terça-feira, 5 de maio de 2020

A vida boa, e tudo por que estamos a passar


Tudo por que estamos a passar, Vitorino 
É porque temos medo de morrer 
Porque se não tivéssemos medo de morrer, 
Oh, andaríamos por aí embriagados 
A derrubar todas as cruzes no caminho 
Sem destino 

Há uma constatação, no decurso desta pandemia, que são as pessoas mais novas que adoptam um comportamento mais exemplar na assumpção das medidas de distanciamento social, do que as pessoas mais velhas. E os psicólogos têm nos vindo a informar que na realidade assim é, e tem uma explicação: em primeiro lugar, é normal, estatisticamente falando, porque há sempre excepções, que as pessoas na faixa etária entre os 30 e 50 anos tenham mais a perder se morrerem agora, do que os mais velhos; em segundo lugar, porque os mais velhos, por já terem passado por situações de crise parecidas, embora não necessariamente semelhantes, e como nestas coisas é a experiência própria que confere mais sabedoria do que o conhecimento teórico por via de informação alheia, acabam por ter uma maior capacidade para relativizar.

Seja como for, a nossa condição mortal não constitui apenas o fundamento da nossa moralidade. Por estranho que possa parecer, a consciência da nossa mortalidade é também a causa da nossa imoralidade. Ao sentirmos o pânico urgente da morte que ameaça, somos tentados, pelo desespero, a abusar em prol do benefício próprio. Por isso, atropelamo-nos uns aos outros na expectativa de um vislumbre de uma escapatória que adie a nossa extinção certa, ainda que seja uma quimera provisória. Todos morremos, não existe remédio, mas cada qual vive sozinho a sua própria morte. Sim, porque a morte só é um problema enquanto estamos vivos.  

Epicteto ensinava aos seus discípulos uma lição semelhante: "Recordas-te que o princípio de todos os males do homem, da baixeza, da cobardia, não é a morte, mas sim o temor da morte?" A certeza da morte e a sua iminência ofusca o nosso amor pela vida e, consequentemente, acaba por corromper a possível solidariedade com aqueles que connosco a partilham. Torna-se-nos evidente que as restrições morais foram concebidas pela evolução da espécie, para que seja ela perdurar, não cada um a título individual. Nem tão pouco cada gene. É por isso que a teoria do "Gene Egoísta" de Richard Dawkins não pode estar certa. Apesar de o medo prejudicar o sentido de solidariedade, a compaixão e a prudência esclarecida, é da nossa natureza preocuparmo-nos com os outros. No fim e contas, é do nosso verdadeiro interesse o sacrifício pela harmonia de uma colectividade. Não compensa desprezarmos as restrições e as considerações morais para nos entregarmos ao salve-se quem puder, porque o pavor será muito maior.

As religiões monoteístas, particularmente as que se identificam a expressão "do Livro", constituíram um progresso em relação às religiões politeístas, as dos desbragados deuses olímpicos, os residentes no Monte Olimpo. O Cristianismo veio anunciar que no fim dos tempos viria o Juízo Final. No fundo, acreditar no Deus do Céu, e no Juízo Final, no mundo do Além, com o seu Inferno, implicava deixar de acreditar realmente na morte. Pasme-se, deixar de acreditar na única certeza que nós verdadeiramente podemos ter. Tinha de ser, de facto, um golpe de génio, para ao mesmo tempo que deixávamos de temer a morte, não caíamos na imoralidade desses deuses do Olimpo. E não cairíamos naquilo que também Dostoivski imortalizou com a frase: "se Deus não existe, tudo é permitido". Ao declarar que a morte é uma passagem, a Boa Nova veio resolver com mais eficácia o problema do fim do mundo, numa escatologia mais empolgante, porque afinal o desejável, a autêntica existência, viria depois. Conseguir superar o temor da morte à custa de sacrificar o amor primordial pela vida, foi obra! Tivemos que pagar um preço exorbitante para conservarmos o respeito de uns pelos outros, ou seja, o cumprimento dos preceitos morais. 

Se o medo da morte, como acreditam os dogmáticos, esteve sempre na origem de atropelos imorais, então como é que a intenção de corrigi-los com uma crença dogmática no Além, pode evitar desembocar de novo noutro terror? Porque, em nome da purificação necessária, para nos tornarmos sobrenaturais, e assim alcançar Deus, vamos assim aniquilar a vida na Terra por se ter tornado insignificante. Mas a vida pode ser boa se compreendermos e respeitarmos o que a vida e a morte significam para nós. A eternidade nada acrescenta à vida enquanto tal.

É em nome de exigências de dogmas sobrenaturais, e numa crença no Além, que a religião legitima a moral com os seus castigos e prémios. E não no que é certo e errado à luz da nossa melhor consciência e inteligência. Ora, isso parece ser um argumento pouco sólido para nos convencer que devemos não fazer aos outros o que não desejamos que nos façam a nós. E ajudar os outros como gostaríamos que nos ajudassem quando tivéssemos necessidade. Parece uma espécie de sadismo provocando o terror, ao propor aos humanos que aceitem aquelas restrições morais, porque senão serão submetidos a castigos infernais mais tarde, no Além.

Segundo tal perspectiva, os preceitos morais são válidos somente como provas da nossa submissão ao Absoluto, mas não como emanações racionais do que pode ser para nós, social e individualmente, mais conveniente. Têm muito que ver com a obediência e bastante com o medo, mas nada, absolutamente nada, com a compreensão do que realmente necessitamos e queremos. A vida boa, eticamente falando, expressa uma autonomia destemida que é o mais oposto da vida eterna.

Mas tu acreditas, não é verdade? - ripostou Vitorino. Tens fé...
Claro que tenho fé. Não faltava mais nada - continuou Josefina.
Certamente que o Inferno existe, labaredas, tormentos!
E o Céu também...,
implorou Vitorino com ansiedade, enquanto retirava o chouriço de dentro do pote que estava ao lume, já só brasas.
Ah, sim... talvez ...

Recorro novamente a Espinosa: fazemos muita coisa motivados por paixões, e muito bem, se é por aí que é conveniente à nossa condição; mas também o podemos fazer, se quisermos, orientados por razões. Ou seja, sem o medo e a ansiedade que a morte nos impõe, dado que sabemos que não há nada a fazer quanto à nossa mortalidade, podemos ter uma vida boa comportando-nos eticamente com os que fazem parte do nosso Ser, que naturalmente faz parte da nossa razão de ser. Já não vou tão longe, ousarmos ser como Sócrates, ou como pelo menos três séculos mais tarde Jesus Cristo, que aconselhava os jovens a preferir sofrer um acto indevido, se tal fosse necessário, em lugar de o cometer. Neste caso, seria como fazermos de conta que somos imortais, apesar de sabermos muito bem que não somos. 

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