sábado, 23 de maio de 2020

1492 – 1942


1492 

Edgar Morin apercebeu-se muito cedo que a sua identidade francesa não era aquilo que parecia quando alguém lhe perguntava onde tinha nascido o seu pai e ele respondia Salónica. Então diziam: “Ah, é grego!” Não porque Salónica era turca quando ele nasceu. “Então é turco?” Não, ele era de origem espanhola… “Então é espanhol?” Não…, etc. Não sabia indicar nem compreender a sua nacionalidade de origem. Edgar Morin era descende de uma família judia oriunda da Península Ibérica, que teve de fugir para Itália durante o êxodo a seguir ao édito de expulsão dos Reis Católicos em 1492. Só mais tarde essa família se mudou para Salónica, onde viria a nascer o seu pai, cidade do Império Otomano que viria a deixar de ser depois de 1911. A cidade distinguia-se pela sua população maioritariamente judaica de origem sefardita, em consequência desse êxodo. De facto, o pai era de Salónica, quer dizer, oriundo de uma cidade de império, anterior à fase dos nacionalismos, povoada em mais de 60 por cento por sefarditas espanhóis que formavam ali uma unidade cultural. No entanto, desde há pelo menos três gerações que se haviam laicizado, comiam presunto e ignoravam o kasherA língua mais usada na cidade era o ladino, a língua derivada do castelhano falada pelos judeus sefarditas. E era a língua que o pai de Edgar Morin falava com os seus pais. Depois o pai emigrou para França, onde viria a adquirir a nacionalidade francesa por naturalização.

Um judeu famoso dessa diáspora espanhola é Isaac ben Judah Abravanel, que conheceu bem João de Torquemada e Tomás de Torquemada, este o protagonista principal da perseguição aos judeus sefarditas, e aos conversos, nome dado aos judeus que se converteram ao cristianismo, também chamados cristãos-novos, e pejorativamente marranos quando a conversão era tida como não sincera. Isaac Abravanel nasce em Lisboa em 1437. Entra ao serviço do rei Afonso V de Portugal como tesoureiro. A Família Abravanel era uma das mais antigas e distintas famílias judaicas sefarditas, que reivindicava como ascendência direta o bíblico Rei David. Viveram em várias cidades da Península,  sendo Judá Abravanel o mais antigo conhecido dessa família. Isaac possuía uma grande riqueza herdada de seu pai. Quando Arzila, em Marrocos, foi tomada pelos portugueses, e os prisioneiros judeus foram vendidos como escravos, ele contribuiu largamente com os fundos necessários para os libertar. No tempo de D. João II [1455-1495], chegou a ser acusado de conspiração com o Duque de Bragança. Avisado a tempo, Abravanel salvou-se, fugindo em sobressalto para Castela em 1483, estabelecendo residência em Toledo. A sua grande fortuna foi confiscada por decreto real. Pouco depois começou a servir a casa de Castela, para satisfação total de Isabel, a Católica [1451-1504]. Mas quando foi decretada a expulsão dos judeus de Espanha em 1492, Abravanel teve de deixar Espanha e foi viver para Nápoles, onde em breve entraria mais uma vez para os serviços do rei. Por um período curto, porque quando Fernando I morreu em 1494, Carlos VIII de França invadiu a Itália, com a pretensão angevina ao trono de Nápoles, que seu pai tinha herdado por morte de René de Anjou, em 1481, que era seu sobrinho. Depois de um período de vida errante, chegou a Veneza em 1503, onde os seus serviços foram empregues na negociação de um tratado comercial entre Portugal e a República de Veneza. E aqui morreu em 1508. Nesse ano, Fernando II de Aragão, o Católico, foi regente de sua filha Joana, conhecida como Joana, a Louca, rainha de Castela e Leão desde 1504.

A pena mais leve imposta aos marranos era o confisco dos seus bens. Os Reis Católicos, Isabel e Fernando, precisavam de receitas, e a perseguição movida aos hereges por Torquemada era uma fonte de renda que interessava ao Estado. Isabel e Fernando autointitulavam-se "protetores da Igreja e defensores da fé". A etapa seguinte era a morte na fogueira, durante os chamados autos-de-fé, após inomináveis torturas. Torquemada, no afã de obter dos Reis Católicos a expulsão definitiva de todos os judeus, promoveu em 1490 um julgamento-espetáculo, onde as vítimas, oito judeus, foram acusados de praticar rituais satânicos e de crucificar crianças cristãs. Pressionados pelo clima de crescente intolerância, em 31 de março de 1492 Fernando e Isabel publicaram então o Édito de Expulsão. Muitos fugiram para Portugal ou Norte da África, onde enfrentaram mais perseguições. E uma boa parte foi para Salónica. Mas alguns, sem alternativa, permaneceram escondidos. Em Salónica, os sefarditas, desde 1492 até 1911, nunca haviam sofrido qualquer vexame. Por isso, não carregavam na sua consciência o menor sentimento de exclusão. Em 1942, quando Edgar Morin se convenceu que o combate comunista contra o nazismo era o combate pela salvação da humanidade, tornou-se um resistente comunista. Um amigo, pensando na Condição Humana de Malraux, disse-lhe: “Você é daqueles que são deitados nos fornos das locomotivas”.

1942

Em 1942 tiveram início as deportações em massa para os campos de concentração, sendo que muitos destes eram enviados logo para os campos de extermínio. Isso seria a solução final da questão judaica, posteriormente conhecida como Holocausto. Após a invasão da Polónia, os nazis estabeleceram guetos em que judeus e alguns ciganos foram confinados até serem finalmente enviados para os campos de extermínio. Cada gueto era administrado por um Judenrat (Conselho Judaico) composto por líderes da comunidade judaica alemã, que eram responsáveis pelo dia a dia do gueto, como a distribuição de alimentos, água, medicamentos e abrigo. A estratégia básica adotada pelos conselhos era de uma tentativa de minimizar as perdas, em grande parte, cooperando com as autoridades nazis (ou seus substitutos), aceitando o tratamento cada vez mais terrível e pedindo por melhores condições e clemência. Os conselhos também eram responsáveis por fazer os arranjos para as deportações dos judeus para campos de extermínio. Portanto, o momento definidor que testou a coragem e o caráter de cada Judenrat veio quando eles foram convidados a fornecer uma lista de nomes do próximo grupo a ser deportado para os campos. Os membros do Judenrat tentavam métodos como suborno, obstrução, súplica e argumentação, até que, finalmente, uma decisão tinha de ser tomada. Alguns, como Chaim Rumkowski, argumentam que a sua responsabilidade era salvar os judeus que poderiam ser salvos, e que, portanto, outros tinham que ser sacrificados. Enquanto outros afirmam que nenhum indivíduo que não tivesse cometido um crime capital deveria ser entregue. Líderes dos Judenrat, como o Dr. Joseph Parnas em Lviv, que se recusaram a compilar uma lista foram baleados. Em 14 de outubro de 1942, todo o Judenrat de Byaroza cometeu suicídio em vez de cooperar com as deportações.

No dia 17 de março de 1942, começou a Operação Reinhard. O projeto de genocídio foi comandado pelo líder das SS e chefe da polícia de Liubliana, Odilo Globocnik. Tanto ele como o seu grande número de colaboradores eram austríacos. Nos três grandes centros de aniquilamento com câmaras de gás (Belzec, Sobibor e Treblinka), foram executados mais de 1,5 milhão de judeus e 50 mil ciganos entre março de 1942 e novembro de 1943. Ao todo, a operação levou à morte mais de 2 milhões de judeus. Os preparativos para a operação já haviam começado no final do ano de 1941, mas somente em 1942 ela recebeu o nome de Reinhard Heydrich, que havia morrido num atentado. O objetivo era o genocídio sistemático dos judeus poloneses e o confisco dos seus bens.

Himmler ordenou o início das deportações em 19 de julho de 1942 e, três dias depois, em 22 de julho, as deportações do gueto de Varsóvia começaram e se estenderam ao longo dos seguintes 52 dias, até 12 de setembro, quando trezentas mil pessoas, apenas de Varsóvia, foram deportadas para o campo de extermínio de Treblinka. Muitos outros guetos foram completamente esvaziados. A primeira revolta num gueto ocorreu em setembro de 1942, na pequena cidade de Łachwa, no sudeste da Polónia. Embora tentativas de resistência armada tenham surgido nos guetos maiores em 1943, como o Levante do Gueto de Varsóvia e do Gueto de Bialystok, em todos os casos elas não conseguiram lutar contra a esmagadora força militar nazi. E os judeus rebeldes foram mortos ou deportados para os campos de extermínio. Himmler havia encarregado Globocnik e outros, com experiência em eutanásia, para darem seguimento à operação. Os campos de extermínio recebiam por dia um comboio com 60 vagões lotados de pessoas destinadas às câmaras de gás. Depois os corpos eram depositados em enormes valas. Só um ano depois, os cadáveres foram exumados e queimados. A Operação Reinhard foi encerrada em novembro de 1943, com um saldo de mais de 2 milhões de judeus mortos.

A partir do outono de 1942, Edgar Morin passou a viver uma vida de dupla personalidade em Lyon, onde se travavam relações de simpatia com outros resistentes dos MUR (Movimentos Unidos de Resistência), simpatizantes comunistas em vias de se tornarem "submarinos" do Partido. Os militantes do Partido eram tipo Loyola: severos, implacáveis falando uma linguagem ritualizada, a que se começou a chamar "língua de pau". Com esse tipo de camaradas não se podia ter nenhum desabafo pessoal. Edgar Morin também se tornou um submarino:
«[...] Robert Antelme relatou-me, após o seu regresso da deportação, que no dia em que eu tinha uma entrevista com um certo número de responsáveis do Movimento, entre os quais François Mitterrand, a minha chegada foi anunciada com um: "atenção, é um comunista". Durante três anos, até 1948, continuei a dizer-me comunista já tendo deixado de o ser. Mudei de residência e não recuperei o meu cartão do Partido. Mas não o confessei. Em 1951 aceitei um convite para uma reunião feita pelo porteiro, que era do Partido. Eu julguei que era uma reunião de antigos combatentes da paz. Para minha surpresa tratava-se de uma célula comunista, à qual supostamente devia pertencer. Conclusão: tratava-se de um ritual de excomunhão. Estranhamente marrana. Tinha partido do Partido, embora continuasse a fazer parte dele enquanto não me submetesse à cerimónia ritualizada de excomunhão.
O marranismo ofereceu à cultura europeia moderna um Montaigne e um Espinosa. Uma prodigiosa diáspora cultural. Existiram também convertidas que, como Teresa d'Ávila, encontraram no êxtase da comunhão mística um Além da Lei judaica e da norma católica. Existiram cabalistas que camuflaram o seu culto da Sechiná, substância feminina da Divindade segundo a Cabala, com o culto à Virgem Maria. A soberania do espírito livre que não só observa o mundo, os costumes, mas também a autocondição, é a energia crítica do pensamento interrogativo de Montaigne.
Descobri que os meus ascendentes mais longínquos que consegui vinham todos de Livorno, e que uns provinham de marranos emigrados de Portugal para Amsterdam, em meados do século XVII. Outros eram originários de Aragão. Senti-me feliz por encontrar no século salónico das minhas três gerações anteriores, em vez da sinagoga, uma laicidade formada no grão-ducado da Toscânia.[...] »

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