segunda-feira, 31 de agosto de 2020

De Atalaia – por figuras de linguagem sincréticas


As figuras de linguagem são recursos linguísticos para tornar as mensagens que emitimos mais expressivas e significativas. Tais recursos podem ampliar o significado de uma expressão, assim como suprir lacunas de uma frase com novos significados. Aqui poderemos encontrar: alusões; ironia; metáforas e metonímias; paradoxos, apóstrofes e catacreses.


O sincrético em psicologia, tem a ver com a forma primitiva dos primeiros estádios da mentalidade infantil, em que o mundo é percecionado e apreendido globalmente de forma indiferenciada.

Neste mapa, o pionés encarnado assinala a Quinta da Atalaia, onde se realiza a Festa do Avante

O Grande Irmão, enquanto folheava no seu atlas os mapas das ameaçadoras quintas que surgem nos pesadelos e nas maldições: Enoch, Babilónia, Yahoo, Berenice, Brave New World, disse: "É tudo inútil, se o último porto só pode ser o local infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito, o melhor é irmos à procura da Possibilidade de uma Ilha".

Michel Houellebecq, neste romance: "A Possibilidade de uma Ilha" - faz uma profunda reflexão sobre o sentido da vida, uma elegia da humanidade e do amor, uma celebração de tudo o que temos e que corremos o risco de perder. Cria um mundo que se prece perigosamente ao que se prenuncia nas entrelinhas do nosso tempo. 


O inferno dos vivos não é algo que será, Meu Irmão. Se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até ao ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

O atlas do Grande Irmão também contém os mapas de terras prometidas visitadas na imaginação, mas ainda não descobertas ou fundadas: a Nova Atlântida, Utopia, a Cidade do Sol, Oceana, Harmonia, Icária. O Grande Irmão pergunta ao Pequeno Irmão: Tu que exploras em profundidade, és capaz de interpretar os símbolos? Saberias me dizer em direção a qual desses futuros nos levam os ventos propícios?"

O Pequeno Irmão responde: "Por esses portos eu não saberia traçar a rota nos mapas nem fixar a data da atracação. Às vezes, basta-me uma partícula que se abre no meio de uma paisagem incongruente, um aflorar de luzes na neblina, o diálogo de dois passantes que se encontram no vaivém, para pensar que partindo dali construirei pedaço por pedaço a ilha perfeita, feita de fragmentos misturados com o resto, de instantes separados por intervalos, de sinais que alguém envia e não sabe quem capta. Se digo que a ilha, que é mais uma ínsua, para a qual tende a minha viagem, é descontínua no espaço e no tempo, ora mais rala, ora mais densa. Mas escusas de procurá-la. Pode ser que enquanto falamos ela esteja aflorando dispersa dentro dos confins da herdade; é possível encontrá-la, mas da maneira que eu disse.

Michel Houellebecq, neste romance: "O Mapa e o Território" o personagem fala dos solitários Natais passados com o Pai, um arquiteto famoso que sonha construir cidades fantásticas mas ganha a vida a projetar resorts de férias. Talvez não falasse do suicídio da mãe quando tinha apenas sete anos, porque são muito ténues as recordações que dela guarda. Mas mencionaria certamente Olga, uma lindíssima russa, que conheceu por ocasião da primeira exposição do seu trabalho fotográfico baseado nos mapas de estradas Michelin. Apesar de indiferente à fama e à fortuna, o protagonista poderia mencionar o êxito estrondoso que alcançou com uma série de quadros de célebres personalidades de todos os meios, retratadas no exercício da sua profissão. Um dos retratados é precisamente Michel Houellebecq (sim, o autor), num trabalho conjunto que mudará a vida de ambos: fonte de vida para um e razão de morte para outro. Confrontado com o homicídio de uma pessoa próxima de si, o protagonista não poderia deixar de incluir no seu relato, como ajudou o comissário a esclarecer esse crime hediondo, cujo cenário aterrador deixou marcas profundas nas Equipas da Polícia de Segurança.


O Pequeno Irmão – Em vez de falar de Katalpeque, onde pontuam tríglifos coroados de ábacos, fala de engrenagens e de máquinas de triturar bilhetes. E de funcionários responsáveis pela limpeza das escadarias levantando a cabeça para inspecionar os átrios mais parecidos com pronaus, onde só cabem basbaques de baixa estatura. Mas do que ele devia falar era de Bisuanguer, cidade invisível, mas de gente justa, atarefada com a montagem dos balaústres para que os mirones se possam assomar bem alinhados junto às redes presas a estacas submersas por onde trepam buganvílias travadas por rodas dentadas num surdo tique-taque de mecanismos precisos a cronometrar os operários. 

E assim se vão tecendo intrigas através da Extensão do Domínio da Luta com redonda eloquência a observar o olhar dominador das odaliscas a banharem-se em 
piscinas perfumadas cujas bordas se estendem até às Comportas, onde gente prudente, protegida por armadilhas, se dedica a decifrar vírgulas e parênteses soprados por sicofantas através das manilhas dos esgotos.


Dito isto, se o leitor não deseja que o seu olhar colha uma imagem deformada, então deve dirigir a sua atenção para uma qualidade intrínseca dessa cidade onde germina em segredo uma secreta geringonça. Trata-se de reabrir janelas a um amor latente ainda não submetido a regras, mas capaz de ser ainda mais justo do que era antes, mesmo que ainda exista uma manchinha, oxalá não se dilate para a metrópole. 

O Grande Irmão, como de costumeaos costumes disse nada. Costumes que parecem austeros eludindo os estados de ânimo complicados e sombrios de inocentes, uns a tirar finos e outras a fazer sandes de chouriço e pataniscas, a evocar uma antiga idade de ouro em que se serviam gaspachos, sopas de cação e abobrinha frita. 

A partir destes dados é impossível inferir uma imagem da futura Atalaia, mais próxima do conhecimento da verdade do que qualquer notícia sobre o atual estado da pandemia. Contanto que se tenha em mente que a tabela dos preços justos está escondida, para que não seja conspurcada por calúnias malignas antidemocráticas. É a convicção e o orgulho de serem justos. E de sê-lo mais do que tantos outros que dizem ser mais justos do que os justos, fermentando rancores, rivalidades, teimosias, e o natural desejo de represálias. 

Queria dizer ainda outra coisa: que todas as futuras geringonças, contidas dentro umas das outras como matrioskas, se tornem para sempre inseparáveis.

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