quinta-feira, 28 de maio de 2020

Os sinais dos tempos sentidos por olfato e paladar



Ninguém melhor do que o Sr. Presidente da República - Marcelo Rebelo de Sousa - para comunicar ao público o que os cientistas têm dificuldade em comunicar. Pela nossa perplexidade perante a velocidade dos acontecimentos, foi preciso improvisar soluções. Novas soluções, isto é, outros sentidos, ainda que transitórios, frágeis e locais. Portanto, é preciso assumir que não se dispõe de soluções definitivas, nem de modelos ou de padrão-ouro. As peças do puzzle ainda não estão completas. Todos os dias são acrescentadas outras, que propiciam, conforme o ponto de vista do observador-intérprete, novas configurações múltiplas e complexas. Prever o futuro tornou-se algo que cumpre mais uma função de busca de ordenações possíveis para o presente, do que prognósticos escancarados em relação ao futuro. Não passam de meros exercícios preditivos. A situação epidemiológica reclama um texto crítico com riqueza argumentativa, para que a retórica não caia no risco do discurso irracional. Irracionalidade que empurre as pessoas a adotar estilos de vida deletérios. Não por o público, enquanto massa amorfa, ser verdadeiramente irracional, mas porque não tem que conhecer com fiabilidade o jargão científico embebido nas referidas mensagens epidemiológicas. 

Há em muitas pessoas um otimismo sustentado, que consiste na crença do primado da razão e do poder da ciência para resolver os problemas humanos, incluindo aqueles criados pela própria tecnociência. Esta é a óptica dos especialistas, que acreditam que a tecnologia, apesar dos seus "efeitos colaterais", existe para melhorar a vida humana. E apresentam reiteradamente o exemplo: de hoje as pessoas viverem mais anos, graças aos avanços da ciência e da técnica. É claro que um corvo falante, perguntaria: “viver mais anos é morrer menos anos?” Ou seja, serão anos a menos para a morte?

Viver sempre foi um risco. Mas como estávamos convencidos que as epidemias de peste, ou outras moléstias contagiosas, tinham desaparecido, também queríamos crer que as narrativas psicológicas que as acompanhavam eram idiossincrasias do passado. Era um quadro que reflectia uma ignorância dos perigos da vida em cada tempo histórico. Por isso, não estávamos preparados para saber avaliar com segurança quanto do medo da pandemia vírica se traduziria numa pandemia paranóica.

Sob a óptica leiga, tínhamos de ter fé no racionalismo científico, como fonte de segurança e sobrevivência. Ainda assim, não custava nada a um crente dizer: “seja o que Deus quiser”; ou a um não crente dizer (permitam-me a expressão original): “que se foda”. Trata-se de uma estratégia cínica, a que Sartre chamou “má-fé”. É uma espécie de distanciamento das fontes de ansiedade através de recursos psicológicos que incluem a ironia, o sarcasmo e o deboche. Pode-se ter uma postura irónica sem necessariamente implicar pessimismo, porque é pragmatismo. Há os pessimistas 'incorrigíveis', que apesar de estarem à espera pela 'derrocada' inevitável, adotam comportamentos hedonistas (considerados de risco), no estilo de 'empurrar o problema com a barriga'. Não deixa de ser, no entanto, uma forma de encaminhamento para o futuro com a cara sorridente.

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