sexta-feira, 1 de maio de 2020

Falsas dívidas, falsas memórias



Aquilo que conto é a história dos dois próximos séculos. Descrevo o que vem, o que não pode deixar de vir: o advento do niilismo. (Nietzsche, Willie zur Macht)
Há um provérbio hassídico que diz mais ou menos isto: "se queres conhecer o fogo, então tens de o procurar nas cinzas". Como todas as forças, o fogo só é acessível pelos seus efeitos. Será em vão querermos conhecê-lo cara a cara. Como é que a dívida com a actual emergência sanitária, característica das condições do capitalismo global, se articula com a relação credor/devedor, enquanto constante antropológica universal, nos termos em que a formulou Nietzsche?

Nietzsche em "A Genealogia da Moral" sustentou que aquilo que caracteriza as sociedades à medida que se vão afastando das suas origens primitivas é a capacidade de produzirem um ser humano capaz de prometer a outros seres humanos o pagamento do que deve, reconhecendo a sua dívida para com o Outro: "Lembro-me de que estou em dívida para contigo, e por isso comportar-me-ei de maneira a poder pagar o que te devo".
Perdi rapidamente o hábito de ter horários regulares - assim falará um futuro Zaratustra  com falsas memórias do passado, anos mais tarde. Não se viam vestígios de vida vegetal ou animal nas ruas. Apenas lata sucateada parada. Bancos de areia, pântanos e lagos de dimensões variáveis estendiam-se a perder de vista. A neblina não permitia a maior parte das vezes ver o céu. O Universo estava encerrado numa espécie de casulo. Mas por mais bizarro que pareça, eu não tinha acesso ao tédio, porque a minha consciência era ocupada por fantasias flutuantes anódinas. Existir era só por si uma benção. Uma pura ausência de vazio. Durante semanas a fio aventuravamo-nos a esticar o espaço e a encurtar o tempo. Uma espécie de fenómeno de maré, porventura a desafiar a segunda lei da termodinâmica por causa da extinção do carbono.
Nos grupos sociais mais primitivos, as dívidas do indivíduo perante os outros eram limitadas e podiam ser objeto de anulação. A dívida do indivíduo à divindade, ou à sociedade, era realmente impagável. Ao passo que, com o advento dos impérios e dos monoteísmos, a única maneira possível de pagar a dívida passou a ser a obediência.
Os organismos selvagens dificilmente aguentariam a inanidade deste mundo anómalo. Certa manhã, logo depois de acordar, senti-me menos oprimido, a respirar um ar menos puro. Após alguns minutos de esforço para abrir os olhos deparei-me com Jesus Cristo vestido de astronauta, muito maior do que os outros. Tive que esperar por outros elementos para compreender que estava numa UCI. E assim, também pude perceber melhor como pudera a ideia de infinito germinar no meu cérebro. Só nessa altura compreendi perfeitamente a alegoria da caverna de Platão. E entendi então por que razão o gnomo insistira na narrativa da vida depois da morte. Não podia libertar-me das correias que me prendiam à mesa de operações.
O sujeito endividado está constantemente exposto à avaliação e inspecção do Grande Outro, na avaliação do crédito que lhe é concedido. Por isso é obrigado a não só demonstrar a sua capacidade de pagamento da dívida, como também a capacidade de se comportar adequadamente, assumindo-se culpado dos seus devaneios. Assim, os países, ou as instituições, sejam quais forem os cortes, sentem-se cerceados na sua capacidade de acção autónoma, sob os holofotes das "credit rating agencies". O actual sistema capitalista global desenvolve até ao limite a relação credor/devedor, por forma a conceder o crédito com o pressuposto de que não vai ser pago. A dívida é um instrumento destinado a controlar e regular o comportamento do devedor. E é assim que este capitalismo se mina a si próprio, à custa de mais controlo e dominação. Mas até agora a "esquerda", sector da acção política ao qual competia conceber as estratégias eficazes por forma a romper este círculo infernal da dívida e da culpa, não faz nada porque há pelo menos três décadas que está moribunda, desde a queda do Muro de Berlim.

O capitalista faz o papel do Senhor, o verdadeiro poderoso que se pode dar ao luxo de conceder misericórdia. É uma espécie de procuração invertida, uma representação junto do ser humano mortal que se auto-sacrifica. O Senhor responde com o gesto sublime da Graça. Mas o capitalista gesticula por necessidade, não por virtude, porque o faz ilegitimamente por Ele, na medida em que exibe como livre um acto que se vê que não é livre. É por obrigação que o seu gesto é de Graça, porque se recusasse a clemência corria o risco de a súplica respeitosa do sujeito se transformar em revolta declarada. Por conseguinte, o actual sujeito, o sujeito em acto, só pode afirmar a sua autonomia radical enquanto puder contar com o apoio do "Grande Outro". Não devemos esquecer que a ideia de Misericórdia é estritamente correlativa da de Soberania. Só o detentor da soberania pode dispensar misericórdia.
Mais tarde caminhei, regulando o passo pelo movimento das vagas. Caminhei dias inteiros pelas avenidas novas sem encontrar nenhum restaurante, nenhum banco, nenhuma oficina. Parecia embalado por uma leve ressaca de álcool a setenta por cento. Ao terceiro dia ressuscitei, avistando ao longe cavalos de pedra negra levados pelo vento norte. Não se percebia se eram construções como as da ilha da Páscoa. Abandonei rapidamente a ideia de as alcançar. 
Peter Sloterdijk concebe em Zorn und Zeit (Cólera e Tempo) a perspectiva de uma ruptura do capitalismo consigo mesmo no seu processo de auto-superação imanente: o capitalismo acede ao seu ponto culminante  quando "cria a partir de si próprio o seu mais radical contrário, completamente diferente de tudo aquilo que a "esquerda" clássica, fechada no seu miserabilismo, foi capaz de sonhar. Bill Gates, quando doa  ao bem público a sua riqueza acumulada, está precisamente a exemplificar essa auto-negação. Auto-nega-se enquanto mera personificação do capital e da sua circulação reprodutiva. E assim permite ao sistema capitalista adiar a sua morte. E ao mesmo tempo, não cair na lógica destrutiva do ressentimento e da redistribuição coerciva da riqueza operada pelo Estado, que só poderia conduzir à miséria generalizada. É por isso que tem de se sustentar constantemente na misericórdia. Aliás, era assim que Estaline se sustentava. Quando os membros mais jovens do Comité Central exigiam a condenação à morte imediata deste ou daquele, Estaline era o grande mestre da matreirice, e por isso via nitidamente que eles exibiam assim o seu fervor revolucionário meramente com o fito de lhe agradarem. Estaline sabia perfeitamente que fora ele próprio a alimentar o fervor exterminador desses membros mais jovens. Por isso ele dizia: "Paciência! A culpa dele ainda não está provada". A aparência da Misericórdia continuava a ser mantida. Por estranho que possa parecer, é precisamente da mesma maneira que o Capitalismo se vale.
No mesmo instante, sem que nada o fizesse prever, duas massas nebulosas distanciaram-se uma da outra e um raio de sol brilhou à superfície da água. Talvez ainda me restassem três anos de vida, pensava eu, para atingir um número redondo:70. Esperando evitar o sofrimento, num espaço tranquilo, de dimensão humana. O meu corpo ainda me pertenceria por um breve lapso de tempo.
Numa cena mítica da hagiografia soviética, Estaline, de passeio pelo campo, ao deparar com um trabalhador cujo tractor havia sofrido uma avaria, resolve assisti-lo dispensando-lhe sábios conselhos. Era este estado de normalidade económica, caótico como se sabe, que sustentava uma Potência e um Senhor, resultante do Socialismo de Estado. A atitude de Estaline, metafórica é claro, faz parte das imensas histórias grotescas que entretinham os serões dos resilientes russos à força de vodka. O Senhor precisava de se mostrar hipocritamente misericordioso, porque a Lei tinha falhado. Porque os mecanismos legais do Estado tinham-se revelado incapazes de funcionar por sua própria conta.

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