quarta-feira, 3 de junho de 2020

Aos ideólogos e espíritos agitados de todos os quadrantes



Que incrível aventura, quando consideramos o passado da humanidade desde a assunção da postura erecta e marcha bípede dos nossos antepassados há vários milhões de anos em África. E as evoluções simultaneamente contínuas e descontínuas, que desenvolveram a mão e o cérebro. E a linguagem de dupla articulação. E a diáspora de pequenas sociedades arcaicas sem agricultura, sem cidades, sem Estados. Podemos tirar o primata da selva, mas não a selva do primata. Somos obcecados pela vida em bando, desde o tempo em que deixamos os nossos ancestrais, a saltar de galho em galho, para seguirmos a nossa vida.


Quando uma bonobo chamada Kuni viu um estorninho cair na sua jaula, no Jardim Zoológico de Twycross, na Grã-Bretanha, foi ajudá-lo. Pegou nele com delicadeza e pô-lo de pé. Ao ver que ele não se mexia, deu-lhe um piparote, mas ele só agitou as asas. Kuni então subiu ao topo da árvore mais alta com o estorninho, usando apenas as pernas a fim de ter as mãos livres para segurá-lo. Cuidadosamente, abriu-lhe as asas segurando-as entre os seus dedos, e lançou-o para voar. Mas ele não ultrapassou a barreira. Kuni desceu da árvore e então ficou ao lado do pássaro, protegendo-o. No fim do dia, a ave já tinha recuperado, e voou, desaparecendo dali.

O modo como Kuni lidou com a ave foi diferente de qualquer coisa que ela teria feito para ajudar outro primata. Em vez de seguir algum tipo de comportamento automático, ela adaptou a sua ajuda às características da ave. Provavelmente, os pássaros que se tinha habituado a ver passar perto da sua jaula deram-lhe uma ideia do tipo de ajuda que seria necessário. Esse tipo de empatia quase nunca é observado em animais, pois depende da capacidade de imaginar as circunstâncias do outro. Devíamos ficar felizes com a possibilidade de a empatia ser parte da nossa herança primata, mas não ter a arrogância de dizer: “Vejam como o macaco tomou essa atitude, que mais parecia um ser humano”. 



Em 16 de agosto de 1996, toda a gente ficou admirada, quando Binti Jua, uma gorila de oito anos, ajudou um menino de três anos que caíra de uma altura de quase seis metros dentro da jaula dos primatas do Zoológico Brookfield, em Chicago. Binti Jua reagiu imediatamente: pegou o menino nos braços e o levou-o para um lugar seguro. Sentou-se num tronco perto de água com o menino no colo, afagando-o delicadamente com as costas da mão. Depois levou-o aos funcionários do zoológico, que já estavam à espera. Esse ato simples de solidariedade, gravado em vídeo e exibido no mundo inteiro, sensibilizou muitos corações, e Binti foi aclamada como heroína. Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, um grande primata não humano figurou em discursos de políticos importantes, que citaram a gorila como modelo de compaixão. 


Devíamos fartar-nos de ver políticos que exibem a Bíblia ou batem no peito para a televisão. Pelos vistos, eles não. Poderíamos ridicularizar todo esse comportamento como sendo de macaco, não fosse o facto de os nossos parentes levarem a mal. Não é apenas poder e sexo, senhor . . . solidariedade e empatia são tão ou mais importantes. Porém, é raro certa gente ouvir com atenção o que dizem cientistas decentes dizerem que a solidariedade é uma parte do que herdamos dos nossos ancestrais primatas. Somos muito mais propensos a culpar a natureza pelo que não gostamos em nós do que a dar-lhe crédito pelo que apreciamos. Um ou outro cientista tem-se precipitado a dizer que temos genes egoístas, que a bondade humana é dissimulação e que agimos moralmente só para impressionar os outros. Bom, ainda há cientistas que, epistemicamente falando, são positivistas. Mas, os positivistas do século XIX, enganaram-se ao dizer que com a secularização, coisas como aquelas de políticos exibirem a Bíblia, ou entrarem num templo de culto para impressionar os eleitores, que não iria captar nenhum eleitor no século XXI. Os físicos das partículas do século XX também acreditaram nisso. Mas os neurocientistas do século XXI já não acreditam que a secularização, ou seja, o Estado laico com a separação da política da religião, iria transformar as igrejas em museus. Deus não morreu, como disse Nietzsche. E Michel Foucalt acrescentou que o Homem também tinha morrido.  Mas quem morreu foi o "puro observador".

O rumo do que ainda se está a passar na América, não é claro. Mas pelo que aquele monstro está a insinuar, que foram os outros os assassinos, é muito preocupante. Só se forem os assassinos de Deus, bem entendido, para que o problema seja um problema da Culpa. É a isto que Peter Sloterdijk chama: Crítica da Razão Cínica - na medida em que tal matéria de crime não tem sido perseguida oficialmente, nem pelos procuradores públicos, nem pelos epistemólogos da metafísica paleoeuropeia, que não confirmaram a existência de "anjos". Pelo contrário, longe de existirem anjos, existem humanos, demasiadamente humanos, lançados na arena da realpolitik.

Este é o incurável fenómeno do fanático, ainda que a racionalidade nos tenha entrado na sala por uma ruptura abrupta com Aristóteles, perpetrada pelo senhor Renato Descartes. Todo o fanático é como todo aquele que vive encerrado numa ideologia. “O inferno são os outros”, disse Sartre. Sou desse tempo. Vi-o no átrio da Faculdade de Ciências do Porto fazer-nos perguntas acerca da Revolução dos Cravos. E ele zangado por não obter respostas.

Ainda há muito a percorrer: captar a energia solar como fazem as plantas com a fotossíntese clorofilina; encontrar outros seres conscientes no Universo, com quem desabafar, e dizer "uau ... a Terra não é a única!?"; como a possibilidade de saber se a nossa realidade de espaço-tempo não está imersa numa realidade sem espaço nem tempo. Não eu, não tu, mas um outro qualquer. É claro, quanto antes. Antes que o Sol se apague. Dizem que só faltam seis mil milhões de anos :)

Mas, voltando à "natureza humana", a continuação da evolução para novos estádios de simbiose entre o humano e as suas produções técnicas (o Ciborgue) - o prolongamento da vida humana por intervenção genética e próteses cognitivas no cérebro: para mim não! Porque levantaria enormes problemas, além dos problemas demográficos, os problemas da velhice. Mas já pode estar acessível ao virar da esquina de um nosso tetraneto. Porque não?


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