quinta-feira, 21 de maio de 2020

Uma lição



As pessoas à beira da morte querem partilhar recordações, transmitir conhecimentos e recomendações, para que os seus que ainda vão ficar por cá sejam felizes. Fora isso, quando o fim de uma pessoa está próximo, é muitas vezes o médico de um hospital, e mais frequente do que se pensa, no Serviço de Urgência, que tem de tomar a decisão que devia caber ao moribundo.

Tenho um caso clínico em memória. No Serviço de Urgência, entra um doente numa maca muito cianosado trazido pelos bombeiros e acompanhado pela esposa de provecta idade. Depois de estimulado, não responde, está inconsciente. A enfermeira mede-lhe as tensões. Está hipotenso, e coloca-lhe um soro numa veia, e oxigénio por sonda nasal. Ela colhe sangue venoso para análises e eu pico a artéria para determinação dos gases de sangue. Um RX ao tórax mostrou imagem compatível com pneumonia no pulmão direito. 

Não tardaram duas filhas a aparecer. O nível das tensões e do oxigénio não estavam a ser compatíveis com a sobrevivência. E então, é quando uma das filhas, como quem não quer a coisa, diz: “doutor, e os Cuidados Intensivos?” Numa família, é raro haver unanimidade quanto ao "o que fazer" numa situação destas. P
ergunto à esposa qual teria sido a sua vontade? Como queria que fosse o final da sua história? 
Entretanto tinha ao telefone outro filho, que por acaso também é médico, e quer ponderar comigo a melhor decisão. Chegámos a um acordo: Nada de Cuidados Intensivos, nem de manobras de ressuscitação. Quando voltei ao doente, que ainda estava deitado na maca, tinha acordado após a enfermeira o ter algaliado e jorrado para o saco coletor mais de um litro de urina. «Ele acordou!», disse a esposa, exultante. Ele reconhecera-a, e estava tão lúcido que até perguntara qual era a sua tensão arterial.

Foi internado na enfermaria de Medicina Interna, onde viria a morrer passado quatro dias. Mas ainda deu para saber que os Cuidados Intensivos estavam longe do que ele desejava. Ele pediu à equipa para não o "entubar", para ter a oportunidade de uma morte serena, que, em todo o caso, preferia que fosse em casa. Para ele seria uma benção. Mas para aquela filha que havia perguntado pelos Cuidados Intensivos no início, o fim não estava assim tão claro. O que mais a assustava era os médicos poderem estar enganados, e não preservarem a vida dele o tempo a que ainda tinha direito. «Não quero sofrer», disse-me ele quando me apanhou a sós. Aconteça o que acontecer, prometa-me que não me deixa sofrer. Prometo, respondi.

Quando cheguei ao hospital na manhã seguinte, perguntei como tinha passado a noite: «Não passei muito bem». Toda a enfermaria tinha ficado acordada por causa do doente ao lado, que já estava sentado numa cadeira ao lado da cama, a batalhar contra o tubo. Segundo a enfermeira, o meu doente não evacuara, embora tenha saído do quarto várias vezes para ir à sanita. Como na manhã seguinte ele ainda não havia obrado, eu disse que se sentasse na sanita e esperasse que acontecesse alguma coisa. Foi lá três vezes, e na última, depois de vinte minutos, saiu a anunciar que tinha funcionado.

Os planos de família para celebrar o seu aniversário no dia seguinte (3º dia de internamento) tiveram de ser cancelados. Na realidade, ao longo do verão ele não tinha gozado as férias que sempre gostara de passar com a família no campo, porque, entretanto, a sua saúde tinha-se deteriorado. Mesmo com a nova bengala era muito perigoso andar por lá sozinho, como ele gostava de fazer. Ele insistia em dizer que o que estava a acontecer era devido a um resfriado mal curado. Mas, na verdade, os sintomas já se arrastavam há uns tempos. «Estou com catarro por causa do resfriado» – dizia ele repetidamente. No entanto, ele próprio transparecia compreender que o que estava a acontecer era algo muito mais sério.

No quarto dia, cedinho pela manhã, quando cheguei à enfermaria a enfermeira informou-me que o doente acabava de ser levado, por um interno de SU nessa noite, a caminho da UCI. O médico tinha sido chamado de emergência porque o doente havia entrado em paragem cardiorrespiratória. Quando lá cheguei, mal tinham acabado de entrar na Unidade. Equipei-me à pressa e entrei na Unidade. E então encontrei os médicos a discutir, pois continuava em paragem cardiorrespiratória. Eu disse: «É preferível não ressuscitar». E o médico sénior da Unidade disse: «Eu também acho». O interno ainda disse: «Sem isso não haveria a menor esperança» Mas depois acrescentou - «Embora, desnecessário dizer, a máquina não iria reverter o progresso da doença, que começara a atacar a sua função cardíaca e renal». 

O médico sénior da UCI informou: « Foi por pouco! Por lei, uma vez o doente acoplado ao ventilador não seria possível desconectá-lo. A menos que, das duas uma: ou voltasse a respirar por conta própria; ou morresse. Morrer dá trabalho, mas nós aqui somos trabalhadores do viver, não do morrer ». E virou-se para o interno, concluindo: «Você nunca mais deve esquecer isto».

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