sexta-feira, 22 de maio de 2020

Azar: Ele não joga aos dados



A teoria produz um bom resultado, mas dificilmente nos aproxima do segredo do Criador. Estou, em todos os casos, convencido de que Ele não joga aos dados.
Albert Einstein – dezembro de 1926.

A falta de conhecimento acerca de algo novo, como é o caso desta pandemia covid-19, frequentemente leva à disputa diferentes interpretações. Ainda não nos tínhamos libertado por completo das disputas acerca do aquecimento global, inacreditável como foi necessário tanto esforço para se confirmar o aquecimento global, cai-nos em cima um vírus novo desconhecido provocando uma pandemia como nunca vista e ainda andando aí para durar. Nada disto é raro em medicina. Até os cientistas muitas vezes interpretam erradamente as estatísticas epidemiológicas, bem como o significado de exames importantes.

Entremos então, mais uma vez, pela História. Entre 1571 e 1576, um sujeito que fora um dia celebrado em toda a Europa por ter sido um famoso astrólogo, médico dos nobres da corte, e professor de medicina na Universidade de Pavia, deambulava pelas ruas de Roma, num passo irregular, às vezes gritando para ninguém em particular ignorado por todos. Criara invenções duradouras, entre elas um precursor do cadeado com código, e da junta universal usada nos automóveis. Havia publicado 131 livros sobre uma ampla gama de assuntos em filosofia, medicina, matemática e ciências. Este sujeito acabou os seus dias pelas ruas parques de Roma, com uma renda vitalícia concedida por um Papa que tinha por ele uma grande estima. Era Girolamo Cardano [1501-1576]. 


Girolamo Cardano nasceu em Pavia, em1501. As expectativas de vida, depois de lhe terem aparecido formações nos gânglios linfáticos do tamanho de um ovo, sendo ainda um infante, não iriam além de uma semana. Tinha contraído a Peste Bubónica. Na Itália, o ano de 1501 trouxe um surto de Peste particularmente forte, com uma enorme mortandade. Num lance de sorte, sobreviveu sem maiores sequelas além da desfiguração. O seu pai era uma espécie de empresário, amigo de Leonardo da Vinci por algum tempo, e geómetra. Quando Girolamo fez cinco anos, o seu pai passou a levá-lo com ele para os seus negócios. Amarrava-lhe uma mochila às costas com pesados livros de medicina e direito, e lá iam ter com os clientes em Milão. Ainda adolescente, um de seus amigos morreu subitamente. Isso marcou-o profundamente, a pensar na transitoriedade da vida. Na sua autobiografia – De Propria Vita, Cardano afirma ter adquirido “a ambição inabalável” de deixar a sua marca no mundo. Por isso, quando chegou a idade, e contra a vontade do pai, deixou Milão e foi para Pavia tirar medicina. 

Em algum momento Cardano ter-se-á apercebido do seu talento para os jogos de apostas. Com isso ganharia dinheiro muito mais rapidamente que com qualquer outro meio. Quando apostava no resultado de dois cubinhos, apesar de a sua sorte ser como a de qualquer outra pessoa, ele acabava por ter alguma vantagem nesses jogos, pela intuição apurada que tinha para a matemática das probabilidades. Cardano trazia no sangue a habilidade para o Azar. Era uma questão intuitiva, e não racional. Assim, a sua compreensão matemática, das relações dentro dos possíveis resultados aleatórios de um jogo, transcendia a crença de que, em virtude do destino, seria inútil tentarmos compreender tais relações. 

Entretanto, começou também a ganhar dinheiro escrevendo horóscopos e dando aulas de geometria, alquimia e astronomia. Em toda a parte eram feitas apostas a jogar aos dados, e mesmo às cartas e ao gamão. Também havia quem jogasse xadrez. Cardano classificava esses jogos em dois tipos: os que envolviam alguma estratégia ou habilidade; e os que eram governados pelo puro acaso. Em jogos como o xadrez, Cardano era banal. Mas no jogo aos dados, em pouco tempo, conseguiu mais de mil coroas nas apostas – mais do que ganharia em uma década se tivesse ficado com o pai – o que lhe deu para pagar os estudos. Assim, em 1520, matriculou-se como estudante de medicina em Pavia. Pouco depois, começa a escrever um livro de jogos de azar. 

Depois de se formar, estamos em 1526, voltou para Milão em busca de trabalho. Durante a faculdade, havia escrito um artigo intitulado: “Das opiniões divergentes dos médicos”. No essencial dizia que a elite médica da época não passava de um bando de charlatães. O Colégio dos Médicos de Milão devolveu-lhe então o favor, recusando-se a aceitá-lo como membro. Isso significava que ele não poderia praticar medicina em Milão. Dispondo ainda de algum dinheiro, que havia amealhado em Pavia, compra uma pequena casa em Piove di Sacco – hoje cidade da região de Veneto e província de Pádua, na altura uma pequena aldeia – onde esperava ganhar dinheiro, pois o povoado estava tomado por doenças e não havia nenhum médico no lugar. Mas as contas saíram-lhe furadas, porque a população preferia tratar-se com curandeiros e padres. Com tempo de sobra, termina o tal livro – Liber de Ludo Aleae (Livro dos Jogos de Azar) – que só viria a ser publicado após muitos anos da sua morte, em 1663. Mas nessa altura ele ainda era um otimista, e ter tempo para escrever livros só podia ser um caso de sorte. 

O livro de jogos de azar de Cardano, tratava de cartas, dados, gamão e astrágalo (um osso do pé). Não é perfeito, mas reflete a personalidade do autor, suas ideias desvairadas, seu temperamento instável, a paixão com que enfrentava cada empreendimento – e a turbulência da sua vida e sua época. O livro considera apenas os processos – como o lançamento de um dado ou a escolha de uma carta – nos quais um resultado é tão provável quanto outro, equivocando-se em alguns pontos. Ainda assim, a obra representa o primeiro êxito na tentativa humana de compreender a natureza da incerteza. E o método de Cardano para enfrentar as questões ligadas ao acaso é surpreendente, tanto por sua eficácia como por sua simplicidade. 

Então, depois de cinco anos em Piove di Sacco, Cardano volta a Milão em 1532, na esperança de publicar o livro e tentar de novo inscrever-se no Colégio dos Médicos. Redondamente enganado de novo, tendo sido rejeitado nas duas frentes. “Naqueles dias”, escreveu ele na autobiografia: “eu carregava um desgosto tão profundo que procurei magos e adivinhos em busca de alguma solução para tantos problemas” Um dos magos sugeriu que ele se protegesse dos raios lunares. Outro o instruiu a espirrar três vezes e bater na madeira quando acordasse. Cardano seguiu todas as prescrições, mas nenhuma delas modificou a sua vida. Assim, coberto por uma capa, passou a percorrer sorrateiramente à noite as casas, tratando pacientes que não tinham como pagar os honorários dos médicos sancionados, ou que não melhoravam com os seus cuidados. Para complementar o que ganhava com esse trabalho, foi forçado a apostar novamente nos dados para poder sustentar a família. E com isso conseguia comprar comida e viver, embora numa habitação deplorável. 

Os seus rendimentos só começaram a crescer quando publicou um livro baseado no velho artigo da faculdade, alterando, no entanto, o título para: “Da má prática médica no uso comum”. O livro foi um sucesso. Quando um dia, a saúde de um de seus pacientes secretos, um famoso prior da Ordem dos Monges Agostinhos, subitamente (e provavelmente por mero acaso) melhorou,  atribuída a sua recuperação ao tratamento ministrado por Cardano, a sua fama chegou a alturas tais que o Colégio dos Médicos se viu impelido não apenas a admiti-lo como membro, mas também a elegê-lo reitor. Enquanto isso, ele continuou a publicar livros que foram bem recebidos. 


O discernimento de Cardano sobre o funcionamento do acaso, haveria de formar a base da descrição matemática da incerteza pelos séculos que se seguiriam. Com esse método simples, passou a lidar-se com mais sistematicidade problemas que, de outra forma, pareceriam irresolúveis. O trabalho de Cardano também transcendia o estado primitivo da matemática de seu tempo, pois a álgebra, e até mesmo a aritmética, ainda estavam a dar os primeiros passos no começo do século XVI – nem mesmo o 'sinal de igual' havia sido inventado. Descartes [1596-1650] ainda estava para nascer.  Isto é para que tenhamos uma ideia dos desafios com que Cardano se deparou. O 'sinal de igual' foi inventado em 1557 por Robert Recorde, um académico de Oxford e Cambridge, que, inspirado pela geometria, observou que não poderia haver duas coisas mais semelhantes que duas rectas paralelas, e assim decidiu que tais linhas deveriam denotar a igualdade. E o símbolo × para a multiplicação, atribuído a um pastor anglicano, apareceu no século XVII. 

Por volta dos seus 50 anos de idade, na década de 1550, Cardano estava no auge - era diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Pavia, e tinha muito dinheiro. Sua boa sorte, porém, não durou muito. Em grande medida, a queda de Cardano se deu pelo lado da sua vida menos previsível: a família. Mas, antes de abordar este lado, ainda um caso profissional, que se vem juntar aos outros. 

Niccolò Tartaglia [1500-1557] – pseudónimo de Niccolò Fontana, um matemático italiano, que deu o nome ao triângulo de Tartaglia – conhecia a regra para resolver equações do 3ºgrau. E Cardano soube disso. Então Tartaglia pediu-lhe para guardar segredo, e não o divulgar. E Cardano prometeu sob jura. Mas Cardano, quando soube que o bolonhês Scipione del Ferro já havia descoberto a fórmula primeiro, considerou-se desligado do juramento, e divulgou a descoberta no livro: Grande Arte ou as Regras Algébricas. Ora, com este acontecimento ganhou em Tartaglia um inimigo mortal, cujos escritos muito contribuíram para espalhar a lenda de um Cardano desonesto e corrompido.

A filha Chiara, que recebeu o nome da avó, aos 16 anos havia seduzido o irmão mais velho, Giovanni, do qual ficou grávida. Ela conseguiu fazer o aborto, mas ficou infértil. Isso até lhe caiu bastante bem, pois a moça era ousadamente promíscua e, mesmo depois de casada, contraiu sífilis. Mas o pior ainda estava para vir. 

Giovanni acabou por se formar em medicina. Mas logo ficou mais famoso como um criminoso barato, tão famoso que foi chantageado a se casar com a filha de uma família de trabalhadores das minas de ouro, que tinham provas de que ele havia assassinado, por envenenamento, uma autoridade da cidade. Alguns anos depois de se casar, Giovanni deu a um de seus colaboradores uma poção misteriosa para ser misturada à receita de um bolo para a mulher de Giovanni. Quando ela estrebuchou, depois de comer a sobremesa, as autoridades da cidade juntaram 2+2. Apesar da grande fortuna que Cardano gastou em advogados, para mexer os cordelinhos junto das autoridades, e do seu testemunho em defesa do filho, o jovem Giovanni foi executado na prisão, pouco tempo depois. 


Um golpe final, que o levou à prisão, veio de Aldo, o seu filho mais novo, quando o traiu fornecendo provas contra o próprio pai em troca de uma posição privilegiada, como torturador e carrasco da Inquisição, na cidade de Bolonha. Aldo, quando criança gostava de torturar animais. Essa paixão foi facilmente canalizada para torturador freelancer da Inquisição. Denunciou o pai, falsamente, de ter tirado o horóscopo de Jesus Cristo. Libertado pouco depois com a condição de parar com as suas conferências, o senado de Milão eliminou o seu nome da lista dos que tinham permissão para ensinar. Isto obrigou-o a remeter-se ao exílio. Quando Cardano deixou Milão, em finais de 1563, como escreveu em sua autobiografia, estava reduzido mais uma vez a farrapos. 

Antes de morrer, Girolamo Cardano queimou 170 manuscritos não publicados. As pessoas que vasculharam o espólio encontraram ainda 111 textos sobreviventes. Um deles era um tratado em 32 capítulos curtos: “O Livro dos Jogos de Azar”, o primeiro na história a tratar de uma coisa com que as pessoas estavam habituadas a lidar há milhares de anos: a Incerteza. Como já referido, o livro só foi visto à luz do dia em 1663, quando Descartes já cá não estava há mais de dez anos.


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