segunda-feira, 8 de junho de 2020

Doença da Reclusão no Alto Xingu e implicações culturais



Os casos de doença em geral, entre os Povos do Xingu, são vistos como resultado de uma conjuntura adversa, social e sobrenatural. Esta forma de perceber a doença, fazendo intervir domínios diversos e conjunturas pessoais e mesmo pondo em jogo elementos da cosmologia e da ordem do mundo, caracteriza a visão holística inerente à maioria das medicinas ditas tradicionais. Não se discutem todos os avanços, em termos de saúde, que a cultura ocidental moderna proporcionou à felicidade humana, com a sua racionalidade biomédica no campo da investigação científica. Mas não é por isso que fiquemos inibidos de tecer considerações críticas em relação a algumas das suas contradições básicas. Uma delas tem a ver com o reducionismo e o seu processo de fragmentação.

 Os estudos e pesquisas que profissionais de saúde e pesquisadores científicos desenvolveram ao longo dos anos no Alto Xingu, levaram-nos a concluir que tinham de ir mais longe nos seus modelos conceptuais e categorias biomédias para darem conta dos factores culturais, políticos, sociais e psicológicos  envolvidos no adoecer das comunidades indígenas. Percepções diferenciadas entre o paciente e o terapeuta sobre o mesmo acontecimento de doença, constituem obstáculos ao sucesso que se pretende alcançar com as nossas intervenções em benefício das populações.

O início da apropriação dos casos da síndrome ou doença da reclusão, por parte dos pesquisadores ocidentais ocorreu num momento histórico da medicina ocidental, quando as discussões a respeito da noção de causalidade das doenças agitavam os meios profissionais e científicos. A propalada noção de "multideterminação (biológica, psicológica, social e cultural) das doenças" passou a difundir-se a partir da chamada "crise da medicina" nos anos 70. Nela incluía-se o movimento da Medicina Geral e Familiar que teve como marco a Declaração de Alma-Ata (OMS, 1978). Esta corrente de ideias imprimiu uma dinâmica de forma particularmente interessante nas representações mentais que os profissionais que actuavam na área do Alto Xingu estavam a ter.

Fundamentalmente, a atenção ao contexto intercultural que médicos e enfermeiras estavam a dar à doença, levou a uma especulação etiológica diversificada que percorreu um espectro variado de "ideologias médicas".  A vertente mais naturalista enaltecia as práticas de fitoterapia tradicionais como naturais e simples e, portanto, eficazes. Por outro lado, para ir ao encontro das representações predominantes (num contexto psicológico, social e político) foi necessária a utilização da categoria "doença da reclusão" para dar conta destas dimensões não cobertas pela categoria biomédica. Finalmente, havia que operar uma síntese, a partir da postura ideológica "científica", em diálogo com as chamadas "medicinas socialmente orientadas". Nesta síntese, encontramos os discursos da causalidade múltipla, que incorpora a antropologia e as ciências sociais, para atender à ideia de "eficácia simbólica".

Os Kuikuro, seguindo as suas representações tradicionais de doença, ligavam-nas às rivalidades intertribais inseridas nas relações de contacto. Neste sentido, não só as imputações etiológicas se voltaram para o campo da feitiçaria, para além de recorrerem às terapêuticos disponíveis. 
No âmbito simbólico da doença da reclusão, as relações com a sociedade ocidental contêm elementos de tal modo sobrenaturais que a colocam no plano da sua cosmologia. Índio e branco são opostos. A categoria branco entre os Kuikuro, foi reinterpretada segundo a lógica tradicional, através da incorporação do universo ocidental à cosmologia do povo Kuikuro. Isto significa que, ao contrário de grupos de contacto recente, em que as identidades sociais de índio e branco são vistas como incorrectas, os Kuikuro passaram a incorporar a sociedade ocidental, incluindo os seus agentes, mas logicamente tinha de ser compatível com a sua visão de mundo. É a realidade simbólica, que tanto em termos cognitivos como afectivos se denomina "eficácia simbólica" e pode possuir implicações relevantes em termos da realidade biológica da doença, tanto fazendo adoecer quanto curar. Assim, podemos concluir que, além da sua existência enquanto fenómeno biológico, a doença da reclusão funciona como um significante, um suporte de múltiplos sentidos pessoais, sociais e cosmológicos. 

Para Os Kuikuro, a doença da reclusão significa uma punição sobrenatural do espírito, por causa de o adolescente ter desrespeitado as regras prescritas. Para os membros do grupo a etiologia mais conclusiva é a feitiçaria, uma etiologia eminentemente social que expressa a predominância de um contexto adverso. A reclusão pubertária faz parte de um complexo de reclusões importante na cultura do Alto Xingu. Parte deste complexo são os momentos liminares que acompanham a menstruação feminina, os períodos antes de lutas intertribais, e de doenças graves. Eles exprimem a crença na construção social do corpo e da pessoa, assim como reafirmam a necessidade de um ascetismo fundamental ao ethos do Alto Xingu que mantém o tecido da sociedade coeso. A reclusão pubertária é certamente aquela que apresenta uma conotação mais forte neste sentido.

Para os indígenas, o contexto da reclusão pubertária reúne expectativas familiares e sociais na capacidade de autocontrolo do adolescente recluso; restrições de actividades sexuais e alimentares consideradas difíceis de serem cumpridas, porém cruciais para a formação das qualidades físicas e morais do adulto e da pessoa. E a presença ameaçadora e incontrolável da punição sobrenatural. 
Uma das alternativas conhecidas, para aqueles que não conseguem alcançar o que está estipulado, é o afastamento. Talvez isto explique a maior incidência da doença na faixa etária entre 18-19 anos. É no ingresso na maioridade que os adolescentes já deveriam ter provas de suas possibilidades como campeões, que lhes propiciaria aspirar à posição de prestígio. Quando os adolescentes falham, as exigências sociais e culturais podem tornar-se insustentáveis. 

Lévi-Strauss enfrentou o problema da eficácia simbólica. A antropologia tem procurado estabelecer relações entre os níveis simbólicos da cultura e os processos endógenos do adoecer e curar. O papel das endorfinas nestes processos têm fornecido um importante esclarecimento acerca dos aspectos simbólicos da cultura e dos fenómenos biológicos.  
A síndrome é a expressão da insatisfação dos adolescentes com as obrigações penosas e perigosas do ritual da reclusão pubertária, que mexe com a sua carreira tradicional de lutador, base do prestígio social e político nesta sociedade em contacto com as outras tribos. Assim, a doença é mais do que um acontecimento meramente biológico. Expressa uma conjuntura adversa em termos pessoais, sociais e políticos. Desta maneira, a imputação dos casos à feitiçaria é o testemunho da importância destas ordens de fenómenos na concepção indígena sobre a doença. 

Os casos de doença da reclusão acabaram por ter efeitos positivos para uma geração que começava a questionar os valores tradicionais e a recusar submeter-se sem resistência às difíceis exigências do ethos tradicional. Ou seja, uma socialização numa "carreira" ligada ao contexto do contacto: a de líderes faccionais mediadores das relações. Instituiu-se uma carreira alternativa à de lutador. Isto introduz a questão do sentido cultural que é atribuído aos acontecimentos de doença. Parte dos casos a que os profissionais de saúde tiveram acesso não era de neuropatia periférica propriamente dita, mas manifestações de ansiedade, podendo incluir a hiperventilação do pânico, ou mesmo uma furunculose irradiando dor para as articulações dos membros inferiores, impedindo a marcha normal. Estas manifestações, denominadas de manifestações psicológicas da doença de reclusão pelos médicos pesquisadores, são a expressão da realidade simbólica da doença para as suas vítimas.

Os povos do Alto Xingu reconhecem a interferência de uma multiplicidade de seres espirituais na vida dos humanos. Há uma profusão de espíritos, desde os de plantas, peixes, animais de pêlo, estrelas, objectos, até os mais importantes, associados às flautas proibidas às mulheres e ao ritual feminino do Yamuricumã. São os espíritos que causam a maioria das doenças, ao aparecerem para os humanos na floresta, e são eles que ajudam os xamãs a curá-las. Os espíritos são invisíveis, só aparecendo para os doentes e os xamãs em transe. Os Kuikuro possuem um sofisticado conhecimento de estrelas e constelações, projetando no céu personagens e acontecimentos míticos. A observação do nascer helíaco de certas estrelas regula actividades produtivas e rituais, estruturando as estações da seca (de maio a outubro) e da chuva (de novembro a abril). Os seres espirituais estão usualmente em toda parte, menos dentro da aldeia, onde surgem apenas em situações extraordinárias de doença, xamanismo e ritual. A sua relação com os humanos ocorre em bases predominantemente individuais, sob a forma básica da doença. Consideram que todas as doenças decorrem de um contacto com o mundo sobrenatural, seja pela actuação de um feiticeiro ou pelo encontro acidental com um espírito.

No Alto Xingu, o indivíduo curado passa a estar em dívida para com o espírito que causou/curou a doença. Ele deve então patrocinar uma cerimónia em que homenageia o espírito por meio de cantos, danças e adornos corporais. Essa cerimónia é o momento em que o grupo doméstico distribui comida a toda a aldeia. O espírito é encarnado pela comunidade, e ambos são alimentados pela família do doente. As cerimónias estão estreitamente vinculadas ao universo mítico. No Alto Xingu existem as festas que recebem o nome de um espírito, geralmente aquele identificado como causador da doença que acometeu o promotor da festa, e que se restringem ao âmbito da aldeia. Os participantes activos desse tipo de ritual - dançarinos, cantores e músicos - representam visual ou musicalmente esse espírito.

As narrativas tradicionais, que os brancos chamam de ‘mitos’ e que os Kuikuro chamam de akinhá ekugu (narrativas ‘verdadeiras’), contam como o universo existe tal como ele é e explicam a origem de cantos, festas (rituais), bens culturais, plantas cultivadas, categorias de seres, etc. Tudo o que existe e merece explicação está associado a uma ou mais narrativas. Giti, o Sol, é o herói cultural por excelência, criador juntamente com o seu irmão gémeo Aulukuma (Lua). Os demiurgos, contudo, incluem uma galeria de antepassados de Sol e Lua e são eles os descendentes do casamento entre Atsiji (Morcego), e Uhaku (uma árvore). O tempo da criação era (e é) o tempo em que humanos e não humanos se comunicavam, em que todos falavam, em que os humanos viviam no meio dos itseke. Estes são seres sobrenaturais que povoam a floresta e o fundo das águas; são perigosos, sedutores, causam doença e morte, têm poderes de se transformar em humanos ou animais. Muitos animais e até artefactos têm uma existência real em acto, adequada a uma existência monstruosa, excessiva, como itseke. Podem ser, por outro lado, 
hüati (espíritos auxiliares dos xamãs)  em seu papel de curadores, em suas visões e viagens que os outros não podem ver nem experimentar. Somente os xamãs têm o poder de se relacionar, perigosamente, com os itseke. Humanos e itseke podem pôr-se em contacto através do sonho ou da doença.

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