sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Histórias clínicas libertadas da lei da morte



Michelangelo Merisi da Caravaggio durante os seus primeiros anos em Roma adoeceu com icterícia, tendo estado internado durante seis meses no Hospital de Santa Maria della Consolazione. O quadro “Pequeno Baco Doente” é um autorretrato que pretende demonstrar a icterícia, medicamente definida como coloração amarelada da pele, escleróticas e membranas mucosas devido à deposição de pigmentos biliares nesses locais. Tem a ver com as alterações do metabolismo da bilirrubina, mais frequente nas doenças hepáticas, mas não em exclusivo, podendo ocorrer em certas doenças do sistema hemático.

De acordo com a publicação médica norte-americana Clinical Infectious Diseases (2009), a doença sofrida por Caravaggio em 1592/93, foi devido a malária, e não a bebidas alcoólicas. A malária pode cursar com icterícia devido à destruição maciça de hemácias pelo plasmódio. Dois anos mais tarde, quando já completamente curado, 1596, Caravaggio voltou a retratar-se como Jovem Baco, desta vez como um jovem completamente saudável. É o retrato que se vê a seguir.


Caravaggio devia ter conhecido vários casos de doentes com icterícia, mas devido a cirroses alcoólicas. Daí a sua ironia com o tema de BacoCaravaggio escolheu retratar-se assim, como Baco. Autor de obras de inigualável beleza, Caravaggio tinha tanto talento e habilidade como vícios e paixões. Baco, deus do vinho, da ebriedade e dos excessos, é a imagem viva da sua vida. Buscava inspiração entre os moradores de rua, prostitutas e bêbados; pessoas não consideradas pela sociedade como de nobre estirpe, mas que, para Caravaggio, tinham grande expressão. Sabe-se que uma das etiologias mais comuns de doença hepática é a alcoólica. Presumivelmente, nesse meio, o artista conviveu com muitos portadores de hepatopatias alcoólicas (associando-os ao deus do vinho), ictéricos, consumidos pela insuficiência hepática devido a cirrose. 




Luís XIV tinha hábitos incomuns e nada higiénicos, que o levaram a ter uma infeção numa região improvável. Em fevereiro de 1686, enquanto cavalgava, Luís XIV sentiu um desconforto nas nádegas, que nunca tinha sentido antes. Os péssimos hábitos alimentares, e a falta de banho, estará na origem do seu problema relacionado com uma fístula anal. Durante algum tempo os médicos reais conseguiram conter os sangramentos e o pus no ânus do rei, mas quando perceberam que a saúde do monarca só piorava, chamaram Félix, o barbeiro da corte.

Félix aceitou curar Luís XIV, mas antes, treinou em pacientes de hospícios e militares que sofriam do mesmo problema. 
Jean-Noël Fabiani escreveu: “O mundo acredita que o Rei Sol está a morrer, pois sofre de um mal dos fundilhos. Os médicos, impotentes para curá-lo, são obrigados a dar lugar ao Félix, o barbeiro profissional”.

Para esterilizar a ferida, Félix utilizou vinho da Borgonha e em pouco tempo fez o procedimento. A boa recuperação de Luís XIV garantiu a Félix não penas o título de cirurgião, como uma grande recompensa financeira, terras e espaço na nobreza. Segundo Fabiani, Félix pediu, ainda, que a profissão de cirurgião fosse regulamentada. No entanto, para não desagradar os médicos, o Rei Sol decretou que barbeiros que somente cortassem cabelos não poderiam fazer procedimentos cirúrgicos. Décadas mais tarde, a profissão foi regularizada e originou a primeira Academia Real de Cirurgia. O seu fundador foi Mareschal, cirurgião de Charité, que inspirado nos ensinamentos de Félix e instruído pelo colega La Peyronie, inaugurou o local, em 18 de dezembro de 1731.


Frédéric Chopin morreu em Paris, a 17 de outubro de 1849, com apenas 39 anos. O famoso pianista tinha muito medo de ser enterrado vivo pelo que pediu à sua irmã que se certificasse que o seu coração era extraído assim que falecesse: “A terra é sufocante. Jura que eles me abrem, para que eu não seja enterrado vivo”, pediu. E a verdade é que o coração de Chopin foi mergulhado numa garrafa de conhaque e aí ficou até que mais tarde os cientistas voltaram lá para determinar a causa da morte de Frédéric Chopin: Tuberculose e suas complicações secundárias, publicado em 2018 no American Journal of Medicine. Até aí, pensava-se que Chopin teria morrido de fibrose cística, uma doença crónica e hereditária.

Segundo o The Guardian, Michael Witt – líder da equipa de investigadores e professor da Academia de Ciências Polaca – explicou ao The Observer que não era necessário abrir a garrafa para examinar o órgão. Observando o coração através da garrafa, eram visíveis “sérias complicações decorrentes da tuberculose, como pequenas lesões e uma fina camada de materiais fibrosos brancos”, explica Witt. Frédéric Chopin terá morrido de pericardite, uma inflamação da membrana que reveste o coração, provavelmente provocada pela tuberculose. Michael Witt rejeita a hipótese de abrir o frasco para recolher amostras de tecido na tentativa de provar que Chopin padecia de uma doença herdada através de testes de ADN. “Abrir o frasco poderia destruir o coração e, de qualquer forma, estou convencido de que agora sabemos o que matou Chopin”, afirmou o investigador. Este estudo é o último capítulo da história da morte do músico. A causa da sua morte – que, até agora, era um mistério – foi revelada. No entanto, há quem defenda que o mistério continua, por acreditarem que no frasco está um coração, mas não o do compositor. O coração guardado na Igreja de Santa Cruz, na capital polaca, foi levado em segredo de Paris (onde morreu Chopin) para a Polónia, pela irmã Ludwika. O órgão chegou a estar num quartel Nazi durante a Segunda Guerra Mundial porque um comandante das SS Nazi fez questão de ter ao seu lado o seu compositor favorito. Depois de terminada a Segunda Guerra, o coração foi devolvido à igreja polaca, onde se encontra preservado até hoje.




Quando Niccolò Paganini morreu, a 27 de maio de 1840 com tuberculose, a igreja negou-se a sepultar o seu corpo num cemitério cristão porque ele recusara os sacramentos finais, pensando que a sua hora não chegara. A decisão só fez crescer ainda mais o mito. Para uns, foi a confirmação do contrato com o diabo, para outros, a prova de que ele acreditaria piamente que seria imortal. Os seus restos mortais foram guardados até o filho, Achille Paganini, obter autorização do Papa para enterrar em 1896 o corpo do pai no cemitério Della Villetta, Parma.

A medicina, em finais do século XIX, até evoluíra bastante. Em 1896 Antoine Marfan, pediatra francês, havia identificado uma doença que recebeu o seu nome “Síndrome de Marfan”. Mas só muito recentemente os investigadores começaram a ligar esta síndrome a Paganini. Os sintomas encaixam-se na perfeição. A doença provoca o alongamento dos braços, das pernas ou dos dedos, esticando também outras partes do corpo como os pulmões, os olhos, o coração e os vasos sanguíneos.

Quando criança era constantemente obrigado pelo próprio pai a estudar violino, por horas a fio, sob ameaça de castigos severos. Em seus primeiros concertos públicos, foi logo considerado uma criança prodígio. Depois de se ter libertado da tutela do pai, começou a sua carreira como virtuoso violinista, mas também descontou o tempo perdido, gastando todo o seu dinheiro em jogos e diversões noturnas. Em 1828 sai pela primeira vez de Itália para dar os seus concertos onde pontuavam Chopin, Schubert e Schumann. Os últimos anos da sua vida foram passados em Nice. Também foi apanhado pela maldita tuberculose.
O estilo de vida de Niccolò Paganini e a sua aparência mefistofélica deram origem a histórias de que o seu virtuosismo era devido a um pacto com o demónio. Um dia, Paganini, vestido de negro, saiu da sua carruagem puxada por quatro cavalos também eles negros, entrou apressado na Ópera de Paris enquanto uma multidão que o esperava ficava assombrada. Uns benzendo-se como se tivessem visto uma alma penada, outros tentavam tocar-lhe com a bengala para terem a certeza de que era um homem de carne e osso como eles. Paganini ignorou-os. Veio gente de todas as partes da cidade e arredores. Não sobrou um único lugar vazio. Um burburinho percorria a plateia, mas não era aquele bulício próprio que o público faz antes de os concertos começarem. Era antes um murmúrio nervoso, como se quisessem fugir, mas fossem incapazes de quebrar o feitiço que os prendia às cadeiras. 

Assim que as luzes se apagaram, o silêncio engoliu os últimos rumores a ecoar ainda pelo salão. Uma claridade iluminou a figura de Paganini. A assistência gelou. O fato preto apertava-lhe o corpo magro, os olhos eram escuros e encovados, os lábios quase não se viam, as bochechas chupadas, o nariz afiado como o bico de uma águia e a cabeleira desgrenhada. Era uma visão aterradora que Paganini gostava de perpetuar, atrasando o início do espetáculo com uma pausa de vários segundos. Mas, assim que encaixava o violino debaixo do queixo, o foco deixava a sua silhueta escanzelada e centrava-se na música e nos gestos arrebatados de fúria. 

Com os seus dedos finos e compridos como ponteiros de um relógio, Paganini conseguia tocar 12 notas por segundo, velocidade nunca alcançada antes ou depois dele. Não raras vezes, deixava o público estupefacto ao tirar uma tesoura do bolso e cortar três cordas do violino, continuando a improvisar unicamente com a corda sol. Não é, portanto, do nada que tantos rumores surgem à volta dele. Paganini toca com entusiasmo e mestria de cortar a respiração. É divinal, acham uns. Ou diabólico, dizem outros. Nenhuma criatura de Deus conseguiria tocar assim. Só pode ter um pacto com o diabo para atingir tamanha perfeição. Aqui, em Paris, chamam-lhe de Cagliostro, um alquimista charlatão que diz ter poderes sobrenaturais. 

Em Praga passou por judeu errante, figura mítica da tradição oral cristã, condenada a vaguear pelo mundo até ao fim dos tempos. Na Irlanda disseram que tinha chegado num Holandês Voador, um navio fantasma saído de lendas oceânicas que navega pelos mares sem nunca atracar em terra firme. Sempre que chega a uma cidade, Paganini arrasta multidões, mas também ajuntamentos de beatos a protestar à entrada dos teatros e das óperas. Ganha fortunas com as tournées, mas não é o único a fazer dinheiro com a sua fama. Os comerciantes usam o nome dele para vender desde perfumes, pacotes de cigarros e até pares de botas. 

A Europa só viria a descobri-lo já com 42 anos, ao dar um concerto memorável em Viena, em agosto de 1828. O espetáculo continuou por outras cidades da Alemanha, da Polónia ou do Reino da Boémia. Os públicos de Paris, de Londres e de Estrasburgo receberam-no logo a seguir com o mesmo entusiasmo. E a partir daí, a fama, mas também as lendas, acompanharam-no sempre, mesmo quando tentou livrar-se dessas histórias. O que antes o ajudara a tornar-se numa celebridade virou, nos últimos anos, uma maldição que o enredou como uma teia de aranha. Talvez por ter nascido e crescido num meio católico ou por estar fraco e doente, já não achava piada aos delírios do público. 

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