas são no mundo não passava de um realismo ingénuo. Mas eu desde já digo que Kant estava errado. Para vermos alguma coisa é essencial que alguma coisa satisfaça essa experiência. E essa satisfação só pode ser dada pela apresentação dessa coisa ao nosso campo visual. Portanto, para vermos maçãs, as maçãs têm de estar à nossa frente para as vermos. É uma apresentação direta e não uma representação indireta.


"Isto não são maçãs vermelhas". Isto é uma representação de maçãs vermelhas. Agora a sério, meu capitão, eu mostro-lhe uma maçã vermelha de verdade, e o que o me capitão vê é uma maçã vermelha, real, no mundo, apresentada na minha mão à frente dos seus olhos.
Obviamente precisamos do cérebro a funcionar normalmente para vermos, para além dos olhos e as vias nervosas que vão dos olhos ao cérebro. Mas ver maçãs não é ver imagem de maçãs no cérebro. Isso não faz qualquer sentido. Uma pessoa não vê as estimulações que se operam no cérebro no ato de ver uma coisa, porque ver são já essas estimulações cerebrais provocadas pelo objeto que se está a ver. E o que se passa no cérebro, para além do processo físico da visão, é a crença ao nível da consciência do que efetivamente se está a ver. É a este aspeto da consciência que alguns filósofos chamam intencionalidade. É um termo especializado do campo da fenomenologia, que não tem nada a ver com vontade ou propósito.

O evento que ocorre no cérebro, é em si já o evento de ver as coisas. Na perspetiva de Kant, esse evento seria apenas uma representação, como se fosse uma imagem numa película fotográfica. E depois ainda tínhamos de ver essa imagem. E isso é que seria o meu capitão ver a maçã na minha mão. Ora, um equívoco absurdo. Seria ver o ver. É um erro categorial pensar que uma pessoa vê o ver.

A experiência visual normalmente resulta de vermos qualquer coisa no mundo real. Mas também se pode ter uma experiência visual e não se estar a ver nada. A uma experiência visual deste segundo tipo chama-se alucinação. Na alucinação a pessoa não vê coisa alguma. É apenas uma experiência como se estivesse a ver alguma coisa. Há pessoas que fazem confusão e pensam que podem dizer que vemos a própria experiência que estamos a ter. Mas isso é um equívoco, porque nós não vemos experiências visuais que estamos a ter no cérebro. É o caso dos sonhos. Nós temos os sonhos, e temos as imagens dos sonhos. Mas não se trata de dizer que vemos os sonhos, ou que vemos as imagens que temos nos sonhos. Nós simplesmente as temos no cérebro e na mente, e mais nada. Nós até estamos com os olhos fechados. E a sonhar os olhos não se viram para trás para ver as imagens dos sonhos no cérebro. Essa é a verdadeira questão do equívoco, meu capitão.

Em bom rigor há alguma diferença entre ver e percecionar. A visão de uma coisa para ser a perceção dessa coisa tem de implicar a identificação da coisa, ou seja, ser reconhecida como uma coisa que se conhece. Note-se que o reconhecimento é uma capacidade da memória. A memória afeta a maior parte das nossas perceções. Se uma pessoa está num ambiente totalmente desconhecido, não sabe realmente como percecionar. Está perplexa. A perceção é uma função da nossa capacidade de reconhecimento e categorização. É por isso que nós colocamos alguém, que conheça bem as cartas de jogar, completamente em pânico, quando lhe mostramos um baralho de cartas com as cores trocadas: por exemplo, os paus vermelhos e as copas pretas. A primeira coisa que lhes passa pela cabeça é estarem a ter um AVC.


E só a partir deste passo é que podemos compreender melhor o que é uma alucinação. Numa alucinação a pessoa diz que vê coisas assim e assim. Mas na realidade não vê nada. Porque o que se está a passar são apenas alterações no cérebro como quando se está a sonhar, que é sempre um pouco menos do que quando se está ver realmente alguma coisa. Só que neste caso não existe nenhuma coisa real para ver. E não vê, assim como também mais ninguém vê. Tudo se passa apenas ao nível da mente. É por isso que numa alucinação não há nada lá para ser visto.  

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