terça-feira, 18 de agosto de 2020

Johann Friedrich Blumenbach e a sua geometria racial


Johann Friedrich Blumenbach (11 de maio de 1752 - 22 de janeiro de 1840) foi um médico, naturalista, fisiologista, e antropólogo alemão, membro da Escola de História de Göttingen, foi um dos primeiros a explorar o estudo do ser humano no âmbito da história natural. Os seus conhecimentos em anatomia foram-lhe úteis para a sua classificação das raças humanas. 
Parece haver grandes diferenças entre nações muito distanciadas entre si, de tal maneira que os habitantes do Cabo da Boa Esperança, os da Gronelândia e os da Circássia poderiam ser tomados por um igual número de espécies distintas. Mas quando examinamos de perto esta questão, apercebemo-nos de que todas as variedades humanas se fundem umas nas outras, e que se passa, de uma forma tão gradual, de uma a outra que se torna impossível definir os limites entre elas. 

Já nessa altura Blumenbach pensava que o homo sapiens tinha sido criado numa região específica e que depois se tinha espalhado por todo o globo. A nossa diversidade racial, defendia ele, resultou da migração da população original para outros climas e topografias, o que levou à adoção de diferentes hábitos e modos de vida nas várias regiões. Portanto, Blumenbach refutava em particular a tese, muito comum, de que os africanos negros, enquanto variedade com posição mais baixa na escala racista clássica, apresentavam traços únicos que revelavam a sua inferioridade.

Ora, o que Blumenbach pensava, era que a variedade europeia, à qual pertencia, seria a mais próxima da origem primitiva da espécie. E então procurou dentro dela, um grupo mais pequeno que parecesse o mais perfeito. E essa perfeição foi encontrá-la na região do Cáucaso: "Os europeus eram muitíssimo belos". As pessoas do Cáucaso figuravam no pináculo da escala estética. Ele tinha um crânio de uma mulher da Geórgia e dizia: "Aqui está a forma mais bela de crânio, que atrai sempre a atenção, mesmo dos observadores mais distraídos."

A ideia de que descobrimos algo subjacente às aparências de um amplo conjunto de coeficientes de correlação, algo talvez mais real do que as próprias medidas superficiais, pode ser inebriante, mas é uma tentação a que temos de resistir. É a essência de Platão, a realidade eterna, abstrata, que está subjacente às aparências superficiais, mas que não corresponde a uma verdade da Natureza, mas sim a um antigo preconceito do pensamento. Não conseguimos escapar à tradição platónica, segundo a qual, tudo quanto vemos e medimos no mundo é apenas a representação imperfeita e superficial de uma realidade subjacente perfeita.

A técnica da correlação tem-se prestado particularmente a este tipo de equívocos. É um equívoco pensar que por aí se obtém uma via para inferências sobre a causalidade. A correlação avalia a tendência para uma medida variar concertadamente com a outra. Por exemplo, à medida que uma criança cresce os braços e as pernas vão-se alongando. Aqui encontramos uma correlação positiva, que é uma mudança na mesma direção. No entanto, nem todas as partes do corpo exibem tais correlações positivas durante o crescimento, como é o caso dos dentes, ou de uma parte menos visível como o timo. A existência da correlação não permite tirar qualquer conclusão quanto à causa. A causa não pode ser inferida da simples existência de correlações. A grande maioria das correlações que ocorrem na Natureza não é de todo de natureza causal. A suposição muito arraigada de que a correlação remete para uma causa – e o exemplo mais marcante passa-se na ciência da mente, em que, por exemplo, se remete a causa da perceção de um objeto no mundo para o cérebro, e não para o próprio objeto no mundo, dadas as estreitas correlações encontradas – é, provavelmente, um dos dois ou três erros mais graves e mais frequentes do raciocínio humano.

Os etnólogos estimam que, postas de lado as supostas diferenças genéticas e fenotípicas, as populações humanas são principalmente diferenciadas pelos seus usos e costumes, que são transmitidos de geração em geração. A espécie humana se caracteriza então por uma forte dimensão cultural. É por isso que o conceito de etnia, hoje, é melhor do que o conceito de raça. As diferenças culturais permitem definir um grande número de etnias. A diversidade humana é, portanto, genética, com as suas consequências fenotípicas, mas também culturais. E faz-se importante distinguir bem os dois domínios para não recriar, mesmo involuntariamente, os discursos racistas e não científicos.

Nessa ótica, as diferenças culturais aparecem como mais importantes, já que elas podem até mesmo modificar os traços físicos. Na prática, a duração de uma sociedade (e consequentemente de uma cultura) humana parece, com efeito, bastante curta em relação ao tempo que seria necessário à separação de características físicas. No ser humano, o impacto da cultura não parece assim ser suficientemente grande para explicar uma diferenciação entre raças. Isso quer dizer que a exploração indevida da biologia para uso das ideologias e políticas racistas é com certeza (mesmo ainda hoje) algo que não pode ser ignorado, já que foi estabelecida e analisada pelos estudiosos de diversas disciplinas, biólogos, historiadores da ciência, epistemólogos, filósofos, etc. Exploração indevida e transferência de noções que não tinham nenhuma razão de ser senão traduzir os interesses ou fantasias em propostas com pretensa base científica, mas que não passam de teorias racistas e discursos em termos de raças que visam apenas fazer crer numa diferença e hierarquia racial.

Mesmo que haja um amplo consenso científico de que conceituações essencialistas e tipológicas de raça em humanos sejam insustentáveis​, cientistas de todo o mundo continuam a conceituar o termo "raça" de maneiras muito diferentes, algumas das quais com implicações essencialistas. Embora, por vezes, alguns pesquisadores usem o conceito de "raça" para fazer distinções entre conjuntos difusos de traços físicos, outros na comunidade científica sugerem que a ideia de raça muitas vezes é usada de uma maneira ingênua ou simplista e argumentam que, entre os seres humanos, o termo não tem importância taxonómica, apontando que todos os humanos vivos pertencem à mesma espécie – homo sapiens, e subespécie – homo sapiens sapiens. 

É preciso lembrar que em ciência, raramente se inventa tudo do zero. Blumenbach partiu da taxonomia de Carolus Linnaeus, mais conhecido por Lineu - Systema Naturae, publicada em 1758, e que contemplava apenas quatro raças. A alteração de Blumenbach foi mínima. Porque será então que é Blumenbach e não Lineu o fundador da classificação das raças? E ser por isso que Blumenbach hoje em dia não goza de boa reputação? Parece que há aqui um truque que é fácil de passar despercebido, mesmo aos cientistas mais perspicazes. Ao passar do sistema de quatro raças de Lineu para o seu próprio sistema de raças, Blumenbach mudou radicalmente a configuração geométrica da distribuição teórica dos grupos humanos. A adição da categoria malaia constituiu uma etapa crucial nesta reformulação geométrica. Por mais pequeno que tenha sido o refinamento, neste caso tratou-se daquilo que os teóricos da complexidade e dos sistemas não-lineares designam por uma "transição de fase", que por mais paradoxal que seja, provocou uma verdadeira revolução conceptual. Esta grande modificação a que se pode chamar Revolução, aparentemente desencadeada por um pequeníssimo acontecimento, é aparente e paradoxal porque na realidade resulta de um processo que foi acumulando pequenas alterações ao longo do tempo, e que não são visíveis à nossa normal perceção. Mas a avaliar pela metáfora do prego na ferradura do cavalo, já há muito tempo que os sábios antigos sabiam isso. São cadeias de causalidades que geralmente só se conhecem a posteriori, ou na retrospetiva. A metáfora é mais ou menos assim, foi recebendo modificações ao longo de séculos e de lugares: 
O Império caiu porque o imperador perdeu a guerra; e o imperador perdeu a guerra, porque antes tinha perdido a última batalha; E perdeu a última batalha porque perdeu o general; e o general foi perdido porque caiu com o cavalo, e no chão foi atingido por um golpe do inimigo, e morreu; e o cavalo caiu porque havia perdido uma ferradura que o desestabilizou; e o cavalo perdeu a ferradura porque um prego se partiu. Conclusão: perdeu-se o império por causa de um prego que se partiu.
A um nível mais literal mostra quão importante é a logística numa guerra, e não apenas a estratégia. A esse nível é preciso estar muito atento e corrigir mesmo as mais pequenas falhas, porque aparentemente coisas sem importância podem ter graves repercussões e serem determinantes para a vitória.

Se fossemos medir graus de racismos, então Lineu seria de longe mais racista do que Blumenbach. No entanto quem pagou as favas foi Blumenbach. Lineu partilhava a opinião comum sobre a superioridade da variedade europeia, a que ele próprio pertencia, sobre todas as outras. O que nada de extraordinário, Lineu apenas era um aderente das conceções racistas da sua época. Para além disso, Lineu ainda tinha acrescentado uma nota racista mais explícita na descrição final de cada variedade. Por exemplo, na raça africana, o comportamento era regido por arbítrio, que queria dizer por caprichos.

Que tenha sido Blumenbach a entrar no epicentro do racismo é no mínimo irónico, porque ele era o menos racista, o mais igualitarista dos autores do Iluminismo que escreveram sobre o tema da diversidade humana. O que parece ter sido fatídico foi a classificação ter sido interpretada numa escala hierárquica. E foi quem pegou no seu modelo que o transformou numa representação geométrica, a qual foi a promotora do racismo. Não Blumenbach, mas o seu modelo. Os cientistas tendem assim a não se aperceber que as suas próprias representações mentais filtram a confusão de fenómenos ambíguos que intervêm no mundo. E ambiguidade é a coisa que não se pode ter em questões humanas cruciais como as do racismo. É por isso que nos dias de hoje, o exemplo mais flagrante de ambiguidades é Rui Rio em relação ao racismo, porque tem sido sistematicamente ambíguo no seu posicionamento em relação ao racismo de Ventura e do Chega. E essa ambiguidade pode vir a tornar-se fatal para ele. Feito este aparte, sublinho que as ideias têm consequências, sejam quais forem as motivações e intenções dos seus promotores. 

É claro que há sempre enigmas no caminho para decifrar. Por exemplo, por que razão se lê, e se ouve o comentador televisivo dizer que os ativistas antirracistas, que se vêm manifestar na rua, são de extrema esquerda, e os extremistas racistas são conservadores e de extrema direita? Quanto disto está preso a preconceitos e não propriamente à verdade dos factos? Peguemos no termo "caucasiano", que foi oficialmente adotado nas universidades americanas, particularmente nos cursos de medicina, para designar as populações de pele clara da Europa, um nome com origem numa cordilheira de montanhas da Rússia? Ora, tivemos que dar esta volta ao bilhar grande, porque é precisamente o que consta, que tal facto resulta do que começou a aparecer nos trabalhos escritos do naturalista alemão - J.F. Blumenbach. Aparece na terceira edição da sua principal obra, 1795, "Das Variedades Naturais da Espécie Humana" - "Variedade caucasiana: escolhi o nome desta variedade a partir das montanhas do Cáucaso, porque esta região e, em especial, a sua vertente meridional, produz a mais bela raça de homens, e porque ... nesta área, mais do que em qualquer outra região, devemos com a maior das probabilidades encontrar os autóctones da humanidade." Tratava-se do tema da sua tese de doutoramento na Faculdade de Medicina de Göttingen defendida em 1775. 

A solução dos grandes enigmas depende muitas vezes de pormenores minúsculos, que facilmente passam despercebidos ou são ignorados. É espantoso como um critério que foi adotado durante tantos anos por cientistas partiu de um juízo estético de natureza evidentemente subjetiva. A taxonomia final de Blumenbach, que aparece na edição de 1795, e que organizava a totalidade dos seres humanos em cinco grupos, remetia ao mesmo tempo para a geografia e para o aspeto físico. Cinco variedades, ordenadas, portanto, pela seguinte ordem: mongol; ameríndia; caucasiana; malaia; africana.

Sem comentários:

Enviar um comentário