terça-feira, 23 de julho de 2024

Um mundo multipolar


Pequim tem reclamado um papel maior para a China na resolução de questões internacionais. No ano passado, a diplomacia chinesa mediu também as negociações que culminaram num acordo entre Arábia Saudita e Irão para o restabelecimento das relações diplomáticas. De acordo com o Presidente chinês, Xi Jinping, a China deve "participar ativamente na reforma e construção do sistema de governação global" e promover "iniciativas de segurança global". A China avançou também com um plano para a paz na Ucrânia, que os países ocidentais desvalorizaram, por pôr "agressor e vítima" ao mesmo nível. Em particular, a China defende a noção de "comunidade com um futuro partilhado", que visa contrariar a arquitetura de segurança erguida pelo Ocidente depois da Segunda Guerra Mundial. Pequim acusa a doutrina ocidental de estimular o confronto entre blocos e minar a estabilidade em diferentes partes do mundo.


A ideia de um sistema de poder multipolar, onde múltiplas grandes e médias potências compartilham influência e poder global, tem sido um tema recorrente nas relações internacionais. A viabilidade e a eficácia de tal sistema são objeto de debate. Os argumentos a favor de um sistema multipolar veem vantagem por prevenir a dominação de uma única potência, pois os equilíbrios de poder são sempre melhores para prevenir abusos de poder. Um mundo multipolar garante melhor a diversidade de interesses que é o que existe na realidade. Portanto, promove a existência de um mundo mais inclusivo e equitativo. A presença de múltiplas potências pode criar um sistema internacional mais resiliente e flexível, capaz de se adaptar às mudanças que fazem parte do parmenete caminho da História. O sucesso ou fracasso desse sistema dependerá de como os atores internacionais navegam nas suas complexidades em busca de soluções cooperativas para os problemas globais. A História e as circunstâncias contemporâneas sugerem que, com a abordagem correta, um sistema multipolar pode ser mais funcional, logo, benéfico.

Mas há quem considere que no passado, sempre que se caminhava para a multipolaridade, portanto, sem que houvesse uma superpotência a mandar no mundo, os conflitos e as guerras se impunham com mais frequência. A competição intensa por recursos, sem freios, tende a arrastar a ordem para a desordem, anarquia e caos. Multiplicidade de conflitos regionais, como ocorreu nas eras multipolares do passado, as eras das revoluções, do poder na rua. 
A ausência de uma hegemonia clara pode dificultar a coordenação em questões globais, como mudanças climáticas, terrorismo, pandemias e crises económicas. Diferentes potências podem ter agendas conflitantes, dificultando a formulação de políticas coerentes e eficazes. Um sistema multipolar pode aumentar a insegurança global, pois as nações podem sentir a necessidade de aumentar as suas capacidades militares e formar alianças instáveis para proteger seus interesses. Esse ambiente pode resultar em uma corrida armamentista e em uma maior instabilidade. A diplomacia se torna mais complexa e difícil num mundo multipolar, onde cada potência busca maximizar os seus interesses. A formação e a manutenção de alianças e acordos podem ser prejudicadas pela presença de múltiplos atores com interesses divergentes. Assim, a eficácia de um sistema multipolar depende de vários fatores, incluindo a capacidade das potências saberem gerir as suas rivalidades de forma pacífica com a ajuda de instituições internacionais eficazes. Tudo isso está dependente da vontade dos estados cooperarem em questões globais.

A descontinuidade civilizacional a Ocidente, com a queda do Império Romano do Ocidente no século V d.C., deveu-se à perda de contacto com a cultura que já vinha do tempo dos clássicos gregos. Houve um declínio significativo na organização política, económica e cultural que sustentava as instituições de ensino e cultura. Os movimentos migratórios na parte final do Império Romano do Ocidente marcaram o início que a História designou por Idade Média. O colapso das estruturas sociais e económicas interrompeu o fluxo de conhecimentos que sustentavam o Império Romano. Por outro lado, a ascensão do Cristianismo trouxe mudanças na filosofia e na educação. Alguns textos clássicos gregos foram considerados pagãos ou não alinhados com a teologia cristã, o que afetou a sua preservação e estudo. Deixou de haver interesse em preservar os textos clássicos. É importante notar que, por paradoxal que possa parecer à luz da época que estamos agora a atravessar, foi a Oriente que os textos gregos clássicos continuaram a ser preservados e que continuaram a ser estudados pelos islâmicos. E foi assim que de uma forma quase fulminante a civilização islâmica floresceu e se impôs durante alguns séculos à ignorância da Europa Ocidental. 

Por conseguinte, para podermos avaliar as vantagens e desvantagens dos váris tipos de sistemas de poder a nível internacional, é imprecindível consultarmos a História. Que lições importantes podemos retirar do estudo das dinâmicas de poder internacional do passado. O sistema que tem estado em vigor desde a queda do Muro de Berlim é um sistema unipolar liderado por uma única Superpotência - Estados Unidos da América - e ao mesmo tempo algumas potências emergentes a tentrem implantar um sistema multipolar. O exemplo fragrante é o conhecido grupo dos BRICS. Já se percebeu o que é que a China quer. A predominância dos EUA desde o fim da Guerra Fria tem proporcionado um grau de estabilidade, com uma potência dominante capaz de mediar conflitos e influenciar normas e regras internacionais. Os EUA têm desempenhado um papel central em instituições internacionais pela via do seu financiamento. E é sob a máxima "manda quem paga" que os Estados Unidos da América têm argumentado para fazer valer o seu poder ao nível da governança global. O mesmo se passou no tempo do Império Romano, que teve altos níveis de comércio internacional, inovação tecnológica e crescimento económico.

O tempo da Guerra Fria é considerado o paradigma do sistema bipolar. E a verdade é que se verificou um equilíbrio de poder entre EUA e URSS, o que evitou que uma única potência dominasse completamente. E isso foi benéfico para uma certa estabilidade estrutural sobretudo no mundo ocidental ou Norte Global. A existência de alianças claras como a NATO e o Pacto de Varsóvia ajudou a organizar as relações internacionais e a reduzir a incerteza. É claro que esteve muito longe de ser perfeito. Avultaram os conflitos por procuração. A rivalidade entre as superpotências levou a conflitos por procuração em várias partes do mundo (Vietname, Coreia, Afeganistão), causando destruição e instabilidade. A competição incessante resultou na corrida armamentista nuclear perigosa, aumentando o risco de destruição mútua.

O século que precedeu a Pré-Primeira Guerra Mundial é considerado um período mais parecido com o de um sistema multipolar, que enquanto durou foi bom por ter ptomovido um certo tempo de paz. A diversidade de grandes potências europeias promovia uma distribuição mais equilibrada de poder e influência. A diplomacia ativa e a formação de alianças complexas (Tríplice Aliança, Tríplice Entente) buscavam manter o equilíbrio de poder. Mas depois a competição entre múltiplas potências e a complexidade das alianças contribuíram para a eclosão da Primeira Guerra Mundial, um conflito devastador. A multiplicidade de interesses e a falta de uma hegemonia clara dificultaram a cooperação e a coordenação das crises.

Podemos concluir que cada sistema tem as suas próprias vantagens e desvantagens, e nenhum é inerentemente superior aos ouros em todos os aspetos. A eficácia de um sistema de poder depende em grande parte da capacidade das potências envolvidas de gerenciar as suas relações de forma estável e cooperativa. Um sistema multipolar pode funcionar desde que existam mecanismos eficazes de gestão de conflitos e cooperação internacional. Por outro lado, um sistema unipolar ou bipolar pode proporcionar estabilidade, mas também enfrenta desafios únicos que podem levar à instabilidade e ao conflito. A chave para qualquer sistema de poder mundial bem-sucedido é a capacidade de adaptação, a criação de instituições robustas e a promoção de normas e práticas que incentivem a cooperação pacífica e o desenvolvimento sustentável. E cada tempo histórico tem as suas próprias especificidades às quais não são alheias as idiossincrasias da espécie humana.

O poder unipolar nesta altura está a ser muito contestado. A responsabilidade global pode sobrecarregar a potência dominante, levando ao esgotamento de recursos e influenciando o seu declínio relativo ao longo do tempo. Antes dos tempos modernos, o caso do Império Romano deve ter sido o mais estudado em todos os tempos. A Pax Romana é uma espécie de paradigma, em que o Império Romano proporcionou segurança, estabilidade e prosperidade económica em vastas regiões da Europa, Norte da África e Médio Oriente. Roma construiu uma extensa infraestrutura (estradas, aquedutos, cidades) com a difusão e promoção cultural e tecnológica de uma dimensão nunca superável. Mas a incapacidade de sustentar a defesa das fronteiras e as invasões bárbaras contribuíram para o colapso do império.

Algumas teorias históricas sugerem que o declínio de civilizações pode estar ligado à deterioração de valores culturais e sociais que são essenciais para a coesão e o funcionamento saudável da sociedade. Isso pode incluir a perda de ética de trabalho, coesão social, respeito pelas instituições e normas morais. Do ponto de vista evolutivo e adaptativo, as sociedades que conseguem manter valores e práticas que promovem a cooperação, a inovação, a resiliência e a sustentabilidade estão mais aptas a prosperar e se desenvolver. Alguns estudiosos apontam para exemplos históricos onde a corrupção moral, decadência cultural ou a perda de valores fundamentais coincidiram com períodos de declínio ou colapso civilizacional. O Império Romano colapsou por via da corrupção política, causadora de desigualdades sociais. São as tensões internas que enfraquecem a estrutura das instituições. Em contextos contemporâneos, a análise de sociedades e comunidades frequentemente destaca a importância de normas sociais e culturais que promovem a coesão, justiça social, e a sustentabilidade ambiental como fundamental para o bem-estar e a prosperidade a longo prazo.

É claro que este é mais um daqueles assuntos tão complexos que quanto mais se estuda mais se adensa  nevoeiro. A metáfora do nevoeiro é um oxímoro porque diz que quanto mais se vê, menos vemos. O declínio de civilizações geralmente é resultado de múltiplos fatores inter-relacionados, incluindo mudanças climáticas, pressões demográficas, conflitos internos e externos, além de mudanças nas normas culturais e sociais. A corrupção de costumes é apenas um aspecto dentro de um contexto mais amplo. Normas sociais e valores evoluem ao longo do tempo, e as interpretações sobre o que é moralmente aceitável também mudam. Seguindo uma grelha instrumental de análise, como é a grelha da evolução de matriz darwinista, a adptação e a resiliência são critérios fundamentais. Nem todas as mudanças culturais são necessariamente prejudiciais. As sociedades que são capazes de adaptar seus valores e instituições às novas realidades sociais, económicas e ambientais podem demonstrar maior resiliência e capacidade de se adaptar a desafios emergentes.

Mesmo em regimes democráticos de pendor socialista ou social-democrata, quando os cidadãos se juntam para trabalhar em parceria, geralmente acham justo que os trabalhadores mais esforçados sejam mais bem remonerados. Os socialistas querem igualdade de rendimentos, mas partindo do princípio que as contribuições são iguais. Quando as pessoas partilham a recompensa em dinheiro, a igualdade é subordinada ao princípio da proporcionalidade. Quando alguns membros de um grupo contribuem muito mais do que outros, já para não falar de poucos que não contribuíram nada, a maioria não quer que os benefícios sejam igualmente distribuídos, porque isso não é justo.

Faz parte da evolução adaptativa a existência de elementos que desafiam as regras colhendo os frutos da cooperação através da boleia. A cooperação dentro das comunidades é vigiada pelo mexerico. O castigo teve de vir depois. A comunidade tem de se proteger dos batoteiros, dos mandriões, sob pena de não sobreviver. Caso lhes fosse permitido manter esses comportamentos sem serem punidos, os outros iriam fazer o mesmo, e deixar de contribuir. O que levaria ao desmoronamento da sociedade. O fundamento da equidade tem de se apoiar na raiva justa, quando alguém engana outro. 
Os desencadeadores atuais do fundamento da equidade variam em função do tamanho do grupo, bem como de outras circunstâncias históricas e económicas. Numa grande sociedade industrial, e com uma rede social de segurança, os desencadeadores atuais são propensos a incluir pessoas que confiaram na rede de segurança, sem que para isso alguma vez tenham sido salvas por ela. 

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