sexta-feira, 26 de junho de 2020

Diálogo entre Civilizações: orgulho e utopia


Apesar de a História ser um livro aberto que está permanentemente a ser reescrito, o seu único apoio ainda devem ser os factos tanto quanto possível. Mas deve-se atender que factos e realidade não são a mesma coisa. A realidade é tudo o que há, antes de nos debruçarmos sobre ela com a nossa linguagem. Mas nem tudo o que há é captado pela linguagem. Quando um místico nos fala no inefável, é disso que ele nos está a falar. Inefável, literalmente significa que não se pode exprimir por palavras. E linguagem aqui, bem entendido, é todo um sistema mais vasto que a língua, a língua que falamos, seja ela a língua nativa, sejam outras línguas. A língua nativa é normalmente a língua dos sonhos e preferencial do pensamento. Pensamos, comunicamos, falamos, e até sentimos os sentimentos, passe a redundância. Por conseguinte: factos - é tudo aquilo que cabe dentro da linguagem de homens e mulheres. A linguagem é um campo simbólico onde circulam os factos.

Ressalvados os mal-entendidos em que a linguagem é fértil, é difícil anular os efeitos entre preconceito e suscetibilidade na análise histórica dos factos, porque se no diálogo temos de um lado o legítimo orgulho daqueles que glorificam os feitos dos seus antepassados, do outro lado temos aqueles que, não tendo um passado histórico do qual se possam orgulhar, não porque não o tenham, mas porque a linguagem não a inseriu na História, é legítima a utopia de um dia também se sentirem orgulhosos.

As sociedades europeias e a cultura que elas consomem ainda se baseiam na lei das certezas, em que a ciência progride cada vez mais no sentido da verdade absoluta, uma só verdade. Assim, a abertura a mundos possíveis nem sequer é imaginável. E essa certeza ocidental, que é a lei do mundo, constitui o pecado original da modernidade, porque quer queiramos, quer não, nós os ocidentais, temos de admitir que tanto o mundo como o pensamento não são “Aquela Máquina”. O mundo e o pensamento são instáveis, são do domínio do Caos. Um Universo sem Caos seria um Universo morto. 





A Cultura é por natureza instável, porque instável também é a natureza humana. Mas é na cultura que as pessoas reveem a sua identidade. Portanto os europeus reveem-se na sua cultura, no seu estilo de vida que tem como atributos principais a democracia, a liberdade e a justiça. E é da liberdade que emerge a Arte e a Ciência. O povo que se orgulha da sua cultura dá exemplo de unidade, mesura, entendimento e reflexão sobre todas as coisas. E não exatamente uma prova de superioridade moral ou intelectual, ou outras excentricidades mentais dos "artistas".

A utopia, que se estendeu à funcionalização da União Europeia, é uma utopia mundialista, numa deriva anti-identitária que se opõe ao patriotismo identitário das nações. É uma utopia inspirada nas teses de Habermas que consistem em separar a ideia de cidadania da de nação e de povo, ancorada numa constituição universalista. Uma Europa não baseada no seu património cultural próprio, mas no princípio abstrato de uma cidadania transnacional cosmopolita, sem limites estabelecidos e sem raízes.

Toda a sociedade minoritária vive como que ameaçada pela consciência da diferença; consciência que, ao reduzir-se ao seu argumento mítico, se envolve em conflitos de marginalidade. O mundo da Arte é dos mais sensíveis a esta redução, dado que por natureza, pela sua liturgia estética, e pelos seus rituais impregnados de contradição, estão condenados à marginalidade das minorias. E é como parte duma sociedade minoritária que a comunidade artística actua de maneira provocadora, porque sabe que toda a oposição, ao exercer um atrativo de teor afrodisíaco irresistível, é incentivadora de uma temeridade paladínica. E essa atitude tem um efeito paradoxal, porque a sua aparente atratividade contém, na verdade, uma vontade de exclusão. Em boa verdade, é da genética do “artista” não querer ser assimilado. Toda a marginalidade inclui o desejo de evitar a reconciliação. Não porque ela contenha algo de pejorativo, mas porque a reconciliação implica conceder, ceder a consensos que fragilizam a razão de ser do artista. Não seria preciso dar aqui exemplos, mas posso evocar um Gil Vicente, um Hieronymus Bosch, ou um Caravaggio.

A integração das minorias oferece um problema cruel. Seria desprezar a realidade do ser humano consentirmos que as diversas opressões produzidas na História fossem apenas obra dum obscurantismo e da dureza do coração dos homens. As épocas de maior perturbação no campo sociológico – escravatura, racismo, sexismo – corresponderam a movimentos paralelos de grande desenvolvimento cultural.

Todas as minorias conhecem um processo de marginalidade, independentemente das causas que queiramos apurar. Mas uma que podemos identificar é o conservadorismo das coletividades conformistas, pouco dadas à mudança. O afrontamento muitas vezes é evitado com slogans “palavra-divisa”, como por exemplo, a defesa da democracia. Porque uma coisa é certa, as minorias sociais funcionam como factores de inovação. E a inovação é o ingrediente principal das rupturas de status quo. E assim, o resultado é sempre imprevisível numa cadeia de tentativas e frustrações.

É claro que há momentos em que as sociedades passam por tempos de acalmia, em que os artistas beneficiam das correntes piedosas que atingem temporariamente todas as sociedades. Como dizia Agustina Bessa Luís: “a piedade é uma fé sem mística. Se pudéssemos traçar uma linha imaginária para qualificar a evolução histórica da cultura, encontraríamos um dado radical – a evolução histórica ignora o dilema. Mas para o indivíduo que actua o dilema existe. A cultura tem uma dupla existência. O dilema faz nascer a ética. Eis onde começa a linha imaginária que põe a escolha duma cultura.”

A Cultura não é apenas a emancipação do Homem face à Natureza. Relembro que a opção das maiúsculas nos termos [Homem e Natureza] tem como objetivo satisfazer o aplanamento homem/mulher; e para chamar a atenção que Natureza com maiúscula é maior que a matéria de que é feita a sua parte material. A Cultura é uma herança. E é a consciência dessa herança que determina as continuidades e as perseveranças sobre aquilo a que chamamos ética. É no diálogo entre orgulho e utopia que se coloca o dilema da escolha, numa dialética entre o bem e o mal.

Para abordar a questão da Cultura, não podia ter deixado de aflorar, pelo menos no início, a importância da língua em que as culturas comunicam. É muitas vezes ela a marca principal de uma determinada identidade cultural. A par das crenças religiosas, a língua é a principal fonte da sabedoria que muitos povos almejam alcançar como utopia das utopias. É através da língua que uma sociedade se pode aglutinar sem grandes equívocas interpretativos que são a fonte principal da desconfiança do Outro. É na língua que cada homo sapiens sapiens sacer, nos termos de Giorgio Agamben, se encontra consigo mesmo. Sacer remete para sagrado, mas numa interpretação muito própria de Giorgio Agamben. Descobrir com ela as qualidades objetivas do Universo já é outra coisa. É coisa para um outro homo sapiens sapiens, com o acrescento de ciborgue. A língua se cifra no simbolismo dos arquétipos. E é tanto mais rica e expressiva quanto as imagens colectivas do inconsciente são despertadas para os laços morais entre as pessoas. É na língua-mãe, ou língua nativa, que apertam os laços afetivos entre as pessoas, a língua como música melodiosa que a criança ouve enquanto mama do leite materno.

A língua na corrente das civilizações como veículo dos ritos que se conhecem à distância no lampejo de um vocábulo, na derivante de um significado, serve para congregar a acção conjunta de um povo na consolidação da sua identidade duradoura. Parafraseando de novo Agustina, a língua portuguesa é um mundo de artes e de funções, onde se alojam moradas que alimentam os dialetos que contam as suas lendas. Uma língua quanto mais aperfeiçoada como um ser coletivo, mais garantias oferece de desenvolver um estilo.


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