sábado, 13 de junho de 2020

A inovação em estado líquido



Bustos antigos numa paisagem minimalista, perspetivas arquitetónicas flutuando num céu verde e amarelo... A pintura de Giorgio de Chirico é mística, mesmo metafísica, como a escola epónima que o une com os seus colegas artistas Carrà, Morandi e Savinio. Nascido em Tessaly em 1888, Giorgio de Chirico viajou ao longo da sua vida entre a Grécia, França e Itália. Foi uma fonte de fascínio para surrealistas como André Breton, Paul Éluard e Jean Paulhan.

Num estado sólido, os padrões têm estabilidade, mas são incapazes de mudança. Uma rede líquida, porém, cria um ambiente mais promissor para o sistema explorar novas configurações. Elas podem emergir por meio de conexões aleatórias formadas entre as moléculas. De qualquer maneira, o sistema líquido, é mais estável que o sistema gasoso, cuja volatilidade é destruidora das próprias criações. Por exemplo: os átomos de carbono, a rodopiar na sopa primordial, constituíram uma rede líquida de alta densidade; ou os milhares de milhões de neurónios que temos no nosso cérebro formam outro tipo de rede líquida densamente interconectada, sempre explorando novos padrões, mas também capaz de preservar estruturas úteis, por longos períodos de tempo. 

Embora não se saiba como aconteceram as coisas antes de haver propriamente vida na Terra, e se calhar nunca se irá saber, uma coisa parece certa: a origem da vida na Terra resultou de uma sequência de acontecimentos químicos sujeitos a leis físico-químicas, e obviamente, à dinâmica não-linear dos sistemas complexos. Mas focando agora apenas a história humana, como espécie, o homo sapiens vinha tendo um desempenho bastante bom nos milhões de anos que antecederam o nascimento da agricultura. Deixando agora de lado a questão da fala – ainda há bastantes divergências quanto ao tempo do surgimento da linguagem no homo sapiens, há pelo menos vestígios, com mais de um milhão de anos, de instrumentos burilados na pedra para caçar. 

As cidades vieram muito mais tarde, até o sapiens se estabelecer num lugar e parar para contemplar o paraíso. E é assim que surge a invenção da agricultura. Para isso era fundamental água potável. E os rios tínham-na com fartura, só era necessário controlar os caudais para não inundar demais as sementeiras. Foi preciso inventar, portanto, uma rede líquida de alta densidade. O que aconteceu quando o fizeram? Para compreender a magnitude da mudança, precisamos analisá-la em perspectiva, medindo a velocidade da inovação antes que as primeiras cidades fossem estabelecidas. Vamos assim saltar por cima de 70 mil anos de inovação numa única linha do tempo, para chegar a Jericó por volta de 10.000 anos a.C., que se convencionou atribuir-lhe o estatuto de a cidade mais antiga do mundo de entre as que ainda hoje existem habitadas.



Jericó, assim como Biblos e Damasco, que também pedem meças para competir com Jericó,  são as cidades mais antigas que se mantiveram ininterruptamente habitadas até aos dias de hoje. É claro que: uma coisa é haver no local, onde essas cidades existem hoje, vestígios arqueológicos de assentamento humano remontando a cerca de 8 a 9 mil anos a.C.; outra coisa é a partir de que época esses assentamentos merecem o estatuto de cidade. E, por outro lado, há países que reivindicam no seu território o assentamento mais antigo merecendo o estatuto de cidade. É o caso da Turquia, como a cidade de Çatalhüyük, um assentamento neolítico muito grande da Anatólia datado de cerca de 6.700 a.C. Mostra um estágio cultural refinado, com casas de tijolos crus nas quais se entrava pelo tecto, possivelmente por uma escada de madeira. O trânsito fazia-se por cima das casas, já que não havia ruas entre elas.

Olhar para o passado sob essa perspectiva torna uma coisa clara: em algum momento, menos de mil anos depois de as primeiras cidades apareceram, os seres humanos inventaram uma maneira inteiramente nova de viver. Há uma forte correlação entre aqueles povoados densos e o espectacular e repentino aumento na taxa de inovação social. Mas haverá uma relação causal entre uma coisa e outra? Não podemos responder, porque não sabemos o suficiente sobre as histórias específicas dessas inovações para comprovar o quanto o contexto urbano foi essencial para a sua criação. Mas as evidências circunstanciais são fortes.

É bem provável que algum caçador-colector engenhoso tenha deparado com as propriedades da cinza, misturada com gordura animal, para higienizar. Ou sonhado em construir aquedutos naquelas longas eras que antecederam o surgimento das cidades, mas simplesmente não temos nenhum registo dessa aventura. O problema é exatamente a falta de registo, para obtermos as ditas provas, à luz das exigências da ciência, o melhor meio que o homo sapiens inventou para saber coisas de verdade.

Bem, hoje são os próprios cientistas a afirmar que numa 'rede caótica', de baixa densidade, as ideias surgem e desaparecem. Ao passo que nas 'redes líquidas densas' dos povoados com o estatuto de cidade, as boas ideias obviamente acabavam por ter uma propensão natural para saltar da cabeça e entrar em circulação. E mesmo que marcassem passo ainda durante algum tempo depois da sua emergência, podiam ter continuidade na memória das gerações seguintes. Redes líquidas de alta densidade, como diria Zygmunt Bauman, tornam mais vezes provável não apenas a ocorrência de inovações, mas também mais fácil de essas inovações serem guardadas e não perdidas. As primeiras cidades, que surgiram ainda antes da invenção da escrita, foram certamente o contexto ideal para o seu surgimento. E assim a rede líquida das cidades ia preservando a sabedoria acumulada da cultura humana. E o padrão da rede, foi-se repetindo em pequenos passos, que mal se notavam, quer na actividade comercial, quer na actividade artística. Mais tarde, com a ascensão das redes urbanas, e das Universidades, como foi o caso da Europa a partir do século XII, operaram-se novos ritmos de crescimento que nunca mais pararam até aos nossos dias.

Mais uma vez, a ascensão de redes urbanas desencadeou um impressionante aumento no fluxo de boas ideias. Não é à toa que o norte da Itália era a região mais urbanizada da Europa durante os séculos XIV e XV. Mas, num sentido fundamental, o padrão da inovação do Renascimento difere do das primeiras cidades. Miguel Ângelo ou Leonardo da Vinci, ou Brunelleschi, eram herdeiros de uma cultura medieval que, apesar de sofrer de um excesso de ordem, tinha a patente das Universidades. Se às tribos dispersas de caçadores-colectores podemos aplicar a metáfora cultural de um estado gasoso, caótico, à cultura do Renascimento, que trouxe para fora dos mosteiros o grande acervo da informação escrita coligida ao longo dos anos invernosos medievais, aplica-se a metáfora do estado líquido. Já que na Idade Média dos claustros ainda estávamos num estado sólido, com os monges enclausurados a passar a limpo os escritos antigos. A informação, ao romper esses grilhões dos claustros, as ideias começaram de novo a circular de maneira mais livre através de uma população mais ampla e conectada,. Os grandes inovadores italianos incutiram uma vida nova no espírito europeu.

Há muito que os historiadores notaram que o florescimento artístico e científico do Renascimento tinha conexão com a formação do capitalismo mercantil na região, que, obviamente, envolveu o seu próprio conjunto de inovações nos negócios bancários, na contabilidade e nos seguros. Não há dúvida de que o capitalismo acelerou o crescimento das cidades italianas e criou excedentes de riqueza que foram depois utilizados para patrocinar artistas e arquitectos. Mas a relação entre capitalismo e inovação é mais subtil do que muitas vezes supomos. Por um lado, é verdade que livres mercados introduzem novas formas de competição e acumulação de capital que impulsionam a criação e a adoção de novas ideias. Mas, por outro lado, os mercados não deveriam ser definidos apenas em termos de motivação de lucro.

A pedra angular de toda a contabilidade financeira, a inovação da dupla entrada, que consiste em registar todo o evento financeiro em dois livros (um reflectindo débito, o outro, crédito), permitiu aos comerciantes acompanharem a saúde financeira do seu negócio com uma precisão sem paralelo. Codificada pela primeira vez pelo monge franciscano e matemático Luca Pacioli, em 1494, o método da dupla entrada tinha sido usado havia pelo menos dois séculos por banqueiros e comerciantes italianos. Não sabemos se ele nasceu na mente de um único visionário, ou se a ideia irrompeu ao mesmo tempo nas mentes de múltiplos empresários, ou se foi transmitida por pioneiros islâmicos que poderiam ter experimentado a técnica séculos antes. Sejam quais forem as suas raízes, a técnica tornou-se usual pela primeira vez nas capitais comerciais da Itália – Génova, Veneza e Florença – quando os comerciantes do início do Renascimento compartilharam intuições sobre a melhor maneira de administrar as suas finanças. 

E assim surgiu o termo "liquidez" na gíria financeira. Um dos instrumentos essenciais na criação do capitalismo moderno parece ter sido desenvolvido de maneira colectiva, circulando através das redes líquidas das cidades italianas. A contabilidade de dupla entrada tornou muito mais fácil controlar o que se possuía, mas ninguém era dono da própria contabilidade de dupla entrada. A ideia era poderosa demais para não contagiar outras mentes próximas. O que torna a história da dupla entrada tão fascinante é o simples facto de que, apesar do imenso valor da técnica para uma empresa capitalista, ninguém parece ter reivindicado a sua autoria. A contabilidade de dupla entrada ilustra um princípio essencial do surgimento dos mercados: quando os sistemas económicos passam das estruturas feudais para as formas nascentes do capitalismo moderno, tornam-se menos hierárquicos e mais interconectados. Uma sociedade organizada em torno de mercados, em vez de castelos e claustros. Decisões distribuídas por uma rede mais ampla de cabeças pensantes. 

A nova matemática amplificou a capacidade de inovação do mercado. E mil cabeças a pensar são muito mais criativas do que apenas uma no castelo feudal. Cidades e mercados recrutam mais mentes para o projecto colectivo. E quanto mais vasos comunicantes houver entre essas mentes, mais inovações úteis terão probabilidade de aparecer e se espalhar.  Mas a inovação em rede não tem de passar por um “cérebro global” ou uma “mente-colmeia”. Uma mente de rebanho nas grandes colectividades raramente é capaz de verdadeira criatividade ou inovação. Quando as primeiras cidades-estado emergiram, elas não criaram de forma mágica uma consciência de grupo mais elevada. O que fizeram foi simplesmente ampliar a circulação de ideias que podiam ser compartilhadas e espalhadas. Não se trata da "sabedoria da multidão", mas da sabedoria de alguém no meio de uma multidão e que se espalha como um vírus. A inteligência, de qualquer maneira, não está na rede em si. São as pessoas que ficam mais inteligentes por estarem conectadas umas com as outras.

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