quinta-feira, 7 de maio de 2020

A cientização da incerteza




Subscrevo o que Daniel Oliveira escreve hoje na sua coluna de opinião do Expresso. E João Lobo Antunes - a quem tenho recorrido amiúde para dissolver este tipo de questões da profissão médica - também concordaria: "não sei o que nos espera, mas sei o que me preocupa: o apagamento da face humana e da empatia no alívio do sofrimento, que é único em cada pessoa que sofre, por uma medicina empolgada pela ciência e seduzida pela tecnologia".

Há dias, um comentador a fazer o ponto da situação da pandemia da Covid-19, dizia que à medida que os cientistas iam descobrindo mais coisas sobre a doença, e não são assim tão poucos como isso, menos se sabia. A infecção por este coronavírus tem demonstrado exaustivamente a fragilidade epistémica da informação de que dispomos para lidar com a incerteza. Consequência inesperada de muito conhecimento e não de pouco.

Há cerca de duas ou três décadas entrou em cena um novo método de conhecimento conhecido por Medicina Baseada na Evidência. Este método só passou a ser possível desenvolver-se mercê da revolução computacional que veio permitir aceder a bases de dados gigantescas. E o progresso nunca mais parou com o surgimento da internet e da inteligência artificial. Por outro lado, os médicos passaram a ter uma relação conflituosa com os doentes, e familiares de doentes, por estes se terem convencido que agora podiam saber tudo pesquisando na internet. As pessoas não estavam preparadas para compreender que informação não é conhecimento, e conhecimento não é sabedoria. Acresce a tudo isto a perversa cientização da medicina, que atrofiou, em certa medida, o seu carácter prudencial.

E a lástima está no facto de este estado de coisas ter alterado profundamente o que melhor havia na relação médico-doente: proximidade e confiança. A soberba convicção, de que a nova ciência médica era capaz de aliviar todo o sofrimento humano, veio destruir o que restava da humanização na medicina, em que "todo o homem é parte de um todo". Assim, o doente sentindo-se como uma ilha desprotegida passou a recorrer mais às mezinhas alternativas, por sentir que aqui, pelo menos, havia mais humanidade e compreensão. Pelas suas próprias características a tecnologia é redutora, simplificadora, impaciente, intolerante da ambiguidade, enfim, uma fonte imensurável de iatrogenia. Por um lado, os médicos, por falta de tempo, foram perdendo paciência para ouvir. E as pessoas em geral perderam narrativa, passando a ter mais dificuldade para exprimir as suas queixas.

Perceber, entender, compreender – podem ter afinidades de família semântica, mas são diferentes em certos sentidos, sobretudo no campo filosófico. Enquanto para perceber certas coisas, basta “pensar” através de imagens e coisas concretas; para entender precisamos de mais intelecto, para podermos pensar em abstracto através de conceitos.

Descartes dá um bom exemplo: posso conceber pelo entendimento, um polígono de mil lados, mas não posso ter dele nenhuma imagem precisa. A geometria moderna nos fornece outro exemplo: vivemos um universo de três dimensões, mas não podemos ter a imagem de um objeto situado num universo com mais de três dimensões. Mas o entendimento precisa, de certa maneira, da vontade. A primeira fonte do nosso conhecimento é a percepção através dos sentidos. Já o entendimento é a segunda fonte de conhecimento, necessário para podermos julgar. Kant, colocou o entendimento entre a sensibilidade e a razão.

Na lógica clássica, a compreensão de um conceito é o conjunto dos caracteres que permitem a sua definição. Ex.: homem - animal racional. A compreensão de um conceito varia na razão inversa da sua extensão. Quanto mais numerosos forem os caracteres da definição, mais reduzida será a classe dos fenómenos. Para Husserl, com a fenomenologia, a compreensão passa a ser definida como um mundo de conhecimento predominantemente interpretativo, por oposição ao modo propriamente científico, que é o da explicação. Nós explicamos a natureza. Mas compreendemos a vida psíquica. Enquanto a explicação constitui um modo de conhecimento analítico e discursivo, procedendo por decomposições e reconstrução de conceitos, a compreensão é um modo de conhecimento de ordem intuitiva e sintética.

Assim, as ciências da natureza são boas a explicar. E as ciências humanas são boas a compreender. Enquanto a explicação detecta as relações que ligam os fenómenos entre si, a compreensão dá sentido à essência de um facto humano. Há várias definições de saúde e qualidade de vida. E então de felicidade..., cada um tem a sua. Em 1948 a OMS definiu saúde: "um estado de completo bem-estar físico, mental e social, não apenas a ausência de doença ou enfermidade. Mas a saúde é evolutiva, mutável e idiossincrática, cuja avaliação varia de indivíduo para indivíduo, e compromete o cidadão na responsabilidade de a preservar e promover. Ou seja, é um estado dinâmico que varia conforme a idade, a responsabilidade individual conforme a sua literacia, e até a cultura.

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