domingo, 10 de maio de 2020

Com temor e tremor: o Apocalipse

Este tempo de peste reaviva uma lição esquecida: nós somos parte de um corpo comum, somos uma nação ou comunidade antes de sermos um mercado. Os adolescentes não podem ser induzidos apenas para o consumo, têm de perceber que existe algo acima dos seus apetites concretizáveis no mercado.
Henrique Raposo – Expresso – 8 de maio de 2020
Era o asteróide. E a seguir o sismo, sendo o sismo uma catástrofe regional, a fenda do Atlântico, as placas tectónicas, os vulcânicos Açores e tudo o mais. O sismo, como o de 1755, é uma ameaça real e lisboeta. O grande sismo chegou no dia 1 de novembro, Dia de Todos os Santos, e arrasou a baixa da cidade. Fazer um seguro antis-sismo em Portugal, em Lisboa, é o mesmo que fazer um seguro anti-Covid-19. As seguradoras não apreciam, e no caso da Covid-19 ainda nem apreciaram a ideia. E assim íamos vivendo, imortais. Entre o asteroide ativo e a inconsciência humana e planetária. Ninguém perde o sono por causa das alterações climáticas e o raciocínio é o do egoísta. O futuro que trate do assunto. Ora, o futuro está a tratar do assunto no presente e não é agradável.
Clara Ferreira Alves – Expresso – 9 de maio de 2020
O excesso securitário leva a atitudes pouco racionais na relação com o outro. Neste momento, estamos a viver no limiar de uma fadiga de informação.
Kamal Mansinho – Público 10 de maio de 2020
Desde o terramoto de Lisboa que periodicamente alguns dos melhores espíritos europeus são seduzidos pelos lamentos da decadência: Nietzsche, Spengler, Kafka, Cioran, até à secura com que Claude Levi-Strauss nos tira as esperanças nos Tristes Tropiques: "o mundo começou sem o homem e acabará sem ele". E daí? Reagimos nós. Vou estar já preocupado ao saber que daqui a muitos milhões de anos o Sol está condenado a extinguir-se?

É possível que os temas da decadência se acentuem em épocas em que as pessoas estão desencantadas das suas ilusões perdidas, cansadas da euforia da última utopia que nos prometeu o céu na terra. Pandemias ou terramotos, são momentos de abandono, de dissolução, de perda. São momentos de esterilidade coletiva e de caos.

O que devemos temer e o que devemos esperar? Quando temos dificuldade em saber o que vai acontecer, temos dificuldade em saber o que fazer. Assim, perante um desafio, temos de decidir o que é que mais deve importar: os nossos medos ou as nossas esperanças? Que objetivos são mais importantes para nós? Que cedências estamos dispostos a fazer?

Um velho, numa situação de doença, precisa pelo menos de dois tipos de coragem: uma é a coragem de enfrentar a verdade sobre a realidade tal como ela é, mesmo que não goste; a outra é a coragem de agir em conformidade. A ansiedade existencial da dúvida impele a pessoa para a criação de certeza em sistemas de significação que são sustentados pela tradição e autoridade. A despeito do elemento da dúvida que está implicada na espiritualidade finita do homem, e a despeito da ameaça de insignificância por extravio do homem, a ansiedade é reduzida pelos meios de produzir e preservar a certeza. A ansiedade constrói um estreito castelo de certeza que pode ser defendido, e é defendido com a máxima tenacidade. O poder de perguntar é banido. Contudo, o castelo da certeza não está construído no rochedo da realidade. Se a ansiedade entra em pânico, perde a realidade. A ansiedade existencial tem um caráter ontológico e não pode ser afastada, mas deve ser tomada dentro da coragem do ser. A ansiedade patológica, em relação à ansiedade do destino e da morte, produz uma segurança irrealista. A ansiedade da dúvida e insignificância é potencialmente tão grande como a ansiedade do destino e da morte. Está enraizada na natureza da produtividade finita. 

Coragem de ser como si próprio, da maneira entendida no Iluminismo, é uma coragem na qual a auto-afirmação individual inclui a participação na auto-afirmação universal e racional. Contudo, não é o "Eu" individual como tal que se afirma. A coragem de ser como si próprio é a coragem de seguir a razão e desafiar a autoridade irracional. Esta é a máxima dos estóicos. Ousa não só enfrentar as vicissitudes do destino e a inescapabilidade da morte, mas também a ameaça da culpa. A culpa sentida hoje pela humanidade reside no mal que fez ao planeta Terra, uma vez que até agora, num Universo imenso, não há outro igual em milhões e milhões de galáxias, cada uma com milhões e milhões de sistemas solares, mas nenhum igual a este. Nenhuma outra criatura alterou a vida no planeta Terra duma forma tão precisa e sistemática. 

É verdade que já ocorreram grandes extinções noutras eras geológicas, mas sem que nenhuma criatura tenha sido dada ou achada. Muito, mas muito de vez em quando, no passado remoto, o planeta Terra sofreu mudanças tão violentas que a diversidade da vida sofreu colapsos da noite para o dia. Estão referenciados pelo menos cinco desses, e um deles é o asteróide da última crónica de Clara Ferreira Alves. Das outras, provocadas por criaturas, uma só criatura: nós. Aconteceram muitos colapsos e em muitos sítios, mas de uma forma mais limitada. Só agora é que chegou a hora de ser global. Programas de extermínio, apesar de pouco divulgados, existem há décadas e, no ambiente restrito das ilhas, têm sido um sucesso. Ratos foram extintos em 234 ilhas; gatos, em 48; cabritos, em 120; coelhos, em cinquenta; porcos, em cem; e raposas, em 39. O sucesso é bem menor quando o objectivo é exterminar plantas ou insectos. Nos continentes, é tarefa impossível. Por isso, tem de ser uma coragem combatente e desafiante a si própria. Primeiro, dominar a ameaça da insignificância travestida de arrogância; segundo, dominar a ameaça suicida da culpa, reconhecendo erros e defeitos, delitos individuais e sociais a serem corrigidos pela boa educação. 
Quando os helicópteros surgem voando baixo, os cabritos montanheses param de pastar, viram a cabeça em direção ao ruído e começam a correr. Com o corpo fora dos helicópteros, óculos escuros e armas automáticos, é canja. Os cabritos rolam na relva. Os filhotes são poupados, não por compaixão, mas por serem alvos difíceis. Os sobreviventes se escondem nas montanhas. Chegam os Land Rovers com os Judas, cabritos castrados portadores de radioemissores, e as super-Judas, fêmeas castradas injetadas com hormonas capazes de atrair filhotes famintos. Soltos, eles correm e se juntam aos sobreviventes. No dia seguinte, os helicópteros guiados por sinais de rádio vão localizar e exterminar o resto do bando. Milionários excêntricos caçando em África? Não, ecologistas financiados pela ONU, 21 milhões de dólares, tentando preservar a biodiversidade da ilha de Isabela, nas Galápagos, um dos mais importantes santuários ecológicos do planeta. O objetivo é exterminar 150 mil cabritos que infestam os 458 mil hectares da ilha. O último foi morto em março de 2006. Na ausência de predadores, os cabritos levados para lá no século XIX pastaram até deixar a terra com os ossos à mostra. 
Num certo diálogo de Platão, Sócrates pergunta o que é a coragem. Os generais Laques e Nícias tinham recorrido a Sócrates para resolver esta disputa: deviam ensinar aos rapazes o treino militar com armadura, ou não? Sócrates pergunta qual é o objetivo do treino. E eles respondem que é para instigar a coragem. Então nesse caso o que é a coragemLaques diz que coragem é uma certa resistência da alma. Não poderá a resistência ser tola? Questiona Sócrates. Por vezes o ato corajoso é saber retirar-se a tempo. Laques concorda, mas, prefere uma resistência sábia. Sócrates pergunta se a coragem tem forçosamente de estar tão ligada à sabedoria. Nícias acaba por intervir dizendo que a coragem é simplesmente "saber o que se deve temer ou esperar, quer na guerra quer em tudo o resto". Mas Sócrates também critica esta posição, porque podemos ter coragem sem sabermos exatamente o que nos reserva o futuro. E nesta altura, como é típico dos diálogos com Sócrates, os generais ficam confusos.

A coragem de Sócrates (no quadro de Platão) era baseada, não em uma doutrina da imortalidade da alma, mas na afirmação dele próprio em seu ser essencial, indestrutível. Ele sabe que pertence a duas ordens de realidade, e que uma ordem é transtemporal. Foi a coragem de Sócrates que, mais do que qualquer reflexão filosófica, revelou ao Mundo Antigo que cada um pertence a duas ordens: temporal e eterna.

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