terça-feira, 26 de maio de 2020

“O potencial risco possível hoje”



A Organização Mundial da Saúde (OMS) está a transmitir perspectivas difíceis de compatibilizar. Em causa está a possibilidade de eclosão de uma segunda vaga, com um novo pico que forçaria a novas restrições. Uma segunda vaga não pode ser um mero tema de especulação e debate fútil entre peritos. Michael Ryan, que tem a responsabilidade de liderar o programa de Emergências Sanitárias da OMS, disse: "estar ciente de que a doença pode disparar a qualquer altura. Não podemos supor que vão continuar a descer e que teremos alguns meses para nos prepararmos para uma segunda vaga. Pode acontecer um segundo pico, como aconteceu noutras pandemias, como na da gripe pneumónica". Maria Van Kerkhove, principal responsável técnica da OMS no combate à covid-19, alertou que os estudos de seroprevalência já efetuados são poucos: "se encontrar uma oportunidade, este vírus provocará surtos. Uma característica única deste coronavírus é a capacidade de se amplificar em certos ambientes fechados, com uma super-propagação, como temos visto em lares de idosos ou hospitais".

Até aqui, parecia reinar o consenso no interior da OMS, mas María Neira desfez as ilusões. Durante uma entrevista à rádio catalã RAC1, a diretora do Departamento de Saúde Pública da OMS afirmou ser "cada vez mais improvável a ocorrência de uma segunda grande vaga. Os modelos de previsão com que a organização trabalha avançam muitas possibilidades, desde novos surtos pontuais a uma nova vaga importante, mas esta última possibilidade é cada vez mais de descartar. Com estas palavras de natureza potencialmente tranquilizadora, María Neira com esta entrevista semeou mais confusão do que esclarecimentos.

Estamos perante o que se devia dizer: ‘impredizível’. O paradoxo disto está no facto de os cientistas saberem que quanto mais ruído, mais flutuações, mais indeterminações, melhor para a criatividade e inovação. A grande inovação é aquela que costuma emergir nos meandros combinatórios do acaso. Os cientistas também têm outro nome para isto: ‘serendipidade’ – aptidão de atrair a si acontecimentos favoráveis de maneira fortuita; dom de fazer boas descobertas por acaso; acontecimento favorável que se produz de maneira fortuita; acaso feliz; descoberta acidental. Um exemplo, é o caso do sildenafil (Viagra). As pesquisas farmacológicas estavam dirigidas para a geração de um vasodilatador coronário. Nos testes, percebeu-se a alta incidência de uma marcante manifestação inesperada. Já que os efeitos nas coronárias não foram satisfatórios, foi o aproveitamento do efeito colateral que veio a brilhar para contentamento de todos: produtores e consumidores.

Há circunstâncias em que fatores incontroláveis participam nos processos ligados às doenças. E é por isso que a OMS tem sido ultimamente muito criticada por dizer hoje de manhã uma coisa, e à tarde o seu contrário. Mais valia não dizer nada. Ou estamos perante um caso de estilo de linguagem, como dizer que na medida do possível não é possível dizer melhor (pois neste caso não se trata de possibilidade e sim de potencialidade); ou então trata-se de um oxímoro próprio destes tempos: o oxímoro é um recurso estilístico que consiste em reunir, no mesmo conceito, palavras de sentido oposto ou contraditório, como dizer, por exemplo: ‘silêncio ensurdecedor’.

Na saúde pública, em geral, e na epidemiologia, em particular, há ideias que é necessário escrutinar. Uma é a ideia de 'potencial', obtida em estudos populacionais, que entra no modo 'possível' ao nível individual. E esta é uma das questões cruciais para operarmos com o conceito de risco (de adquirir doenças). Em inglês há uma distinção, em antropologia médica, entre ‘disease’ (doença-processo) e ‘illness’ (no sentido de uma pessoa estar doente). Outra ideia é a de ‘promoção da saúde’ que se cruza com a outra ideia, a de 'risco’, muito trabalhada em saúde pública
Hoje vive-se numa sociedade globalizada e de risco. 

Quando ouvimos no Telejornal dizer que o vírus ‘quer’ isto e aquilo, ou ‘precisa’ daquilo e um par de botas, está-se a antropomorfizar a Natureza, como se ela girasse em função exclusivamente do nosso proveito. Os jornalistas, quer queiram ou não, desempenham o papel de educadores e podem funcionar como fator de influência para a eventual adoção de medidas 'profiláticas'. Em reportagens e em entrevistas feitas a investigadores por causa desta epidemia vírica, sobretudo a epidemiologistas, eles não se cansam de alertar para as limitações de suas abordagens diante da profusão de estudos inconclusivos para o estabelecimento de fatores de risco. Deve-se dar importância ao estudo de como jornalistas científicos e profissionais de saúde veiculam informação, para não se correr o risco de, em vez de informação, darem desinformação, o que seria prejudicial, porque nessas circunstâncias geralmente é o alarmismo e o preconceito que proliferam.

As margens de incompreensão não são desprezíveis, se levarmos em conta o fosso que existe entre o léxico e a gramática dos pesquisadores, e o público leigo recetor. Coletivamente, parece pairar uma aura de ameaça sobre todos nós, passível de ser efetivada, de modo particularizado, a qualquer instante. Em especial, se não nos precavermos de acordo com o que mandam os preceitos da prevenção em saúde, as normas de segurança no trabalho, as ideias de cautela nas actividades quotidianas. 

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