quinta-feira, 25 de junho de 2020

A iconoclastia e os iconoclastas 2020


Este texto foi inspirado depois de ter lido a crónica de Henrique Monteiro no Expresso do dia 24 de junho, falando dos iconoclastas simplistas históricos, a propósito da turba que nos últimos dias tem varrido o mundo a derrubar as estátuas icónicas dos "brancos", movimentada por activistas antirracistas do espectro mais extremista.
[…] A académica e especialista em racismo (que é tão especialista que acha que é impossível um branco não ser racista) Robin DiAngelo, professora de ‘Estudos de Branquitude’ (em inglês ‘Whiteness Studies’), afirma que o racismo estrutural ou sistémico está em todos os brancos, e que apenas os brancos são racistas. […] Por isso é de apoiar com todas as forças o derrube não só desse Churchill e desse Padre António Vieira (cuja estátua, por motivos estéticos, poderia levar a que se derrubasse também a do cauteleiro na mesma praça) como, sobretudo, a de Voltaire em Paris, que ficou pintada de vermelho porque ele beneficiou do tráfico negreiro. Basta, aliás, ver que ele foi amigo do peito de Benjamin Franklin, que, sendo um bandido, se tornou importante na independência americana, só para disfarçar. A História é muito simples. Há os que vão na corrente – a nossa – e depois existem os outros, que são para deitar abaixo. A história do racismo é uma estratégia de poder como todas, mas infelizmente nada democrática. Aliás, copiada dos totalitarismos. Enfim, a iconoclastia não tinha estes píncaros desde o séc. VIII, quando os bizantinos começaram a destruir símbolos religiosos. […] Henrique Monteiro

Consultando o dicionário, a doutrina bizantina dos séculos VIII e IX começou por repudiar a representação e o culto de imagens sagradas. Assim, o iconoclasmo passou a ser qualquer doutrina ou movimento que se opunha ao culto de imagens, destruindo estátuas e imagens religiosas. E metaforicamente, passou a ser a atitude de quem ataca ou rejeita valores, práticas, crenças ou instituições estabelecidas. 

O Mundo do Silêncio, realizado pelo célebre Comandante Cousteau e Louis Malle em 1956, foi um filme que ganhou um Óscar para melhor documentário e a Palma de Ouro de Cannes. O filme retrata uma expedição do navio Calypso no Mediterrâneo. Este filme vem a propósito do que vou escrever a seguir. Se o filme fosse de hoje, ou estriasse hoje, não sei o que aconteceria, mas de certeza que não receberia nenhum prémio, antes pelo contrário, seria muito criticado. A equipa de Cousteau mata acidentalmente duas baleias, e num recife uma explosão, com propósitos científicos, causa a morte de um número incontável de peixes. Além disso investem sobre os tubarões que se aproximam de um bebé-baleia, arrastando-os para bordo e batendo-lhes até à morte, com feroz prazer selvagem e repetindo que “ninguém gosta de tubarões”. Há certamente belas imagens de golfinhos e uma bela valsa com um cherne, que inspirou Alexandre O’Neill, para o poema “Sigamos o cherne!”: 

Sigamos o cherne, minha amiga!
Desçamos ao fundo do desejo
Atrás de muito mais que a fantasia
E aceitemos, até, do cherne um beijo,
Senão já com amor, com alegria…
Em cada um de nós circula o cherne,
Quase sempre mentido e olvidado.
Em água silenciosa de passado
Circula o cherne: traído
Peixe recalcado…

Sigamos, pois, o cherne, antes que venha,
Já morto, boiar ao lume de água,
Nos olhos rasos de água,
Quando mentido o cherne a vida inteira,
Não somos mais que solidão e mágoa…

A identificação de um indivíduo animal – exactamente como na arte, embora de um modo mais arcaico e espontâneo – é o modo como relacionamos entre si as formas, as cores e os movimentos e nessa relação descobrimos uma secreta harmonia. E não há como essa identificação para nos dar o sentimento da existência. Não há nenhum animal que, cuidadosamente observado, não nos dê esse sentimento. Não por intimidade, mas pelo seu exacto contrário: a distância. A distância para com um mundo que não é o nosso e nunca poderá ser. É isso que fascina. É a distância, não a proximidade, inclusive a proximidade dos animais domésticos. É como se a nossa existência, por não podermos fazer dela o que quisermos, até porque nem sequer a conseguimos compreender, nos suscitasse um mal-estar de algum modo insuportável. E é verdade que contemplar também cansa. A certa altura, alguma acção é necessária. Até um membro fundador da Liga dos Portugueses Contemplativos o reconhece sem dificuldades. Mas para isso temos a nossa querida humanidade. É o que diz o poema de Alexandre O’Neill. 

E como isto anda, de facto, tudo ligado, continuo a avançar com novos encadeamentos, na medida em que Antonio Tabucchi se inspira no poema de O’Neill “Sigamos o Cherne”, para construir a narrativa de um conto intitulado: “Noite, mar ou distância”, que faz parte da publicação “O Anjo Negro”, um conjunto de seis contos, que de algum modo retratam o lado negro da alma humana: a cobardia, a traição, a prepotência e a vaidade - e do qual deixo aqui uma pequena amostra. Este conto passa-se em Lisboa, em 1969, uma Lisboa sombria, decrépita e pidesca, da ditadura salazarenta:
[...] E foi nessa altura que apareceu o cherne. Era um cherne gordo, luzidio, oleoso, que saltava de profundezas tão escuras como a escuridão do automóvel que ameaçava as vítimas daquela noite: da janela do carro, junto com uma mão inchada de dedos grossos apareceu a cabeça de um cherne que ofegava. Que estranho, uma mão e uma cabeça de cherne à janela de um automóvel na rua D. Pedro V numa noite de outubro de mil novecentos e sessenta e nove. […] Não se faça de herói, respondeu o homem, o meu dever é dar lições de vida, e se o senhor já conhece a lição de cor, reveja-a, que só lhe faz bem. Falou assim, mas pareceu mais calmo, menos histérico, e de qualquer modo agora tratava Tadeus por senhor e nesse momento voltou a guardar a pistola no bolso e disse a Tiago que fosse buscar os documentos, porque evidentemente conhecia o carro de Tiago. Tiago voltou e disse: aqui estão. O homem examinou-os com atenção, restituiu-lhos e tudo pareceu acabado. Então boa-noite, meninos, disse Tadeus; evidentemente já não podia mais, estava exausto e achava agora inútil a sua presença: partiu a pé, de mãos nos bolsos, quase com uma certa arrogância, pelo menos assim pensou aquele que estava a imaginar como se teriam desenrolado os acontecimentos daquela noite. E quando Tadeus já ia longe, na esquina da Rodrigo da Fonseca, mesmo em frente do talho judaico, o homem tirou de novo a pistola: voltem a entrar no carro. Sentaram-se os três apertados no banco de trás e o homem, de pé, lá fora, disse: agora oiçam-me bem, porque a lição de política só agora é que vai começar. Primeira regra da lição de política: amar o seu país. E para amar o seu país sabem o que é preciso? Não sabem, porque são três comunistas piolhosos, ou democratas, tanto faz. Muito bem, eu digo-lhes o que é preciso. É preciso ódio. Ódio para defender a nossa civilização e a nossa raça. E sabem como se reconhece uma verdadeira civilização e uma verdadeira raça? Reconhece-se a saber dominar outra raça. Concludentemente, para dominar outra raça é preciso antes de mais dominá-la sexualmente, e assim fez o abaixo-assinado cidadão português para todos os efeitos, em serviço em Luanda e Lourenço Marques nos anos da graça de 1964-1968. [...]



Na sua nota introdutória, Antonio Tabucchi define assim os anjos que lhe inspiraram estes contos: «Os anjos são seres difíceis, principalmente os da espécie de que se fala neste livro. Não têm penas macias, têm um pelame ralo, que pica.» Escritor italiano [Pisa 1943 – Lisboa 2012], foi professor de Língua e Literatura Portuguesa na Universidade de Génova; e director do Instituto Italiano di Cultura em Lisboa. Dedicado ao estudo da figura de Fernando Pessoa, produziu ensaios sobre este autor e traduziu obras suas. Em 2001, um artigo que escreveu para o jornal francês Le Monde e que foi traduzido pelo jornal espanhol El País (acerca da liberdade de expressão), fez com que António Tabucchi fosse galardoado com o Prémio de Liberdade de Expressão Josep Maria Llado, na Catalunha. 

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