Paul Ricœur (1913-2005), nascido numa família protestante, órfão da Primeira Grande Guerra, estudava na Alemanha quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial. É aí que passa a guerra, num campo de prisioneiros. Sobreviveu e iniciou a sua carreira ensinando regularmente nos EUA e no Canadá, e não apenas em França. Teve a oportunidade de conhecer em primeira mão a filosofia analítica. Crítico de aspectos do sistema académico francês, foi um dos impulsionadores da criação da nova Universidade de Paris X (Nanterre), onde tinha responsabilidades de direcção no Maio de 68. Os problemas por que então passou conduziram-no a um exílio voluntário. Daí que muitos dos seus escritos apareçam em inglês.
A interpretação é o grande foco da sua obra. Por vezes e num certo contexto (por exemplo, o contexto da teoria crítica no mundo anglófono), Ricœur e Derrida aparecem em competição, enquanto figuras inspiradoras das disciplinas da interpretação. No mundo de língua francesa, Ricœur aparece frequentemente como uma resposta da hermenêutica ao estruturalismo. A sua carreira filosófica tem início na fenomenologia existencial, com o interesse por autores próximos da religião, como o filósofo alemão Karl Jaspers (1883-1969) e o filósofo francês Gabriel Marcel (1889-1973), sobre quem escreve. Uma questão que sempre o atraiu foi o problema do mal, numa combinação de fenomenologia com hermenêutica.
Assim se inicia a sua obra, nos anos 1950, com Philosophie de la volonté: Le volontaire et l’involontaire, o seu materialismo cristão leva-o a acentuar a importância de se ser um corpo, e a possibilidade do "eu" participar directamente no mistério da mente corpórea, da mente da carne. Dada a nossa corporeidade, o voluntário e o involuntário são complementares na existência humana. Está em causa na vontade o decidir, escolher, mover-se para a acção. No involuntário, está em causa o ente corpóreo, o insonciente.
Na evolução do seu pensamento, aliás tal como tantos outros, dá-se aquilo que é designado por "viragem epistemológica", uma viragem da fenomenologia para a hermenêutica. Poder-se-ia também pensar no conjunto da sua obra como propondo uma antropologia filosófica, que dá um grande espaço à questão do autoconhecimento (veja-se um dos seus últimos livros, O Si-Mesmo como Outro, 1990). Para Ricœur não há um eu transparente a si ou em pleno domínio de si. A via do autoconhecimento é longa e tortuosa. Ao contrário de um filósofo existencialista como Sartre, o foco de Ricœur quando persegue o autoconhecimento não é a consciência, mas sim a acção, daí o seu interesse pelos temas do voluntário e do involuntário.
Ricœur interessa-se não tanto directamente pela existência humana enquanto interpretação. É importante ter claro que a noção ricœuriana de interpretação não tem por objecto a linguagem tout court, a linguagem entendida como qualquer coisa dita, como Aristóteles, em Da Interpretação, nos pode ter feito pensar. A noção ricœuriana de interpretação entra em cena apenas com os fenómenos de duplo sentido. Estes têm lugar quando há linguagem já em funcionamento (os fundadores da tradição analítica, em contraste, estudariam a linguagem no sentido aristotélico de qualquer coisa que é dita). Ricœur é cuidadoso a fazer essa distinção. Além disso, em oposição à «via curta» de Heidegger (i.e., a ontologia hermenêutica de Ser e Tempo), Ricœur defende uma «via longa» para a hermenêutica. Na prática, isto significa que ele defende que a filosofia de orientação hermenêutica deve ser feita em contacto com as disciplinas da interpretação, como a psicanálise, a crítica literária e a teologia. Os temas que então se erguem serão os temas da filosofia de Ricœur:
O aspecto mais propriamente simbólico da hermenêutica ricœuriana, centrado em textos, é acompanhado noutras obras por análises mais próximas da natureza da linguagem. O estudo da metáfora feito em A Metáfora Viva, por exemplo, passa pela palavra e pela frase até chegar ao discurso. Ricœur considera que, já no plano dos fenómenos de transporte e deslocamento de palavras, o mecanismo metafórico é mais do que substituição mecânica — envolve transgressão categorial, recategorização, e evidencia por isso de alguma forma a própria natureza (criativa) do pensamento enquanto processo do qual provêm as classificações e os conceitos estáveis (estes são instituídos devido a uma semelhança que teve de ser primeiro «vista»). O aspecto original da proposta de Ricœur é a inserção da análise da metáfora numa tarefa hermenêutica geral.
Os temas da memória, da história, do esquecimento, do tempo e da narrativa, do justo e do reconhecimento ocupam as últimas obras de Ricœur (Le juste I e II, 1995, 2001; Tempo e Narrativa I, II e III, 1983–1985; A Memória, a História, o Esquecimento, 2002; Parcours de la reconnaissance, 2004). Ocupa-o o facto de a nossa finitude ser visível na nossa natureza histórica, o que clarifica afinal a ideia de liberdade finita. Nestas condições, o auto-entendimento procurado por cada humano acontecerá apenas através dos sinais depositados na memória e na imaginação, nomeadamente pela grande tradição literária. A análise desta está sempre presente em Ricœur.
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