quarta-feira, 27 de maio de 2020

1496 e as dinastias reais da Península Ibérica



A expulsão dos judeus e alguns muçulmanos, em 1496, foi a condição imposta pelos Reis Católicos a D. Manuel I de Portugal, como contrapartida com o casamento com a filha Isabel. D. Manuel fez-lhes a vontade, na medida em que D. Manuel um dia poderia ser também rei de Espanha. Este seu primeiro casamento durou apenas três anos [1498-1501]. Depois da morte desta, D. Manuel I de Portugal ainda casou mais duas vezes: primeiro com Maria de Aragão e Castela, também filha dos Reis Católicos; e depois com Leonor, filha de Filipe I de Castela [1478-1506] e de Joana a Louca.

Dom Manuel I, o Venturoso [1469-1521] – rei de Portugal e dos Algarves desde 1495 e até morrer, era o filho mais novo de Fernando de Portugal, Duque de Viseu [1433-1470]. Este Fernando era o 2º filho de D. Duarte de Portugal e Leonor de Aragão; e, portanto, irmão de D. Afonso V de Portugal. D. Leonor, filha de Fernando I de Aragão [1380-1416], foi regente no reinado do filho Afonso V, por este ainda ser menor de idade quando subiu ao trono. A mãe de D. Manuel I de Portugal – Beatriz de Portugal – era neta do rei Dom João I de Portugal, casado com Filipa de Lencastre. O rei que precedeu D. Manuel I, foi D. João II de Portugal, que por sua vez havia sucedido ao pai, D. Afonso V, sendo a mãe Isabel de Coimbra [1432-1455], primeira mulher de Afonso V. Este voltou a casar, desta vez com Joana de Trastâmara, conhecida pejorativamente por Joana a Beltraneja.

Pelo que já foi dito, se vê como funcionavam as casas reais na Península Ibérica, casando uns com os outros desde as fundações afonsinas, ao ponto de Filipe II de Castela [1527-1598], vir a ocupar o trono de Portugal em 1580, tendo feito valer os seus direitos de sucessão em 1581 nas Cortes de Tomar. E como os mesmos nomes se repetem de um lado e doutro, torna-se necessário acrescentar à frente do nome: ‘de Portugal’; ou ‘de Aragão’; ou ‘de Castela’, como se irá verificar ao longo desta crónica.

Desde a Idade Média que a população judaica era olhada com alguma desconfiança, tanto em Espanha como em Portugal. E isso tinha uma causa: os judeus trabalhavam para o rei na cobrança das rendas e na organização da contabilidade pública. Os ocasionais ataques a judiarias tinham quase sempre esta motivação. Mas mantinha-se a tolerância quanto à religião. Quando Frei Tomás de Torquemada [1420-1498] foi nomeado para o cargo de inquisidor-geral da Inquisição espanhola pelos Reis Católicos, foi mais por ser um dominicano de Valhadolide, sério e observante da lei religiosa, e de linhagem, do que pelo facto de ser um converso. É sabido como se comportam alguns apóstatas com os seus antigos camaradas para dar nas vistas quanto ao seu fervor pela nova religião. Mas essa faceta não foi prevista, e, portanto, foi o que se sabe: a fama deste Tomás Torquemada como inquisidor mor atravessou séculos. Quem na verdade parece ter sido uma pessoa decente foi o seu tio – João de Torquemada [1388-1468] – Cardeal que teve muita influência tanto em Roma junto dos Papas, como nos restritos círculos do poder político. Bem, em 1388, quando João de Torquemada nasceu, ainda não se pode falar de uma Espanha. Nos finais do século XIV, a Península Ibérica era constituída pelo reino de Portugal; o reino de Navarra; a Coroa de Aragão que reunia os reinos de Aragão-Catalunha, Baleares e Valência; e a Coroa de Castela que reunia uma série de outros reinos desde os tempos da Reconquista aos árabes que haviam entrado na Península Ibérica em 711. A Coroa de Castela ainda continha um reino em Granada governado pela dinastia Nasrida, ou Nacérida, última dinastia muçulmana na Península. A Espanha só começou a dar nas vistas quando D. João I de Castela, se casou com Beatriz de Portugal, única filha legítima e presumível herdeira do rei D. Fernando de Portugal, tendo posteriormente reclamado para si, ou para a sua mulher, a coroa portuguesa. Esta pretensão levou-o a disputar o caso com D. João I de Portugal, na batalha de Aljubarrota, em 14 de agosto de 1385. D. João I de Portugal levou a melhor, chegando a ser auxiliado pelo príncipe inglês Edmond de Cambridge, um dos filhos de Eduardo III, um Plantageneta, e tio de Filipa de Lencastre, com quem D. João I de Portugal veio a casar em 1387.

Nas cidades ibéricas, e em grande parte dos territórios rurais, viviam mouros, ou seja, todos aqueles muçulmanos que tinham decidido permanecer, pagando um imposto especial. As mourarias, foram até ao século XVI sectores urbanos extremamente activos. Paredes meias com estas mourarias, tinham-se igualmente organizado e mantido com um dinamismo semelhante, as judiarias, os bairros judeus. Os judeus no tempo do domínio muçulmano tinham podido viver à vontade, dado que um pacto com o nome de Pacto de Omar, lhes conferia o estatuto de ‘dhimmi’, que significava viver de acordo com a xaria. E da mesma forma foram permanecendo nas cidades cristãs reconquistadas.

A partir de 1290 a Península começou a receber progressivamente mais judeus que estavam a ser expulsos do ducado da Aquitânia e do reino de França. Entretanto na Guerra dos Cem Anos, entre a Inglaterra e a França, Portugal tomou o partido dos ingleses e Castela apoiou o rei de França. No entanto a Coroa de Aragão não se meteu neste conflito, estando mais preocupada com as questões mediterrânicas onde era uma grande potência. Porém, a partir do século XIII, uma dinastia francesa passou a reinar Navarra e alargou o poder a Castela, tendo o trono sido tomado em 1369 pela dinastia dos Trastâmara. Já tínhamos referenciado esta família com o casamento de Afonso V em segundas núpcias com Joana de Trastâmara. Uma era de lutas dinásticas se iniciava na Península Ibérica, tendo Castela como epicentro. Como já foi dito, D. João I de Castela foi o segundo da dinastia dos Trastâmara a reinar e a cobiçar o trono de Portugal.

Em 1348, a Coroa de Aragão é abalada pela epidemia da Peste. O rei D. Pedro IV vai deixando sucessivamente as várias cidades onde procura abrigo, seguindo o vale do Ebro, para escapar ao contágio. Com o afastamento da Corte, a multidão acusa os judeus de envenenar os poços e de atrair a cólera celeste, acabando por se lançar sobre as judiarias, sobretudo em Barcelona. No ano de 1367, em Valhadolide oito sinagogas são queimadas. E 1391, Castela e Aragão são fustigadas por frades a pregar contra os deicidas. Há vários mortos, e muitos começam a fugir para Tunes e Alexandria. Em resultado disso, em 1412 são promulgadas as Leis de Valhadolide no reino de Castela como medidas de proteção. Em 1415 uma bula do papa Bento XIII vem confirmar essas leis. A partir de então os judeus de Castela deixam de ocupar cargos governamentais e administrativos, ou seja, tudo aquilo que lhes concedesse poder sobre os cristãos.

Em Portugal os reis da dinastia de Avis são indulgentes para com os judeus, e não o escondem. No entanto, as sublevações são inevitáveis. O infante D. Pedro era o principal protetor dos judeus. A coisas agravaram-se, contudo, após a sua morte na batalha de Alfarrobeira, em 1449. Já a partir de 1468, as Cortes de Santarém tornam obrigatório o uso de uma estrela vermelha de seis pontas para as vestes dos judeus. Em 1480, em Braga, o converso “Mestre Paulo”, dominicano, obriga os judeus a assistirem aos seus sermões. A pouco e pouco Portugal ia seguindo o mesmo rumo que estava a acontecer em Espanha.

Em 2 de janeiro de 1492, a entrada dos Reis Católicos em Granada é uma cerimónia notável: a rainha isabel, soberana oficial do Estado, vai á cabeça receber as chaves da cidade das mãos de Mendoza. Em julho de 1492, no final do prazo dado pelos reis católicos, milhares de judeus atravessaram a fronteira, tendo D. João II permitido a entrada dos refugiados e nomeado locais onde poderiam ser integrados: Olivença, Arronches, Figueira de Castelo Rodrigo, Bragança e Melgaço. Na raia, os judeus espanhóis pagavam uma espécie de portagem e, em troca, recebiam um salvo-conduto. Àqueles que exerciam uma profissão, os funcionários régios faziam um desconto, uma vez que eram tidos como mão-de-obra útil à economia nacional: ferreiros, carpinteiros, oleiros, tecelões. A maioria destes cidadãos dirigiu-se para as grandes cidades: Lisboa, Porto e Évora. Contudo, uma parcela considerável da população fixou-se na raia, na zona de Ribacôa. Por isso mesmo, existiram comunidades hebraicas em Pinhel, Vila Nova de Foz Côa, Meda, Marialva, Numão, Trancoso, Guarda e Sabugal.

A autorização de entrada atribuída por D. João II tinha, no entanto, um prazo de validade: o salvo-conduto extinguia-se ao fim de oito meses. Os judeus poderiam viajar para outras paragens, mas o rei só lhes permitiu embarcar em navios com destino a Tânger e a Arzila. Alguns fizeram-no, mas acabaram por regressar a Portugal depois de terem sido maltratados e roubados pelos mouros. Ao longo do tempo a atitude de D. João II para com os judeus expulsos de Espanha foi ganhando contornos terríveis. Em 1493 ordenou que os filhos menores fossem retirados aos pais e enviados para São Tomé, que precisava de ser povoado. A ilha tinha então grande número de crocodilos, além de um clima hostil, pelo que a maioria das crianças foi comida pelos animais. As

D. João II morreu em 1495. Nos primeiros anos do reinado de D. Manuel a comunidade judaica viveu em paz, tendo o rei escolhido o judeu Abraão Zacuto para seu médico particular. Zacuto era também matemático e astrónomo. D. Manuel I desejava uma união da Península Ibérica, debaixo da sua coroa, naturalmente, pelo que propôs casamento a D. Isabel, filha mais velha dos Reis Católicos, como já foi dito no início

A conversão forçada começou com uma medida trágica. Na Páscoa de 1497, D. Manuel I mandou que os judeus menores de 14 anos fossem entregues a famílias cristãs de várias vilas e cidades do país. Pouco depois, a ordem estendeu-se aos jovens com 20 anos. Muitos pais mataram os seus filhos, degolando-os ou lançando-os em poços e rios, contou Damião de Góis. A perseguição não ficou por aqui. O monarca restringiu ainda o número de portos de embarque para aqueles que queriam sair do reino, obrigando-os a concentrarem-se na capital. Segundo Jorge Martins, cerca de 20 mil pessoas, oriundas de várias zonas, foram encaminhadas para o Palácio dos Estaus (futura sede da Inquisição, localizada onde é hoje o Teatro Nacional D. Maria II), ali permanecendo, sem comer e sem beber, até ao momento do embarque. A ideia de aprisioná-los nos Estaus tinha um motivo. Enquanto aguardavam pela partida para o estrangeiro, foram visitados por dois judeus conversos, Nicolau, médico, e Pedro de Castro, eclesiástico em Vila Real. Os dois homens tinham uma missão: persuadir os judeus a converterem-se ao cristianismo. Muitos acabaram por ser levados para as igrejas da Baixa e baptizados contra a sua vontade; outros conseguiram fugir e suicidaram-se, atirando-se a cisternas e a poços. 


A 19 de Abril de 1506, Domingo de Pascoela, a minoria cristã-nova sentiu, pela primeira vez em Portugal, uma inaudita violência sobre pessoas e bens. Lisboa estava então assombrada pela peste que assolava a capital desde outubro do ano anterior. Um período de seca matara os campos nos arrabaldes; escasseavam alimentos; a fome tomava conta da cidade. Os gritos deram início ao massacre. Os crentes espalharam-se pelas ruas de Lisboa; a esta multidão juntou-se, segundo o historiador António Borges Coelho, a chusma das naus da Índia, que, atiçada pela pregação dos frades, violou, matou e queimou milhares de pessoas. Arrombavam as portas das casas, em busca de cristãos-novos, perseguiam quem tentava fugir, carregavam mortos e vivos para as fogueiras que iam sendo ateadas em vários locais da cidade, como o Rossio e a zona ribeirinha. A matança e as pilhagens prosseguiram por três dias. Segundo os cronistas da época terão sido mortos entre duas mil a quatro mil pessoas; Alexandre Herculano e o historiador norte-americano Yosef Yerushalmi registaram duas mil, o número que obtém mais consenso entre os especialistas.

D. Manuel I foi informado do que estava a acontecer em Lisboa quando estava em Aviz, a caminho de Beja para visitar a mãe, a infanta D. Beatriz. D. Manuel I teve de fazer alguma coisa, dando de imediato poderes ao Prior do Crato e a D. Diogo Lobo para castigarem os culpados. O problema era identificar os culpados. Uma cidade inteira revoltara-se contra os judeus e matara aqueles que não conseguiram escapar. Para castigar os habitantes de Lisboa, D. Manuel I retirou uma série de privilégios à cidade: aqueles que se tinha provado terem participado no morticínio perderam todos os seus bens; os que não se envolveram, mas nada fizeram para deter a multidão, perderam um quinto dos seus bens; e foi suspensa a eleição dos representantes da Casa dos Vinte e Quatro.

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