segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Nas brumas do Tempo Desengonçado

  

“O mundo está fora dos gonzos. Ó maldita sorte! Porque eu nasci para colocá-lo em ordem!” 
Hamlet IV

Naquele tempo, e naquela terra, era assim, um dia tinha de se partir com uma manta, um cantil de água e pão. Havia chegado o dia em que o pai de José, já doente e muito cansado, o chamou ao quarto para lhe dizer: "está na hora de eu partir para a montanha, tens de me levar". José ainda tentou balbuciar uma interjeição, mas o pai tapou-lhe a boca com a mão. O filho foi então buscar a mochila da caça e carregou-a com a tal manta, e alguns mantimentos para o velho se alimentar durante uns dias. Ia para as Brandas, na Serra, para o abrigo do tempo da transumância dos rebanhos, e da caça às perdizes, onde havia lobos e raposas. E também havia frio. Ia matar as saudades dos tempos da caça às perdizes, como se fosse de férias. Era assim o fim de todos os velhos. Mas não das velhas. As velhas guardavam a casa, logo morriam em casa. 
Pela frescura da manhã, cada qual com o seu pau na mão, nada de cajados numa altura destas, toca a subir à Serra, três horas e meia de caminho a pé. Chegaram ao abrigo ainda antes do meio dia, a tempo dos rituais. Ao meio dia partilharam a última refeição juntos. Chegada a hora da despedida, realizaram então os últimos rituais do rasga a manta, antes do derradeiro abraço.
O pai do José disse: “espera aí” – e foi buscar a manta – “chega daí a tua navalha" Depois de ter dividido a manta em duas partes iguais, deu uma parte ao José, e disse: "guarda, um dia, se chegares a velho, claro está, podes vir a precisar". Meditando nas palavras do velho pai, velho e quebrantado, ainda estendeu o seu braço para agarrar o do pai, de certo para o levar de volta. Mas o pai afastou o braço e recuou – Vai, vai com Deus que eu te abençoo. 
Ainda não tinha sido daquela vez que alguém daquela terra quebrava a tradição. Quando o ancião pressentisse que já não tinha forças para se autossustentar de pé como um carvalho, era porque a hora da morte não tardaria a chegar. E então o ancião pegava numa manta e algumas vitualhas, e pedia ao filho mais velho, se o tinha, que o acompanhasse na sua última viajem até ao cimo da montanha. E assim se cumpria uma tradição ancestral de séculos e séculos, que um dia se esfumou nas brumas do Tempo.
Em Hamlet o pai aparece como um fantasma. O fantasma revela-lhe que a sua morte não fora acidental, mas criminosa. E por isso, exige reparação. Sentindo-se no dever de fazer justiça, o príncipe Hamlet vê-se obrigado a vingar a morte do pai. Esse é o início de uma das mais complexas peças de Shakespeare.

Devemos olhar mais ao "ser" do que ao "parecer". Isto é tanto mais verdadeiro quanto mais nos apercebemos da hipocrisia, da mentira, da falsidade e da mesquinhez que grassa à nossa volta e nos afeta, e nos contamina, e nos impele a querer parecer mais do que a querer ser. A essência é ofuscada pela aparência, porque na realidade somos insignificantes na transparência, no pó a que ficamos reduzidos, nada mais que isso. Mas a consciência do ser adquire-se através da educação. E se esta for desenvolvida num meio de aparência e de superficialidade não restam dúvidas de que a caminhada final será, necessariamente, em direção ao monte. O monte, metáfora dos dias de hoje, são aqueles Lares de que tanto se tem falado em tempos de Covid-19, pelas piores razões.

Em Kant: fenómeno e aparição é o mesmo. Desde Platão que se pensava a 'Coisa-em-si' (essência) por trás (subjacente) da aparência. Mas Kant não pensava assim, em essências por trás de aparências. Para Kant havia aparição e o seu 'sentido'. Neste caso, aparição e aparência não têm o mesmo significado. E Husserl pegou nesta ideia e desenvolveu-a numa outra direção, a da Fenomenologia. A Fenomenologia indaga sobre as condições para uma aparição. Kant tinha trazido para o terreiro da filosofia o 'transcendental', que não é a mesma coisa que a ideia de transcendente, ideia que muito boa gente ainda tem, usando a expressão‘ transcendental’ para referir o transcendente.

‘Transcendental’ é o princípio da submissão em representações a priori da nossa experiência vivida. Para Husserl, na perceção do objeto há o sentido percetivo. Este sentido é mente pura, impossível de ser reificado. Reificação significa materialização. E ‘aparição’ significa o mesmo: fenómeno despido de qualquer tipo de materialização. Husserl chamou a isto: ‘noema’, que é apresentação, nada de confundir com representação. E também não tem nada a ver com os dados dos sentidos ('sense-data' em língua inglesa).

E agora fazemos entrar em cena o “Tempo”. O “Tempo” como fenómeno, ou noema. Não conseguimos materializar o 'Tempo-em-si', por mais voltas que queiramos dar. O Tempo também não se submete à reificação. A existência do Tempo é também uma existência desmaterializada. E Kant foi dos primeiros a fazer do Tempo uma forma pura do 'sentido'. Isso foi seguido por Heidegger: o Tempo como condição de possibilidade infinita do aparecer dos entes na experiência finita. Heidegger procurou mostrar que a própria filosofia encobriu e apagou a audácia kantiana, pois havia um radicalismo inovador na compreensão do "Tempo como pura afecção de si" (Selbtaffektion). Como é possível materializar o passado vivido? E o futuro por vir? É impossível. Para materializar o Tempo teríamos de o estatizar, ou seja, concebê-lo como algo estático. Ora, o Tempo para ser Tempo não pode ser estático. É dinâmico. Temos de localizar as aparições no ciclo do Tempo. Embora o termo 'localizar' seja um termo inapropriado, não me ocorre outro para falar do presente (no sentido de aqui e agora). Não faria sentido falar de presente sem passado futuro. E é assim que faz sentido a metáfora shakespeariana do "Tempo fora dos gonzos". Também se podia dizer "fora dos eixos". Mas, poeticamente, desengonçado rima melhor que desencaixado. É assim que o Príncipe da Dinamarca expressa a disjunção do tempo: "The times is out of joint". 

Hamlet amaldiçoa o destino, o que lhe foi destinado: endireitar a história, a época, o tempo do lado do direito, no reto caminho, a fim de que, em conformidade com a regra de seu justo funcionamento, avance direito – e segundo o direito. Hamlet não amaldiçoa propriamente a conceção do tempo, mas a sua sorte de estar destinado a endireitar o mundo desconjuntado, a fazer justiça segundo as regras do direito. Hamlet está "out of joint" porque amaldiçoa a sua missão: dever castigar, vingar, exercer a justiça na forma de represália. O erro trágico de Hamlet é inato. É uma perversão na ordem do seu destino que o faz ser Hamlet. O trágico pressupõe um crime grave cujo acontecimento se furta à presença, só se pode deixar reconstruir como um fantasma. O espectro é trágico porque encena o acontecimento ausente. É nessa situação que Hamlet amaldiçoa ser um homem do direito, o reparador de erros que só pode vir como direito após o crime; ele é o herdeiro, deve punir, matar, "a maldição estaria inscrita no próprio direito. Em sua missão assassina".

A análise introspetiva pode ser incómoda. Mandela chegou a dizer: "Eu tinha medo de ser quem sou". Também o Papa Francisco disse: "Seja quem é". E Sérgio Godinho disse: "Pode alguém ser quem não é?; pode alguém ser livre se outro alguém não é?; a corda dum outro serve-me no pé nos dois pulsos, nas mãos no pescoço, diz-me pode alguém ser quem não é?" Dá trabalho olhar para o nosso interior e redigir sobre isso. Até pode parecer esotérico para quem está mais habituado a ler e a escrever sobre ciência e filosofia.

Foi à procura deste “Eu” que Descartes, David Hume, Goethe, e muitos mais, desde poetas, filósofos e cientistas, deram com os burros na água. Por exemplo, alguém disse: "Quem escreveu este poema; quem compôs esta música; quem escreveu esta equação - não fui eu, foi o meu cérebro". Frases como estas incorrem num erro tradicional, que consiste em separar: “Eu”; cérebro; e o resto do corpo a que chamamos nosso. É um facto que a maior parte daquilo que fazemos o fazemos de forma inconsciente: desde que nos levantamos - depois de um sono, umas vezes de sonhos leves, outras vezes de sonhos pesados - e o momento em que adormecemos para outra noite de sonhos. Isto é, não o fazemos com a atenção introspetiva da consciência. Mas é claro que tudo o que fazemos somos nós próprios a fazê-lo, seja consciente ou inconscientemente. A expressão “nós próprios” refere cada um de nós em toda a sua plenitude, de corpo inteiro. Portanto, o que o poeta quis dizer, quando disse que não foi ele que escreveu o poema, foi que tinha sido sem o completo escrutínio da vontade e da consciência, a que ele chamou “Eu”. Digamos que foi inconscientemente, ou como outros dizem: "uma emanação do subconsciente". Todas estas expressões são “maneiras de falar”, que nunca vão ao cerne da questão. O que é afinal o “Eu”? Sabemos que tudo o que é mental passa pelo cérebro. Por exemplo, um neurocientista diz: 

“Nos doentes com manifestações de doença bipolar secundária, verificou-se que a maioria das lesões foram encontradas em locais do cérebro com ligações a um grupo específico de regiões do córtex cerebral relacionadas com a regulação do humor e das emoções. Descobrimos que as localizações das lesões associadas à ocorrência de episódios de mania se caracterizam por uma forte conectividade com três áreas do córtex cerebral do lado direito: o córtex orbitofrontal, o córtex temporal inferior e o polo frontal, que têm sido descritas como integrantes do circuito límbico, que é uma rede neuronal que tem sido associada à regulação do humor e ao processamento das emoções”. 
Este exemplo, é para chamar a atenção para o facto de que não é a engrenagem do cérebro subjacente ao comportamento, e a todas aquelas manifestações a que chamamos mental, que está e causa quando fazemos a crítica, mas a estrutura conceptual que temos de utilizar para compreendermos o que é a mente, e como ela se correlaciona com o cérebro, incorporando também um conjunto de ideias e uma atitude sobre o homem e sobre o mundo tidas como evidentes. Isso implica distinguir o que é vivo e não vivo, e dentro do vivo o que é considerado animado e inanimado. Por exemplo, o cérebro é um órgão vivo, mas no que respeita ao domínio "animado/inanimado", é inanimado. Existe o Homem. E o Homem é um ser animado. à propriedade animada chamamos mente. E a mente para se manifestar precisa do cérebro. Mas o cérebro é um órgão tão inanimado como é o fígado ou o pâncreas. Em termos de ambiguidade, é mais ambíguo o coração do que o cérebro, porque o coração é sentido pelo homem, e o cérebro não. Não foi por acaso que Aristóteles identificou a alma do homem no coração. 

Todo este relambório serviu para dizer que é um engano dizer-se: "a mente é o cérebro", como alguns dizem; ou "está no cérebro", como dizem outros. O cérebro é a parte inanimada da mente do Homem. E a mente propriamente dita é que é a parte animada do HomemEsta introspeção antropológica não é uma espécie de zoologia aplicada ao Homem. O Homem (homo sapiens) tem mais mundo, não se confinando apenas ao mundo circundante como os outros animais. Tem: uma língua; símbolos, instrumentos e artefactos; mitos; normas e valores. Este Mundo e esta Natureza não se podem deduzir de uma causalidade pura e simples do cérebro, ou do chamado “corpo material”. 

É claro que simplificamos as coisas para nos entendermos melhor. Reservamos o conceito de mente à parte animada, a que os antigos chamavam alma, apenas para distinguir o Homem dos outros animais. Porque, bem vistas as coisas, em termos puramente conceptuais, e não em termos da especificidade científica, não é o cérebro como órgão biológico que nos distingue, por exemplo, dos macacos, mas sim a mente, a que alguns podem chamar espírito, e outros podem chamar alma.

O Homem é o único animal que se questiona, perguntando: “quem sou eu, ou o que sou? E duvidando se existe um verdadeiro “Eu”, ou se será ilusório. É da tradição do pensamento ocidental, que remonta a Aristóteles e ao judaico-cristianismo, dizer-se – no que respeita à diferença entre o homem e o macaco – que há algo mais de diferente do que apenas a quantidade (tamanho do cérebro) e a qualidade de inteligência, reduzida apenas a coisas como a matemática, o desenho, ou a música. E a epopeia de Ulisses na Odisseia de Homero? E a distinção entre o bem e o mal? Os antigos resumiam isto da seguinte maneira: "É a capacidade da razão humana em perceber a ordem cósmica, transcendendo épocas e indivíduos, que o faz ocupar o lugar que ocupa nessa ordem cósmica." 

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