sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Il Milione e a Rota da Seda



No dia 14 maio de 2017, o presidente da China, Xi Jinping, discursou no Fórum de abertura sobre a "Nova Rota da Seda", por meio do qual anunciou o investimento de 70 mil milhões de dólares no projeto. Mas esta é a nova rota da seda, e eu vou debruçar-me apenas no tempo da era Mongol, que foi o tempo de Marco Polo, e não só.

A expansão Mongol por todo o continente asiático ocorreu entre 1215 e 1360, auxiliada pela estabilidade política trazida pelo restabelecimento da Rota da Seda, que já existia no tempo do Império Romano do Ocidente com sede em Roma. O Império Mongol tinha como capital a cidade de Caracórum. As ruínas da cidade, as quais incluem o palácio homónimo, fazem parte da área de Paisagem Cultural do Vale de Orkhon, classificada em 2004 como Património Mundial da UNESCO.


Em meados do século XIII, um explorador veneziano, Marco Polo [1254-1324], foi um dos primeiros europeus a percorrer a Rota da Seda em direção à China, documentado no seu livro de viagens “Il Milione”. Terá seguido os passos de missionários cristãos como Guilherme de Robruck [1220-1293]. Il Milione (italiano) é um livro escrito por Rusticiano, ou Rustichello de Pisa, baseado nas histórias que este ouviu de Marco Polo das suas viagens pela Ásia entre 1271 e 1295, e os seus contactos com a corte de Kublai Khan [1215-1294].

Foi um período áureo em que os chineses transmitiram para ocidente muitas inovações, como a pólvora, o astrolábio e o compasso, mapas e muitas outras inovações tecnológicas, o que contribuiu muito para o desenvolvimento do Renascimento europeu. Muitos juncos chineses também foram observados por estes viajantes, coisa que inexplicavelmente desapareceu a oriente para florescer a ocidente. Foi a desintegração do Império Mongol que levou a uma descontinuação da unidade política, cultural e económica da Rota da Seda. Senhores turcomanos marcharam para se apossar do lado ocidental da rota, contribuindo para o declínio do Império Bizantino. Após os Mongóis, as grandes forças políticas localizadas ao longo da rota tornaram-se separadas tanto economicamente como culturalmente. Iniciou-se o processo de edificação dos Estados regionais em contraposição ao estilo de vida nómada, em parte pela devastação do mar Negro, e em parte pelas invasões de civilizações sedentárias equipadas com pólvora. 




O efeito da pólvora na modernização precoce da Europa sucedeu-se na integração dos Estados territoriais e no aumento do mercantilismo. O nível de integração do Império Mongol não foi mantido e o comércio declinou (apesar do aumento do intercâmbio marítimo europeu). A Rota da Seda parou de servir como uma rota de despacho da seda por volta de 1400. O desaparecimento da Rota da Seda, que acompanhou o fim dos Mongóis, foi um dos principais fatores que estimularam os portugueses a descobrir o caminho marítimo para Índia (outros caminhos), o que depois fez serem eles os primeiros europeus a chegar à China e ao Japão. Macau e Malaca são exemplos disso, ao desenvolverem a Rota da Seda por mar. Cristóvão Colombo tentou uma via alternativa da Rota da Seda, pasme-se, indo por ocidente, mas isto é outra história.

Leibniz foi um dos primeiros intelectuais europeus que teve muita curiosidade por tudo o que vinha do Oriente:
«Tudo que é esquisito e admirável provém das Índias Orientais. A população instruída reparou que não há no mundo todo comércio comparado com o da China.»
E Adam Smith declarou que a China era uma das mais prósperas nações do mundo, mas tem estagnação persistente, os salários sempre foram pequenos e as classes baixas eram particularmente pobres:
«A China foi por um bom tempo uma das mais ricas, isto é, uma das mais férteis, melhor cultivadas, mais industrializadas, e mais populosas nações do mundo. Dá a impressão, porém, de estar muito tempo imutável. Marco Polo, que a visitou há mais de quinhentos anos atrás, descreve seu cultivo, indústria e abundância de habitantes em quase os mesmos termos em que é descrita por viajantes nos tempos atuais. 
A importância de todos os viajantes, inconsistente em muitas outras circunstâncias, era de acordo com os salários trabalhistas baixos, e é na dificuldade que um trabalhador encontra um meio para criar uma família na China. Se ele cavar um buraco durante um dia, e poder obter uma pequena quantia de arroz ao anoitecer, ele está contentado. A condição dos artesãos é, se possível, muito pior. Em vez de esperar indolentemente em seus asilos, esperando chamadas de seus clientes, assim como na Europa, eles continuam percorrendo as ruas com suas ferramentas e respetivas mercadorias, oferecendo seus serviços e implorando um emprego. A pobreza das classes mais baixas da China supera de longe a das nações europeias mais miseráveis. Nas proximidades do Cantão existem muitos centenas, ou o mais correto, muitos milhares de famílias que não possuem habitação, mas que vivem em pequenos barcos de pesca pelos rios e canais. A subsistência na qual eles eram encontrados é tão escassa que a avidez por peixe chega a forçá-los a procurar no mais nauseante refugo lançado no mar por qualquer navio europeu. Qualquer cadáver, como a carcaça de um cão (ou gato) morto, por exemplo, ainda que esteja em semi decomposição e em estado de putrefação, é uma saudação para as pessoas, que tem este alimento como o mais salubre encontrado por elas. O casamento é encorajado na China, não pelo proveito das crianças, mas pela liberdade assoladora deles. Em todas as grandes cidades muitas são expostas toda noite na rua, ou afogadas como filhotes de animais na água. A performance deste ofício horrível é sempre dita como um negócio irrestrito de muitas pessoas que o usam para sobreviver.» 
Adam Smith, A Riqueza das Nações, 1776
De facto, o espírito da Rota da Seda resume-se ao desejo de nutrir um intercâmbio entre Oriente e Ocidente, somado com o chamariz dos altos lucros, e que afetou muito a história do mundo durante os últimos três milénios.

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