segunda-feira, 8 de julho de 2024

A "agenda da suspeita", a propósito de Henrique, o Navegador



Os estudos pós-coloniais ganharam destaque nas últimas décadas, quando certas academias resolveram analisar o impacto duradouro do colonialismo e a perpetuação das suas consequências nas sociedades contemporâneas. Ora, esses estudos vieram desafiar sob a "agenda da suspeita" as narrativas históricas tradicionais, que muitas vezes glorificam figuras e eventos históricos sem considerar as suas implicações éticas e morais, especialmente em relação à opressão e à exploração dos povos colonizados. A agenda da suspeita não aceita as coisas pelo seu valor facial. Está sempre em busca de entender as camadas mais profundas e os interesses subjacentes que moldam a sociedade e as suas instituições.
Henrique, o Navegador, é uma figura central na história das explorações portuguesas e é frequentemente celebrado por suas contribuições para a era dos Descobrimentos. No entanto, estudiosos pós-coloniais e ativistas apontam que as suas explorações também iniciaram uma era de colonização, exploração e escravização de povos africanos. Henrique, o Navegador, e os exploradores portugueses do tempo dos Descobrimentos, desempenharam papéis significativos na abertura das rotas comerciais que levaram ao tráfico transatlântico de escravos. Esta é uma parte sombria da história que estudiosos pós-coloniais trazem à tona para um reexame crítico. Os defensores dos estudos pós-coloniais argumentam que a história deve ser reavaliada para incluir as vozes e experiências dos colonizados, que muitas vezes são omitidas das narrativas tradicionais. E a figura de Henrique, o Navegador, que é muto glorificado, não pode estar isento de crítica.

Nos últimos anos, a figura de Dom Henrique, o Navegador, tem sido revisitada à luz de novas perspectivas historiográficas, especialmente no que diz respeito à sua participação no início do comércio transatlântico de escravos. Esta "retromilitância ideológica" , que tem origem nas Academias dos Estados Unidos da América, é ampla e abrangente, não deixado nada de fora do que foi a saga do colonialismo europeu em todo o mundo. Dedica-se ao reexame crítico de figuras históricas, considerando as implicações éticas e morais das suas ações à luz dos padrões contemporâneos.

Dom Henrique foi, de facto, um dos pioneiros no estabelecimento do comércio de escravos africanos para a Europa, com as suas expedições frequentemente resultando na captura e venda de africanos. Gomes Eanes de Zurara, em sua crónica, documenta essas atividades, muitas vezes retratando-as como empreendimentos heroicos ou justificados pelo contexto da época. Este reexame crítico tem levado a uma certa diminuição ou "apoucamento" da sua figura em alguns círculos, onde suas contribuições para a navegação e a expansão territorial são vistas de forma mais complexa, em contraponto com o impacto negativo e duradouro que o tráfico de escravos provocou nas populações africanas. 

Por todas as razões, a presença de monumentos nas praças públicas dos países ocidentais têm sido alvo de contestação sempre que exibam essas figuras coloniais que estiveram implicadas de alguma maneira no processo da escravatura. Não faz sentido que esses monumentos continuem a perpetuar a celebração de um passado de opressão. Assim, há um movimento crescente para reconsiderar esses monumentos, incluindo a remoção ou a recontextualização com placas informativas que ofereçam uma visão mais completa e crítica da história. Mas, como seria de esperar, estes movimentos estão a provocar reação naquelas pessoas que durante várias gerações cultivaram como honrosas essas figuras que sempre foram tidas como engrandecedores e que muito prestigiaram os seus antepassados. Muitos veem esses movimentos como uma ameaça à identidade nacional e ao património cultural. Figuras como Henrique, o Navegador, são símbolos de um passado glorioso e de realização nacional. 

A "agenda da suspeita", ligada aos grupos agora designados pelo rótulo "woke", refere-se a uma abordagem crítica e desconfiada em relação às estruturas de poder e às narrativas dominantes na sociedade. O termo "woke" é usado para descrever indivíduos ou grupos que estão conscientes e engajados em questões sociais de justiça, como racismo, desigualdade de género, e outras formas de opressão. Entre as várias facetas desta agenda avultam tópicos desconstrutivos das narrativas tidas como dominantes e opressoras que sustentam as desigualdades. Argumentam que frequentemente há vieses implícitos que favorecem grupos dominantes.

A questão - se um português tem razão em sentir-se magoado quando outro português desdenha dos feitos do Infante Dom Henrique - é complexa e envolve várias dimensões, incluindo históricas, culturais e ideológicas. Por um lado, o Infante Dom Henrique é uma figura central na história de Portugal, e da Era dos Descobrimentos que é um acontecimento internacional considerado prolegómeno da Globalização. Henrique é considerado o patrono da expansão marítima europeia, que proporcionou aos europeus a descoberta de novas terras, a sua colonização, e a abertura de novas rotas para o comércio com as potências orientais do Oceano Índico e Pacífico. Muitos portugueses ainda nos dias de hoje olham para Henrique com orgulho. Não foi coisa pouca ter recebido o legado de um país que no seu tempo foi uma potência marítima e comercial. E, para além disso, contribuiu com conhecimento com impacto significativo para a História Mundial. Por outro lado, os "wokes", reavaliam essas figuras, e os eventos históricos que lhes estão associados, à luz de um preconceito ideológico descontextualizado e anacrónico. Isso não significa que tenhamos de apagar as consequências negativas de toda a ção humana. O que não se pode é julgar o passado com a bitola moral do presente. Portanto, um português pode sentir-se magoado por ver os símbolos heróicos de um passado glorioso do seu povo serem maltrados por critérios extemporâneos. Isso não retira que seja igualmente importante conhecer todos os lados da História, mas sem qualquer acinte. 

Seja como for, volta e meia vemos nas reportagens televisivas serem removidos monumentos de figuras controversas. Por outro lado, tem havido um esforço crescente para incorporar as perspetivas pós-coloniais nos currículos escolares e universitários, promovendo uma compreensão mais crítica e inclusiva da História. Entretanto isso vai causando ao mesmo tempo desconforto e resistência, o que está a gerar um amplo processo de revisão da História. Isto não é novo, se nos lembrarmos da chamada "guerra cultural". Desde a década de 1960 que se tem vindo a afirmar um conflito prolongado sobre valores culturais, sociais e morais, que por simplificação divide esquerda e direita, se nos limitarmos a esta geometria demasiado simplista, ou a uma identificação mais qualtativa que divide conservadores e liberais; ou cintistas das ciências duras (biológicas) e cientistas das ciências moles (hunidades). 


O conflito das Guerras Curturais tem sido, de facto, uma divisão estruturante das mundividências enntre as Faculdades nas Universidades ocidentais, em particular as dos Estados Unidos da América. Esse conflito começou a ganhar força nos Estados Unidos durante as décadas de 1960 e 1970, com ramificações no Maio 68 em Paris, e se intensificou ao longo das décadas subsequentes. A década de 1960 foi um período de grandes mudanças sociais, com a emergência de todos os Movimentos: movimento pelos direitos civis; movimento feminista; movimento LGBT; protestos pela Paz, contra a Guerra. Esses movimentos desafiaram o status quo e a ordem social estabelecida, resultando numa polarização crescente entre aqueles que apoiavam essas mudanças e aqueles que se opunham a elas.

O termo "guerra cultural" foi-se popularizando na década de 1980 e anos 1990 pelo sociólogo James Davison Hunter no seu livro "Culture Wars: The Struggle to Define America". Hunter argumentou que a sociedade americana estava dividida em duas "culturas": os progressistas, que buscavam a mudança e a reforma; e os tradicionalistas, que defendiam valores conservadores e tradicionais. Durante os anos 1980 e 1990, essas divisões se manifestaram em debates sobre questões como o aborto, direitos LGBT, educação, religião na esfera pública, e políticas de ação afirmativa. Políticos conservadores, como Ronald Reagan e posteriormente Newt Gingrich, capitalizaram essas divisões culturais para mobilizar eleitores e consolidar poder político.


Newt Gingrich

Chegados ao século XXI, a guerra cultural continuou a evoluir, intensificando-se com o advento das redes sociais e a polarização mediática. Questões como identidade de género, imigração, multiculturalismo, e liberdade de expressão tornaram-se pontos centrais de conflito. A eleição de Donald Trump em 2016 é frequentemente vista como um marco importante na guerra cultural contemporânea, exacerbando as divisões entre diferentes grupos sociais e políticos.

Dentro da esquerda liberal, a guerra cultural também tem causado divisões. Por exemplo, há tensões entre progressistas e centristas sobre como abordar questões de justiça social, liberdade de expressão, e políticas de identidade. Alguns progressistas defendem abordagens mais radicais e transformadoras, enquanto outros temem que essas abordagens possam alienar eleitores moderados e levar a reações adversas.

Enquanto alguns argumentam que essas abordagens são essenciais para abordar injustiças históricas, outros temem que enfoques muito rígidos sobre políticas de identidade e interseccionalidade possam dividir coligações políticas amplas. E assim têm surgido controvérsias sobre o denominado “cancelamento” à liberdade de expressão.
O anacronismo feito pelos "wokes", quando reavaliam figuras e eventos históricos, é uma questão relevante e frequentemente debatida. O anacronismo ocorre quando se aplicam valores e normas contemporâneos a épocas passadas, sem levar em consideração o contexto histórico específico. Há alguns pontos importantes a considerar, como é o caso do contexto histórico. É fundamental reconhecer que figuras históricas, como o Infante Dom Henrique, operavam em um contexto muito diferente do atual. As normas, valores e práticas de seu tempo não correspondem necessariamente aos padrões éticos e morais contemporâneos. Portanto, julgar ações históricas apenas à luz dos valores modernos pode resultar numa avaliação distorcida. Por exemplo, o Infante Dom Henrique foi crucial para a Era dos Descobrimentos. Mas os "wokes" só veem o que resultou em exploração e colonialismo.

A "ideologia woke" procura, muitas vezes, trazer à tona aspectos da história que foram negligenciados ou romantizados, como as injustiças sociais e as opressões. Essa abordagem pode ser vista como uma tentativa de promover uma consciência crítica e uma compreensão mais completa e justa do passado. O diálogo entre diferentes perspectivas históricas é essencial. Nem sempre se trata de desdenhar ou glorificar figuras históricas, mas sim de promover um debate educado e fundamentado sobre suas ações e legados. Assim, enquanto pode ser considerado abusivo aplicar valores contemporâneos de forma simplista a períodos históricos passados, uma reavaliação crítica que leva em conta o contexto e as complexidades pode enriquecer nossa compreensão da história. Equilibrar essas abordagens é o desafio, permitindo tanto o reconhecimento das conquistas quanto a reflexão sobre os aspectos negativos.

As motivações por trás das críticas também são importantes. Se alguém critica os feitos históricos com o objetivo de desvalorizar ou denegrir de forma maliciosa, pode ser percebido como traição. No entanto, se a crítica é fundamentada em uma análise consciente e informada, com o intuito de promover um entendimento mais profundo e corrigir injustiças, ela pode ser vista como um ato de coragem e integridade. Olhar criticamente para o passado pode ajudar a sociedade a evitar a repetição de erros e a construir um futuro melhor. A negação ou glorificação acrítica do passado pode perpetuar injustiças e impedir o progresso. Portanto, enquanto alguns podem ver a crítica histórica como uma forma de traição, outros a veem como uma parte essencial de um patriotismo saudável e de uma sociedade consciente. A chave está em como a crítica é formulada, bem como no seu objetivo, que deve ser para construir uma compreensão mais rica e justa da história.

Mas, quando a crítica histórica é feita de maneira ideologicamente cega, e resvala para o ódio à pátria, ela pode-se tornar intolerável e contraproducente. Uma crítica que não leva em conta o contexto histórico, as complexidades da época e que aplica de forma rígida o valor contemporâneo pode ser superficial e injusto. A cegueira ideológica muitas vezes impede um entendimento profundo e equilibrado dos eventos históricos. Quando a crítica se transforma numa expressão de ódio à pátria, ela pode alienar e polarizar, em vez de promover um diálogo construtivo. O ódio raramente leva à compreensão ou à resolução de problemas; ao contrário, tende a criar divisões e ressentimentos. Uma crítica válida deve buscar o equilíbrio, reconhecendo tanto os aspectos positivos como os negativos da história de um país. Respeitar o contexto histórico e os valores da época, ao mesmo tempo em que se aplicam análises críticas informadas, é crucial para uma avaliação justa.

Críticas que visam o aprimoramento da sociedade, a correção de injustiças e a promoção de uma compreensão mais rica e justa do passado podem ser valiosas. No entanto, críticas que são puramente destrutivas e não oferecem caminhos para a reconciliação e o progresso não contribuem de maneira positiva. Um diálogo aberto e respeitoso sobre a história é fundamental. As críticas devem ser acompanhadas por argumentos bem fundamentados e uma disposição para ouvir diferentes perspectivas. Isso ajuda a construir uma narrativa histórica mais inclusiva e abrangente. Em suma, a crítica histórica pode ser uma ferramenta poderosa para o entendimento e o progresso social, mas deve ser feita com responsabilidade, equilíbrio e respeito. 

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