quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Os ciclistas



Este ano, a 82.ª edição da Volta a Portugal em Bicicleta poderá realizar-se entre 27 de setembro e 5 de outubro, sob a organização da Federação Portuguesa de Ciclismo. Por causa da pandemia a Volta realiza-se mais tarde, a realizar-se . . .

Entrámos no mês de agosto e veio-me à memória o tempo da minha juventude, em que eu adorava ver os ciclistas a rolar pelas estradas de Portugal. A Volta a Portugal e as minhas réplicas de ciclista dando o gosto ao pedal em bicicletas emprestadas. Estou a falar dos primeiros anos da década de 1960. Só consegui ter uma bicicleta de corrida, mesmo minha, com os sapatos e os calções à maneira, nos primeiros anos da década de 1980.

Naquela altura os ciclistas passavam pelo centro da vila - ou no sentido Braga--Monção, ou de Monção em direção a Viana -, e passavam pela rua onde o meu pai tinha a loja de ferragens, do outro lado ficava o Café Chave d’Ouro. O meu pai dava-nos uma folga, um intervalo de meia hora para ver os ciclistas a rolar com os raios metálicos das rodas a brilhar no paralelo polido, e nós empoleirados em cima uns dos outros a bater palmas à passagem do primeiro fugitivo.

Ora reparem, estou a falar, por exemplo da 28ª edição da Volta a Portugal, 1965, de 30 de julho a 15 de agosto, que nesse ano foi ganha por Peixoto Alves, com a camisola do Benfica, em renhido duelo com o sportinguista João Roque - 2º classificado; e Mário Silva do FC Porto - o 3º. Enquanto que, por equipas, venceu a formação belga da Flandria seguida do Sporting e do FC Porto. Peixoto Alves era de Soutelo, a 5 Km de Braga, e o pai tinha uma oficina de bicicletas em Palmeira, a 2 Km de Braga. Lembro-me também da 25ª edição da Volta a Portugal em Bicicleta, em 1962, eu tinha nove anos de idade, que decorreu entre os dias 4 e 19 de agosto. Quem ganhou foi José Pacheco, pelo FC Porto. E da 27ª, que decorreu entre os dias 14 e 30 de agosto de 1964, vencida por Joaquim Leão, também do FC Porto.

Lê-se na narrativa de um repórter:
O franzino e irrequieto benfiquista Peixoto Alves, que já tinha sido segundo em 1962 e terceiro em 1963, após uma época muito discreta em 1964, com uma tenacidade de valor inverso ao da sua pequena estatura, atacou com grande determinação no primeiro contra-relógio, em terras espanholas entre Vigo e La Toja, com 63 Kms, e conquistou a camisola amarela, que estava na posse de Carlos Carvalho, para não mais a perder até Lisboa. Nessa longa caminhada, o Benfica cerrou fileiras em redor do seu líder, protegendo-o dos ataques dos espanhóis da equipa Inuri e dos belgas da Flândria. Os prémios foram entregues na noite do dia em que a prova terminou, durante uma festa no Pavilhão dos Desportos de Lisboa, ao Parque Eduardo VII, cabendo a Peixoto 67.750$00 (incluindo um extra de 25 contos, oferta do Benfica). No dia seguinte Peixoto partiu para a caça às rolas e posteriormente emigrou para França.
 

Joaquim Leão do FC Porto havia vencido a Volta no ano anterior, estabelecendo um novo recorde na média, que, pela primeira vez, entrou na casa dos 39 (39,404 Km/h), suplantando assim o máximo de 37,408 Km/h, obtido no ano anterior por João Roque. Ao fim dos 2.398 Km, repartidos por 20 etapas, apenas 60 corredores, dos 103 à partida, resistiram às dificuldades do percurso e da competição. Joaquim Leão, que vinha perseguindo este triunfo há já algum tempo, fez por merecer a confiança do seu técnico, Emídio Pinto. No entanto, houve outros adversários a dificultar a tarefa do corredor do FC Porto, tais como o sportinguista João Roque, que fez quanto estava ao seu alcance para repetir o êxito do ano anterior, tendo terminado na terceira posição a 3m 22, e ainda os belgas da Flândria, Franz Brandt, Vandamme e Van den Berghe. Na ponta final da prova foi o tavirense Jorge Corvo quem mostrou maior espírito combativo, mantendo uma séria ameaça ao camisola amarela Joaquim Leão, mas veio a terminar, pela terceira vez, em segundo lugar, de novo com o ligeiro atraso de 44 segundos.

Em 1962 quem ganhou foi José Pacheco com a camisola do FC Porto; e em 1961 foi Mário Silva, também pelo FC Porto. Refira-se ainda que a tarefa de José Pacheco foi deveras dificultada, quer pela nutrida lista de inscritos que formaram um pelotão de 129 unidades - o maior até aí reunido numa Volta - quer pelo importante lote de favoritos que se apresentaram à partida, tais como os benfiquistas Peixoto Alves (2º), Francisco Valada (5º) e Manuel Simões (7º), os sportinguistas Pedro Carvalho (6º) e João Roque (9º) e o tavirense Jorge Corvo (3º).

A partir dos anos 60 a Volta incluiu etapas a terminarem no cimo da montanha para garantir a incerteza do resultado e manter o interesse mediático. Entre 1966 e 1973, a Volta deixa a referência da fronteira e o desenho passa a ter grandes diagonais que passam pelo interior do país, mantendo cidades como Lisboa e Porto nos seus trajetos. A etapa das Penhas da Saúde entra para o percurso em 1968, a da Torre em 1971, e por último, a da Srª da Graça em 1978.

Dada a dureza, popularidade da prova e a superação dos atletas, desde cedo o público escolheu os seus heróis. Até agora ainda não falei de um herói, por causa do seu fim trágico – Joaquim Agostinho – que merecerá uma crónica só reservada a ele. E também não vou falar de outros ciclistas míticos que ouvia o meu falar com grande entusiasmo todos os anos, nos dias em que a Volta preenchia todas as conversas, sentados na pedra das escadas até altas horas da noite iluminados pelo brilho das constelações que o doutor Ribeiro nos havia metido na cabeça a mascoto. E então o meu pai falava no José Maria Nicolau (vencedor em 1931 e 1934) e Alfredo Trindade (vencedor em 1932 e 1933), que protagonizaram uma das primeiras rivalidades da Volta, fazendo vibrar o país. José Maria Nicolau foi uma das primeiras grandes figuras do Benfica, enquanto Alfredo Trindade representou o Sporting em 1933 (no ano anterior representou o Rio de Janeiro, emblemático clube do Bairro Alto). António Barbosa, mais conhecido por Alves Barbosa (herdado do pai, outro ciclista de alto gabarito), foi o mais jovem vencedor da Volta, ao estrear-se em 1950, vencendo também as edições de 1956 e 1958. Ficaram para a história os inúmeros despiques com adversários de classe, como Ribeiro da Silva, Dia dos Santos, Luciano de Sá e Moreira de Sá.

No entanto o maior entre todos os ídolos dos portugueses nesta prova foi sem dúvida Joaquim Agostinho. A forma categórica como venceu por três vezes a Volta – 1970, 1971 e 1972, aos quais se juntariam os sucessos internacionais, granjearam-lhe assim uma aura ainda mais mágica à sua prestação nesta prova.


Por fim, ainda Marco Chagas, que se tornou um excelente comentador nas reportagens das provas do ciclismo transmitidas pela RTP,  deteve até 2012 o recorde de vitórias na Volta, com 4 triunfos averbados, sendo também um símbolo eterno da competição. Esteve perto de conquistar a 5ª vitória, mas foi desclassificado no controlo anti doping, em 1979. E por afastamento da edição de 1984, que foi ganha por Venceslau Fernandes. Mas nesta altura o meu entusiasmo pelo ciclismo já não tinha comparação com o entusiasmo dos idos anos 60.

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