segunda-feira, 1 de junho de 2020

Empatia: “o corpo todo fala, os abraços pedem mais do que os braços”


Alertando-me desde já para não cair em idolatrias, e não esquecendo que este bilhete é escrito na orla de influência de outros textos, bem que podia ser metido dentro de uma garrafa vazia e atirada à água em alto mar, não importando se só viesse a ser lida passados cem anos. Continuaria actual. Como sabemos, a empatia tem um valor antiquíssimo. Mas a empatia de Mia Couto é magnética e musical. Na empatia é importante sermos afectados, sermos tocados, sentirmos a experiência da epifania. Mas que essa experiência não fique encerrada no sentimento idólatra. Metaforicamente falando: não fique encerrada dentro da garrafa.

No combate de saúde pública contra o SARS-CoV-2, como diz António Emílio Couto, na qualidade de biólogo, o nome de baptismo do escritor Mia Couto: “Há questões de natureza cultural que devem ser pensadas. Não se trata de ignorância, mas há conceitos diversos do que é doença, do que é tratar alguém. O que significa nessa outra cultura ser assintomático? Como se entende que, perante uma doença que gerou tanto ruído, se mande para casa todos os que estão doentes?” 



Max Brod, amigo e confidente de Kafka, foi o responsável pela edição das obras que o escritor queria ver destruídas após a sua morte. Walter Benjamim, muito humoristicamente, disse que Kafka fez o pedido à única pessoa que ele sabia que não iria obedecer. Max Brod tinha uma relação de veneração, um pouco patética, com a obra de Kafka, considerando-a própria de um Santo. Ora, para Benjamin, a santidade é uma categoria que não se deve aplicar noutros contextos da vida. O acto da escrita não confere a ninguém o estatuto de santidade. Além disso, a obra de Kafka está longe de exsudar tal categoria. A contemplação das grandes coisas convém comtemplá-las no recolhimento do nosso espaço. Porque não somos nós que entramos nelas, são elas que entram nas nossas vidas. E é isso que se passa comigo em relação a Mia Couto.

Diz Mia Couto, quero dizer, António Emílo Couto: "Existe uma forma muito simplificada de olhar a chamada medicina tradicional. Os “curandeiros” não podem ser equiparados aos médicos e enfermeiros da medicina moderna. A doença não é vista da mesma maneira nesses dois mundos. Buscam-se na medicina tradicional não o controlo, mas equilíbrios e harmonias. É preciso aprender a conversar com o vírus, mais do que eliminá-lo". . .
O importante é alcançarmos um conhecimento mais vasto e orgânico desse universo habitado pelos microrganismos. Foram feitos progressos muito importantes, mas muito recentes. Existe ainda uma visão muito centrada e narcisista na nossa própria espécie, continuamos a acreditar que somos o centro e o topo da evolução biológica. Temos uma crença quase cega no poder da tecnologia. Os vírus moram dentro de nós. Não são intrusos, são parte da nossa mais funda intimidade. Dez por cento do nosso material genético é composto por elementos virais. Se nos quiséssemos “purificar”, no sentido de sermos apenas feitos de células e genes humanos, seriamos reduzidos à não-existência.


Os vírus não se viram contra nós nem contra ninguém. O seu modo de existir é usar a maquinaria de outras células. Fazem isso desde o início da vida. Foram e são um dos principais e mais rápidos criadores de diversidade, uma espécie de carteiros que entregam não apenas a carta, mas se entregam a si mesmos. Alguns esquecem-se de sair da casa do destinatário.

Estamos a adiar a imunidade por via natural. Mas esse adiamento tem um preço. Estamos a interferir no processo natural de evolução do vírus e da doença. Mas é preciso que não continuemos a pensar que somos os legítimos mandatários para comandar estes fenómenos. Como dizem os curandeiros de Moçambique: tudo ficará bem quando aprendermos a conversar com esta criatura. Vírus e bactérias, a que chamamos com alguma arrogância micróbios, estão há mais de três mil milhões de anos a produzir este milagre que é a vida.


Empatizar é lançar pontes. Kant, na Crítica da Faculdade de Julgar, diz que as pontes servem para passar por cima de abismos ou de grandes extensões de água cuja travessia é difícil. A ponte é um instrumento humano muito importante no que diz respeito à capacidade de atravessar aquilo que diretamente não se pode vencer. Do ponto de vista simbólico tem a ver com a capacidade de ligar o dissemelhante, o heterogéneo, o descontínuo, as irredutíveis margens, mas sem produzir a ilusão de que pela ligação se encontrou o semelhante. 

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