domingo, 2 de agosto de 2020

A crónica de André Rito do acidente do Alfa Pendular

Partilho aqui a crónica no Expresso do acidente do Alfa Pendular há dois dias - um tributo da fisga da memória a André Rito, um jornalista de reportagens freelancer, - vivenciada por ele quando viajava com destino a Braga, a sua terra natal, e onde o pai o esperava depois destes meses de pandemia sem se verem. 


Há pessoas admiráveis, capazes de manter a calma nas situações mais caóticas. Ontem, seguia na carruagem quatro do Alfa Pendular quando me apercebi desta mulher, talvez com menos de 30 anos, sentada dois lugares à minha frente. Minutos antes tínhamos passado num túnel e eu, que estava meio a dormitar, abri os olhos e reparei que seguíamos a 20km/hora. Outro comboio cruzou-se no sentido inverso, e o nosso recomeçou a ganhar velocidade. 

Confesso que tive um pressentimento – na minha ignorância ferroviária perguntei-me como é que um comboio de alta velocidade tem de parar para outro passar. Recostei-me no banco sem tempo para reagir: sentiu-se uma travagem seguida de um enorme estrondo que abanou a carruagem. Todos os passageiros devem ter percebido que estávamos a ter um acidente, tal a poeira e os detritos que voavam do lado exterior das janelas. “Protejam a cabeça, tudo para o chão”, gritou então a mulher, sobrepondo-se ao pânico geral e ao choro das crianças assustadas. 

Foi exatamente o que eu e o rapaz que seguia ao meu lado fizemos. Durante aqueles segundos, o ruído da composição desgovernada, as bagagens a cair e os gritos das pessoas fizeram-me temer o pior. E por mais lugar comum que isto possa parecer, aqueles segundos até o comboio se imobilizar foram eternos. “Está tudo bem, está tudo, já parou, salvámo-nos”, disse-me o rapaz que seguia ao meu lado. Na extremidade norte da nossa carruagem – que era a terceira, embora tivesse o número quatro – não havia comboio. Tinha desaparecido e o sol entrava. 

O som do alarme, um bip bip constante, funcionou na minha cabeça como uma ordem de saída. Corri para essa ponta norte da carruagem, na esperança de encontrar uma saída, e encontrei um senhor perto dos 70 que tentava abrir a porta, sem sucesso. Disse-lhe para me acompanhar, que havia gente a tentar a outra saída. A mulher que nos mandara proteger a aconselhava “calma, calma”. Nesses breves instantes, atónitas, incrédulas, sem saber o que fazer, as pessoas tentavam pegar nos seus pertences. 

Gritei que tínhamos de abandonar o comboio, arranquei o martelo para partir o vidro e procurei a janela por onde poderíamos sair, até que alguém descobriu uma escapatória na extremidade sul. Não sei quanto tempo passou, sei que foi preciso saltar dois metros para conseguir chegar à berma, numa zona de mato. Saí disparado para o lado norte, onde estavam a tentar tirar uma senhora que ficara encarcerada. Na confusão, vi peças de metal espalhadas, senti o cheiro a queimado e a gasóleo, e vi a parte de baixo do comboio, o ferro retorcido, líquidos a verterem para a linha. 

Alguém gritou para seguirmos na direcção oposta. Corri até conseguir encontrar uma vedação que dava acesso à estrada. Uma senhora e o filho, moradores das primeiras casas, já desciam a rua com garrafas de água. “O senhor quer uma?”, perguntou-me o adolescente. Bebi de um gole, percebi que tinha sobrevivido, e voltei para trás. Uma mulher com a cara ensaguentada tentava equilibrar-se carregada com uma geleira nos dois braços, ao longo da berma. Disse-me que tinha apenas escoriações e pediu-me para ter cuidado: a geleira estava cheia de água, com peixes vivos. 

Fomos até à primeira ambulância – o socorro foi praticamente imediato – onde reconheci outro passageiro que tinha visto dentro do comboio. Perguntei-lhe se estava bem e ele retirou o pano com que cobria a boca: o lábio descaiu devido a um profundo corte que lhe rasgara metade da cara. Ainda consegui consertar a pega da geleira e fechar a tampa. Era tudo o que aquela mulher queria, salvar os seus peixes. Voltei para trás para ajudar quem estava na enorme fila, gente carregada de malas, um idoso em cadeira de rodas a ser transportado por vários passageiros, pessoas feridas, roupas com sangue. 

Ninguém se prepara para um acidente de comboio, de avião ou para um naufrágio de um barco. A verdade é que a assistência – bombeiros, ambulâncias, populares da região – chegou rapidamente. Não foi preciso sequer meia hora para que a Câmara Municipal de Soure chegasse ao local, com paletes de garrafas de água, e, pouco depois, os autocarros que transportaram os feridos ligeiros para o pavilhão multiusos, transformado em hospital de campanha. Aí encontrei o rapaz que seguia ao meu lado – que estava bem – a família de estrangeiros com uma criança, uma adolescente que estava na minha fila. 

Não voltei a encontrar a mulher que nos dera o melhor conselho que alguém poderia dar naqueles momentos de pânico. Gostava de lhe ter agradecido a coragem e calma que conseguiu transmitir à nossa carruagem, que estava praticamente cheia. Sei que ficou bem porque há pessoas que sobrevivem nem que seja para salvar os outros. Hoje, 24 horas depois, ainda oiço aquelas palavras. Nem sei se algum dia as esquecerei. 

Médicos, bombeiros, protecção civil foram abordando cada um dos passageiros. Senti o olhar perdido de quase todos, sem saber muito bem o que fazer, às mãos de médicos, psicólogos e técnicos inexcedíveis. Não fiquei ferido, tive apenas algumas mazelas nas costas devido ao impacto, e fiquei por ali à espera que o meu pai chegasse de Braga, o meu destino final. Era a primeira vez que ia a casa desde a pandemia. Algumas horas depois, à porta do pavilhão, de máscara na cara, lá encontrei o meu pai que não via desde janeiro. Tirou a máscara e correu para mim: “vou ter de te dar um abraço”. Nunca o vejo chorar. Ontem vi. 

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