sexta-feira, 15 de maio de 2020

Emigrar para não passar de cavalo para burro


Isto é acerca da emigração portuguesa qualificada. Como é normal acontecer, as opiniões dividiram-se: uma metade achou que foi mau para o país os responsáveis políticos não terem feito nada para evitar a emigração dos seus melhores cérebros; a outra metade achou que foi bom, porque, para além de termos os nossos filhos e filhas com mais mundo na sua experiência de vida, um dia voltarão mais aptos para dar a volta a este país.

Dos jovens qualificados que emigraram entre 2000 e 2015, em todos eles se encontra um padrão comum: todos eles foram impulsionados por uma resistência e inconformismo à situação de sentirem perder o seu valor adquirido à custa do investimento da geração anterior na sua formação. Este sentimento foi despertado pelos baixos salários praticados em Portugal; e pela miopia das elites empregadoras em relação aos seus méritos. Confrontados com a possibilidade de passarem de cavalo para burro, em relação ao estatuto económico e social que havia sido conquistado pelos seus pais, alguns deles pertencendo a famílias burguesas desafogadas, ou a linhagens camponesas tradicionais, escolheram dar o salto migratório. Mais do que serem resilientes e ficar por cá conformados com o destino, preferiram correr mais riscos para melhorar o seu futuro, e pularam. Mais amargurados, é certo, mas também mais livres para escolher o seu destino buscando melhores oportunidades. Não aceitaram resignar-se à condição de desempregados ou de trabalhadores sem mérito e mal pagos.

Ora aqui está mais uma aplicação da metáfora do limoeiro. Eu não encontro melhor metáfora para isto do que a metáfora do limoeiro. O êxodo de competências e mobilidade académica de Portugal para a Europa é uma autoflagelação. Façamos de conta que Portugal é um limoeiro. E que, a certa altura, fez da drenagem para a Europa dos seus melhores limões, a sua autoflagelação. Passado uns anos eles voltam. A autoflagelação valeu a pena, porque então Portugal voltará a dar mais e bons limões.

Um desses jovens é o caso deste rapaz, hoje com quarenta, tendo entrado na Universidade do Minho, em 1997, para fazer a licenciatura em Química Aplicada, no ramo de materiais plásticos, foi para Madrid para prosseguir uma carreira de investigação, onde obteve um doutoramento. Entretanto, ao acionar as redes de mobilidade internacional, arranjou um pós-doc. em Paris, sem, contudo, ter passado por alguns contratempos na esfera da sua vida afetiva. Depois voltaremos a ele.

Agora outro caso, o de uma rapariga, hoje com 36, licenciada em medicina veterinária pela Universidade Técnica de Lisboa, em 2007. Foi para Berlim, com uma bolsa da FCT, depois de um estágio de dois meses nos Estados Unidos, onde conhece o professor que será o seu orientador do doutoramento em Virologia na Freie Universität, Berlim, que conclui em 2013.

Embora não compare a sua emigração com a emigração de necessidade das gerações anteriores – os pais também viveram a experiência da emigração –, ela teve todo o apoio dos pais num processo que poderia ser olhado como um impulso de aventura.

Durante a estada em Berlim, inicia uma relação amorosa com um Engenheiro dos Materiais, a finalizar o seu doutoramento. Entretanto o namorado consegue um contrato de pós-doutoramento, e vai para a Finlândia. Assim, ela passou a viajar com frequência para Helsínquia a partir de Berlim. Apesar de ter voltado a Lisboa, manteve o apartamento em Berlim por ser um local estratégico para as viagens frequentes que passa a fazer à Finlândia para estar com o namorado. Os voos são muito mais fáceis a partir de Berlim do que de Lisboa.

O multiculturalismo é certamente um enriquecimento para quem o vive, mas cria também dificuldades de identidade em relação às pessoas e aos locais. Em Portugal não existem muitas oportunidades de trabalho interessantes para doutorados em Engenharia dos Materiais; e em Virologia também não. Assim, qualquer lugar algures entre o Norte e o Sul da Europa, é sempre visto como uma oportunidade. A singularidade desta experiência permite-lhe dizer que nunca teve relações tão próximas em Lisboa como teve em Berlim. O cosmopolitismo de Berlim parece abrir as relações a espaços físicos e sociais bastante mais abertos e alargados. E isso agrada-lhe bastante. Estas vidas globalizadas conduzem a uma situação comum a outros casais mistos (de países diferentes) que se conheceram na emigração. Muitos casais veem-se uma vez por mês quando tudo corre bem. Vivem em plena mobilidade afetiva transnacional.

Voltando ao primeiro caso. Este jovem foi muito marcado pelo divórcio dos pais. Cedo aprendeu as vantagens, mas também as exigências, da emancipação. Trabalhando e estudando em simultâneo, também experimentou precocemente a conjugalidade informal. Os pais também se conheceram em Paris, para onde haviam emigrado no tempo da ditadura. O pai a salto, a mãe de comboio. Voltaram para Portugal a seguir à Revolução de 25 de abril de 1974.

A relação com a namorada com quem se mudou para Madrid, não sobreviveu à distância entre Madrid e Paris. Tinha-lhe surgido a oportunidade de um pós-doc. em Paris, e ele não pensou duas vezes, foi para a Universidade Pierre e Marie Curie, e deixou a namorada em Madrid. Seis meses depois da sua chegada a Paris, terminou um namoro que durava há onze anos. Mas pouco depois, na mesma instituição onde foi tirar o pós-doc. conheceu outra investigadora de origem iraniana, por quem se apaixonou. Ela em rutura ideológica com o cenário cultural e político do seu país, também se apaixonou, não tencionando regressar ao seu país. Tiveram um filho, mas não quiseram o casamento formal. E os pais dele apoiaram. Ele não tivera uma educação religiosa.

As experiências de trabalho, decorrentes do processo migratório, são perspetivadas de um modo diferente, porque os investigadores têm em regra um contrato de trabalho, e sentem-se inseridos nas redes de mobilidade enquanto fazem o doutoramento ou o pós-doc. Ao reconhecer-se a mobilidade como uma característica intrínseca ao trabalho de investigação, independentemente de ser em Portugal ou noutro país com ou sem crise, então as condições de trabalho e de vida têm de se adaptar a esta realidade. A dissociação entre percursos académicos bem-sucedidos e altamente qualificados, e o mercado de trabalho português incapaz de absorver estes recursos, torna inevitável a procura de realização profissional a um nível internacional. Este foi o paradigma da globalização que vigorou até aqui. A partir de agora, desta nova crise global por causa do SARS-CoV-2, não sabemos se esse paradigma vai sofrer fortes alterações, ou não. O que sabemos é que estão em progressão eventos uns atrás dos outros cujos impactos são cada vez mais severos. Sabemos que o mundo não se complicou só agora. Basta consultar a História e ver como o mundo se acelerou com a Revolução Industrial. A verdade é que são acontecimentos de baixa previsibilidade e grande impacto. Mas o que ainda mais surpreendente é que o comportamento de todos, incluindo a comunidade científica, tende a agir como se tal não estivesse a acontecer. Esse problema que era endémico nas Ciências Sociais, também se estendeu às Ciências da Natureza.


Nota: O autor escreve respigando ora a antiga ortografia, ora o novo acordo ortográfico, conforme vai achando, por critérios muito pessoais da ordem mais conveniente.

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