terça-feira, 9 de junho de 2020

A Origem da Obra de Arte – Martin Heidegger



Este quadro de Van GoghO par de sapatos, 1886, que se encontra no Museu Van Gogh, Amesterdão, foi pintado em Paris. Um colega de Van Gogh disse que este adquiriu os sapatos já com a ideia de retratá-los. Mas ao considerar que estavam limpos demais, calçou-os e fez com eles uma longa caminhada à chuva. Van Gogh, efectivamente, havia comprado o par de sapatos numa feira, que mais parecem umas botas, usou-os por um longo tempo, e depois pintou-os, como alegoria da dura passagem do artista pela vida.

Heidegger publicou, em 1950, um ensaio: “A Origem da Obra de Arte”, que era uma elaboração de uma conferência realizada em Friburgo, em 1935, e onde se debruça sobre o referido quadro de Van Gogh. Heidegger considerou ser o par de sapatos de uma mulher. Ora, este ensaio foi muito criticado por Meyer Schapiro, especialista na obra de Van Gogh, e a que o filósofo Jacques Derrida também deitou achas para a fogueira, alegando que a questão tinha a ver com a compreensão da noção de "reconstituição" na obra de arte. Resumindo a narrativa de Heidegger: “Na origem de qualquer obra de arte, a sua essência é o que é e como é. Segue-se que o artista é a origem da obra, mas ao mesmo tempo também a obra é a origem do artista, na medida em que o pintor, dando origem a uma obra de arte, ele se torna um artista. Qualquer trabalho é antes de tudo uma coisa. A coisa, na tradição filosófica ocidental, é uma hipóstase ou substância.


Heidegger, no texto, propõe uma discussão do conteúdo da arte, do estatuto singular da obra, do despontar da obra de arte a partir e por meio da actividade criadora do artista. Daí o trocadilho. Sendo assim, a verdade acontece na arte através da sua abertura interpretativa. O par de sapatos pintados por Van Gogh surge como recorte da realidade conceptualmente rasgada. Imagens são, portanto, coisas na medida em que as percebemos. Quando o observador se aproxima, o seu campo de visão não se restringe apenas às cores do quadro emoldurado na parede, e muito menos à representação espacial do par de sapatos. Embora não possamos precisar a quem pertencem os sapatos, eles deslocam-se do seu sentido de uso, para, como obra de arte, e até obra poética, encerrar uma outra verdade.

Os sapatos pintados na tela de Van Gogh possuem autonomia artística em qualquer época, embora, na construção dos seus vários significados, não possamos ignorar o seu lugar na memória histórica. A cada olhar lançado, a cada nova leitura, o sentido dado à tela é actualizado, confrontando passado e presente, o mundo interior do observador e o mundo do ente representado. Os sapatos gastos, velhos, presentes no quadro trazem consigo a presença da própria vida vivida, do trabalho árduo, da manhã que se inicia no caminho para o trabalho, do suor, do sol e da chuva, do verão e do inverno. Pelo quadro, que exibe apenas um par de sapatos velhos, é possível conhecer o vasto mundo que deles se acerca. O par de sapatos é uma janela, uma abertura, que mostra os elementos velados de uma vida passada.

Na tela de Van Gogh, à consciência criadora e ao próprio fazer artístico fundem-se, ao mesmo tempo, a subjectividade e a objectividade, a singularidade e a universalidade, a forma e o conteúdo. Não se pode dizer o que é a verdade, mas o acontecimento da verdade. A verdade acontece na relação do observador com a obra, uma relação indirecta do observador com o artista. É uma verdade relacional, e não uma verdade absoluta. Não podemos, conforme Heidegger, precisar a essência das coisas. A arte, em função de sua abertura interpretativa, torna-se concreta, garantindo a sua existência, a sua verdade. A pergunta pela essência da obra de arte nos remeteu à origem da arte. Ficou claro, a partir daí, que a arte se constitui como modo privilegiado de acesso à verdade. A verdade toma a arte como meio de instauração de si mesma. Logo, aquilo que tomamos por essência da obra é a revelação da verdade. A arte, pensada a partir do seu fundamento ontológico, constrói um mundo, permitindo a interdependência entre o mundo e a obra de arte.

Agora, é preciso enfrentar, olhos nos olhos, o valor material da arte que circula como mercadoria sujeita à lei concorrencial da compra e venda. A arte dentro do sistema das relações de produção – coleções particulares, galerias comerciais, consumo e acumulação patrimonial, especulação financeira, especulação leiloeira e especulação contrafactual. Que diria Van Gogh se ressuscitasse para ver os milhões que são dados pelos seus quadros nas licitações dos leilões e outras transações. Não incluí naquela categoria os museus, uma vez que é o local devido das obras de arte, onde elas devem estar não apenas para avaliação crítica e levantamento histórico, mas também para usufruto de todos, no que representa a arte para deleite e florescimento humano. No espaço museológico todas as obras se igualam, como equivalentes de uma mesma actividade humana criadora, e são símbolos perenes do melhor que tem a natureza humana. Fora das obras em exposição não encontramos mais o mundo a que pertenceram e a que deram continuidade.

Ao nivelarmos todas as obras de arte pelo seu aviltamento mercantil, perdemos a temporalidade da arte, ou seja, a existência histórica efectiva de cada obra. O mesmo se diz quando os historiadores da arte transformam as obras em objectos de ciência empírica. Heidegger chamou a atenção para essa factual perda da experiência artística, sobretudo quando transformada pela técnica. Para o filósofo a arte supera toda e qualquer experiência representacional, ela escapa das definições científicas, e até estéticas. Heidegger está interessado no acontecimento da arte tal como ela é capaz de nos abrir novos mundos.

E é assim que Heidegger se serve do par de sapatos de Van Gogh, não para criticar as explicações técnicas da história da arte, mas para dar uma nova visão da pintura como arte na Arte. Que significados podemos tirar de um par de sapatos? Heidegger aborda ao mesmo tempo, para contrastar, o par de sapatos enquanto objecto utilitário, e como imagem representacional de significados, a começar pelo que significam uns sapatos velhos quando já não funcionam. Neste caso, pensamos nos sapatos de uma outra maneira.

Os sapatos, por exemplo, a quem pertenceram? Sempre pertenceram a alguém. Depois a forma e o tamanho. E também prováveis lugares por onde terão andado. Mesmo que tenham sido, no caso em análise, interpretados de forma equivocada por Heidegger ao atribuí-los a uma camponesa, dado que Van Gogh é tradicionalmente tido como um pintor dos campos, Heidegger deste modo já está a ultrapassar a mera visão utilitarista dos sapatos como obra de um sapateiro, ou artesão. E não são os sapatos em si mesmos, mas apenas a sua representação pictórica, e o significado que o pintor lhes quis atribuir, ou que mensagem pretendia dar. O verdadeiro dono dos sapatos também não está lá, mas ao mesmo tempo os sapatos pintados trazem esta questão sobre quem os usou, qual a sua história, porque estão tão gastos, etc.

Heidegger quer superar o pensamento da representação, por isso não vemos na Origem da Obra de Arte elementos subjectivos como génio ou gosto. Esta obra de Heidegger não serviria para fornecer critérios para legitimar a validade estética de obras particulares, como o quadro de Van Gogh. Contudo, os escritos de Heidegger sobre arte, proporcionariam uma compreensão mais autêntica da arte e da poesia, sobretudo, despertariam no leitor uma visão crítica da insuficiência ou incompletude das explicações teóricas nesse campo. Ao criticar a avaliação estética da obra da tradição o filósofo defende que na obra é capaz de pôr-se em obra a verdade do ser.

Meyer Schapiro, defensor da ideia de verdade como adequação, do rigor ao se falar das coisas, não alcança o pensamento de Heidegger. Mas a leitura original da obra de arte feita aqui por Heidegger pretende subverter o tradicional conceito de verdade como representação e adequação ao real. Para Heidegger a obra de arte institui a verdade como desocultação do que permanece impensado na representação. Se havia um limite, no exemplo do quadro de Van Gogh, esse limite irá desfazer-se no carácter historial da obra. Apesar de se admitir que Heidegger não conseguiu resolver o problema da interpretação e do significado, pelo menos acrescentou verdade à essência da obra. O próprio Heidegger esclarece acerca do “notável desvio”, reconhecendo que a colocação inicial da pergunta pela obra fora feita, perguntando não pela obra, mas sim em parte por uma coisa e em parte por uma ideia, no sentido grego ou platónico. Trata-se de um passo no questionamento no qual o importante para Heidegger foi ter chegado a uma primeira percepção de que o carácter de obra de arte não é carácter de coisa, ou ente, mas sim do Ser da coisa. É, por assim dizer, o seu eterno retorno à condição do Ser-aí, ou o Ser-aí-no-mundo (Dasein), o seu eterno tormento, ou angústia existencial.

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