segunda-feira, 1 de julho de 2024

Paul Ricœur


Paul Ricœur (1913-2005), nascido numa família protestante, órfão da Primeira Grande Guerra,  estudava na Alemanha quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial. É aí que passa a guerra, num campo de prisioneiros. Sobreviveu e iniciou a sua carreira ensinando regularmente nos EUA e no Canadá, e não apenas em França. Teve a oportunidade de conhecer em primeira mão a filosofia analítica. Crítico de aspectos do sistema académico francês, foi um dos impulsionadores da criação da nova Universidade de Paris X (Nanterre), onde tinha responsabilidades de direcção no Maio de 68. Os problemas por que então passou conduziram-no a um exílio voluntário. Daí que muitos dos seus escritos apareçam em inglês.



A interpretação é o grande foco da sua obra. Por vezes e num certo contexto (por exemplo, o contexto da teoria crítica no mundo anglófono), Ricœur e Derrida aparecem em competição, enquanto figuras inspiradoras das disciplinas da interpretação. No mundo de língua francesa, Ricœur aparece frequentemente como uma resposta da hermenêutica ao estruturalismo. A sua carreira filosófica tem início na fenomenologia existencial, com o interesse por autores próximos da religião, como o filósofo alemão Karl Jaspers (1883-1969) e o filósofo francês Gabriel Marcel (1889-1973), sobre quem escreve. Uma questão que sempre o atraiu foi o problema do mal, numa combinação de fenomenologia com hermenêutica. 

Assim se inicia a sua obra, nos anos 1950, com Philosophie de la volonté: Le volontaire et l’involontaire, o seu materialismo cristão leva-o a acentuar a importância de se ser um corpo, e a possibilidade do "eu" participar directamente no mistério da mente corpórea, da mente da carne. Dada a nossa corporeidade, o voluntário e o involuntário são complementares na existência humana. Está em causa na vontade o decidir, escolher, mover-se para a acção. No involuntário, está em causa o ente corpóreo, o insonciente.

Na evolução do seu pensamento, aliás tal como tantos outros, dá-se aquilo que é designado por "viragem epistemológica", uma viragem da fenomenologia para a hermenêutica. Poder-se-ia também pensar no conjunto da sua obra como propondo uma antropologia filosófica, que dá um grande espaço à questão do autoconhecimento (veja-se um dos seus últimos livros, O Si-Mesmo como Outro, 1990). Para Ricœur não há um eu transparente a si ou em pleno domínio de si. A via do autoconhecimento é longa e tortuosa. Ao contrário de um filósofo existencialista como Sartre, o foco de Ricœur quando persegue o autoconhecimento não é a consciência, mas sim a acção, daí o seu interesse pelos temas do voluntário e do involuntário. 

Ricœur interessa-se não tanto directamente pela existência humana enquanto interpretação. É importante ter claro que a noção ricœuriana de interpretação não tem por objecto a linguagem tout court, a linguagem entendida como qualquer coisa dita, como Aristóteles, em Da Interpretação, nos pode ter feito pensar. A noção ricœuriana de interpretação entra em cena apenas com os fenómenos de duplo sentido. Estes têm lugar quando há linguagem já em funcionamento (os fundadores da tradição analítica, em contraste, estudariam a linguagem no sentido aristotélico de qualquer coisa que é dita). Ricœur é cuidadoso a fazer essa distinção. Além disso, em oposição à «via curta» de Heidegger (i.e., a ontologia hermenêutica de Ser e Tempo), Ricœur defende uma «via longa» para a hermenêutica. Na prática, isto significa que ele defende que a filosofia de orientação hermenêutica deve ser feita em contacto com as disciplinas da interpretação, como a psicanálise, a crítica literária e a teologia. Os temas que então se erguem serão os temas da filosofia de Ricœur: 

O conflito das interpretações, a natureza da narrativa, a natureza da metáfora ou a natureza do discurso religioso são os temas de eleição na filosofia de Ricœur. Há significação e há significado da existência. É com esta intuição que defende as suas posições contra o estruturalismo, a desconstrução e a psicanálise. Ricœur interessa-se também por compreender aquilo que vê como a natureza frágil e paradoxal da existência e da liberdade humanas, e o que poderá ser uma vontade má e actos maus. Somos fragilmente livres, defende, podemos usar mal a nossa vontade; a vontade má é simplesmente uma realidade. Há uma desproporção entre o infinito da nossa racionalidade e a finitude da nossa realidade corpórea.

Ricœur é, assim, levado a interessar-se pela falibilidade do humano e pelas dimensões da desproporção do humano relativamente a si próprio: a imaginação, o carácter, o sentimento, temas de Philosophie de la volonté: Finitude et culpabilité. Segundo Ricœur, é necessário, para entender a realidade humana, compreender a existência e a realidade do mal, e também para isso a interpretação é essencial. Ao analisar a simbologia do mal, Ricœur faz fenomenologia da religião (e pensa que toda a fenomenologia da religião é fenomenologia do sagrado). Ora, segundo a fenomenologia da religião, há uma verdade dos símbolos. É em última análise esta convicção que o opõe a uma outra orientação hermenêutica do pensamento contemporâneo a que Ricœur chamou «hermenêutica da suspeita» expressão que remonta a Marx, Freud e Nietzsche. 

A expressão popularizou-se e as posições de Ricœur sobre estes autores, que foram a bandeira incontestada de um certo pensamento francês e da geração do estruturalismo, têm o interesse especial de lhes apontar directamente os pontos fracos. O livro sobre Freud (De l’interpretation: Essai sur Freud, 1965), violentamente contestado pelo milieu lacaniano, é disso exemplo. O que distingue afinal o ponto de vista da hermenêutica ricœuriana do ponto de vista da psicanálise, se em ambas as circunstâncias está em causa interpretação? 

Segundo Ricœur, a arqueologia do sujeito e da cultura levada a cabo pela psicanálise é sem dúvida necessária, mas não nos diz nada acerca do que é para um ser humano ser livre e capaz. Ora, isto é algo que se impõe fazer a quem, como Ricœur, acredita no significado da existência humana. O contrário da suspeita, propõe Ricœur, é a fé. Um outro ponto fraco da hermenêutica da suspeita para Ricœur é o facto de esta visar, em última análise, alargar a consciência, uma vez curada e desmistificada. Isso redunda, na sua perspectiva, numa cegueira perante o núcleo mítico-poético do humano que é, segundo Ricœur, inerradicável.

O aspecto mais propriamente simbólico da hermenêutica ricœuriana, centrado em textos, é acompanhado noutras obras por análises mais próximas da natureza da linguagem. O estudo da metáfora feito em A Metáfora Viva, por exemplo, passa pela palavra e pela frase até chegar ao discurso. Ricœur considera que, já no plano dos fenómenos de transporte e deslocamento de palavras, o mecanismo metafórico é mais do que substituição mecânica — envolve transgressão categorial, recategorização, e evidencia por isso de alguma forma a própria natureza (criativa) do pensamento enquanto processo do qual provêm as classificações e os conceitos estáveis (estes são instituídos devido a uma semelhança que teve de ser primeiro «vista»). O aspecto original da proposta de Ricœur é a inserção da análise da metáfora numa tarefa hermenêutica geral. 

Ricœur vê no discurso metafórico a libertação de um «poder de referência de segundo grau», que tem como condição a suspensão da referência literal. Para Ricœur, o discurso metafórico não é auto-referencial e centrado em si mesmo, mas antes ocasião de «referência desdobrada». A análise da metáfora conduz Ricœur a pensar sobre a natureza da inovação no pensamento e sobre a natureza da imaginação criadora, capaz de redescrever a realidade do mundo habitável, em termos éticos e estéticos. Fugindo ao logos apofântico, i.e., à primazia de dizer o verdadeiro de forma descritiva, a metáfora é o processo retórico pelo qual o discurso liberta o poder de redescrever a realidade. De novo Ricœur se coloca em alternativa a Derrida.

Os temas da memória, da história, do esquecimento, do tempo e da narrativa, do justo e do reconhecimento ocupam as últimas obras de Ricœur (Le juste I e II, 1995, 2001; Tempo e Narrativa I, II e III, 1983–1985; A Memória, a História, o Esquecimento, 2002; Parcours de la reconnaissance, 2004). Ocupa-o o facto de a nossa finitude ser visível na nossa natureza histórica, o que clarifica afinal a ideia de liberdade finita. Nestas condições, o auto-entendimento procurado por cada humano acontecerá apenas através dos sinais depositados na memória e na imaginação, nomeadamente pela grande tradição literária. A análise desta está sempre presente em Ricœur.

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