sexta-feira, 8 de maio de 2020

Identidade e preconceito – “Não sou racista, mas . . .



A propósito de mais uma bacorada de André Ventura, o texto que se segue é um ensaio a partir da leitura de depoimentos jornalísticos, em que a expressão "não sou racista mas..." é explicada pela teoria psicanalítica do fetiche. É um meta-texto de uma reportagem jornalística acerca do comportamento de alguns europeus constrangidos com a chegada de refugiados aos seus países, vindos do Oriente Sul, durante a última década numa vaga que atravessou o Mediterrâneo, quase a nado. Essas pessoas começaram a ver alguns hotéis das suas cidades transformados em centros para acolhimento de refugiados: 
Um diz: “Se eu tivesse sabido que um dia seria instalado na zona um centro de acolhimento para refugiados, teria comprado um apartamento noutro sítio qualquer… Não sou racista, mas sinto-me incomodado quando vejo grupos de negros que vagueiam sem fazer nada pelas redondezas a deitarem o olho às nossas filhas”.
Outro morador do bairro acrescenta: “Era muito agradável até há pouco tempo. Ninguém nos avisou de que o hotel ia ser transformado numa ‘comunidade de refugiados africanos’. E, de repente, apareceu aqui essa gente de outras raças e com outros costumes. Como já disse antes, não avalio as pessoas pela cor da pele, mas quando alguém chega directamente de África a uma capital europeia, a verdade é que isso dá bastante nas vistas. Os refugiados vestem-se à maneira tradicional africana, falam uma língua incompreensível, vagueiam pelas nossas ruas, muitas vezes depois da meia noite falando aos gritos uns com os outros, como se estivessem no mato. Há um que não pára de berrar, uiva que nem uma sirene, é horrível”.
Uma terceira fonte explica: “Este verão esses negros roubaram a fruta das nossas árvores. É verdade que também há alguns deles que são decentes, que nos pedem as coisas de maneira delicada. Mas o certo é que a meio da noite ouvimos os ramos a rachar e vemos que eles saltaram as cercas dos nossos quintais. Alguns desses negros medem dois metros de altura.” A testemunha declarava não ser “racista” e sempre ter desejado viajar até África, que considerava o berço da civilização.

O fetichismo, na tradição psicanalítica, é definido como a projecção de desejos e de fantasias sobre um outro objecto ou uma parte do corpo. Um exemplo muito conhecido é o fetichismo dos sapatos, que tem a ver com o complexo de castração. Foi o próprio Freud a sustentar a ideia de que o fetichista é capaz, ao mesmo tempo, de acreditar na sua fantasia e de reconhecer que ela não passa justamente de uma fantasia. Todavia, o problema é que o reconhecimento da fantasia como tal em nada reduz o poder que aquela exerce sobre o indivíduo. Freud teve em certa ocasião um paciente ao qual uma cartomante dissera que o seu genro morreria envenenado nesse verão. Passado o verão, esse paciente quando voltou admitiu que sabia muito bem que o seu genro não iria morrer, mas a profecia era, apesar de tudo, muito agradável.

Embora nenhuma dessas pessoas, entrevistadas na referida reportagem jornalística, se conceba como racista, ao utilizarem a expressão: "não sou racista mas..."uma forma de denegação fetichista - estão a mostrar claramente que o são. Quando denegam o seu racismo, mostram que este continua a viver neles. A declaração "não sou racista, mas os negros vagueiam pelas ruas ...", e por aí fora, revela que, independentemente de se considerarem ou não racistas, se sentem indubitavelmente incomodados por uma gente "estranha" e pelos seus bizarros costumes.

Mais tarde, o jornalista voltou para dar conta da reacção dos refugiados à reportagem. Pediu a um desses refugiados mais esclarecidos que comentasse a reportagem. Ele fazia parte de um grupo seleccionado para desenvolver um programa de sensibilização pelas escolas, a fim de mostrarem uma perspectiva da imigração diferente daquela que maldosamente e carregada de preconceitos se difundia por canais de informação pouco recomendáveis. Ele explicava aos jovens por que tinha o direito de pedir asilo depois de ter fugido de um lugar onde a guerra civil lhe tornara impossível viver. E então ele próprio verificou que as crianças mais pequenas, muito naturalmente, queriam tocar-lhe movidas por uma curiosidade simples e inocente. Ele era um género de pessoa que eles nunca tinham visto. 

A partir desta experiência iam-se desconstruindo argumentos de pessoas como aquelas que se haviam manifestado na reportagem jornalística. Ao fim e ao cabo, a manifestação das nossas crianças brancas e loiras, ao quererem tocar o refugiado africano preto, era algo de semelhante ao que se passava com esses africanos na Europa, quando viam uma rapariga loira. É claro que eles olhavam para as raparigas loiras da mesma maneira, porque não havia raparigas loiras na terra deles: "Não sou racista, mas sinto-me incomodado quando vejo grupos de negros que vagueiam sem fazer nada pelas redondezas a deitarem o olho às nossas filhas”. O andarem a vaguear pelas ruas explica-se pelo facto de nenhum deles conseguir um emprego, sendo um mito portanto, quando dizem que lhes roubam os empregos. E outros problemas prendem-se com a língua do país de acolhimento que eles não sabem falar. Daí só poderem conviver uns com os outros. É claro que quando não há contacto com o Outro, a possibilidade de compreensão e de aprendizagem torna-se extremamente reduzida.

Mas uma coisa é a denegação fetichista do racismo. Outra coisa são os casos de racismo declarado, como o assumido por uma deputada ao parlamento Europeu, ao declarar que não havia lugar para estrangeiros. Aqui já estamos perante mensagens explicitamente racistas que não só representam um insulto visando o Outro, mas incluem também a proposta de uma solução para um problema fictício, deportando imigrantes e colocando-os em campos de concentração. Muitas vezes as leis são perversas, porque assentam em contradições (a chamada pescadinha de rabo na boca), embora possam não estar explícitas: "Um imigrante não pode obter um contrato de trabalho se não estiver regularizado; e não pode regularizar a sua condição de imigrante se não tiver um contrato de trabalho".

Independentemente das leis de cada país para as migrações, há aqui um grande dilema moral que atinge todos aqueles que, voluntariamente ou involuntariamente, pretendem salvar vidas. No verão de 2009, uma embarcação com oitenta imigrantes a bordo manteve-se à tona de água entre Lampedusa e a Líbia durante quase vinte dias, aparentemente sem que ninguém se apercebesse. A guarda costeira italiana acabou por resgatar cinco imigrantes africanos desse grupo, mas os restantes setenta e cinco passageiros morreram devido à privação de água e de alimentos. Os comandantes de navios que por ali passassem teriam de se confrontar com um dilema: se não os socorressem, para além de se confrontarem com os seus princípios do dever moral, violariam as leis marítimas internacionais de socorro a náufragos no mar alto; mas, por outro lado, se os socorressem ficariam numa situação difícil, porque ao chegar ao porto italiano teria de responder em tribunal, por trazerem imigrantes ilegais a bordo. O Ministério Público italiano pediria penas de prisão que podiam ir até quinze anos. Houve casos em que o comandante decidiu conduzir os resgatados até ao porto de Lampedusa, que era o porto mais próximo, sabendo que depois toda a tripulação era detida. Mas houve outros casos de barcos de pescadores que se comportaram de maneira oposta. Numa situação semelhante, repeliram os náufragos à paulada, deixando-os afogar. Moral da história: os que socorriam pessoas em perigo de vida, eram detidos e levados a tribunal; e os que contribuíam para a morte de pessoas inocentes, nas mesmas condições, permaneciam impunes.

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