sábado, 6 de junho de 2020

Medicina orientada à saúde indígena: Os povos do Xingu



A atenção dada à saúde indígena no Brasil tem como fundamento a saúde integral, associada à noção de diferenciação e o respeito pela diversidade cultural. Contempla a incorporação de práticas terapêuticas tradicionais nos serviços de saúde destinados ao atendimento dessas populações. É entendida a colocação dos serviços de modo, tanto quanto possível, a conciliar o acesso universal aos bens e serviços de saúde com a garantia de diferenciação, sem interferir, no entanto, na qualidade dos serviços prestados em contexto intercultural.

O Parque Indígena do Xingu, anteriormente Parque Nacional Indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso, é uma terra indígena brasileira considerada a maior e uma das mais famosas reservas do género no mundo. O parque foi criado no início da década de 1960, no tempo de Jânio Quadros, tendo sido a primeira terra indígena homologada pelo governo federal. Os Povos do Xingu vivem próximo do rio Xingu, no estado do Mato Grosso, com múltiplas etnias, embora com semelhanças culturais. Os Povos do Xingu representam quinze tribos e quatro grupos linguísticos indígenas diferentes, mas eles compartilham sistemas de crenças, rituais e cerimónias similares.

A perceção que estes povos têm da doença, e suas causas e consequências, contrasta sobremaneira com as conceções científicas dos médicos ocidentais. Acresce a esse facto, os problemas que se levantam a nível interdisciplinar para articular as diversas dimensões determinantes do processo saúde-doença, que envolve epidemiologistas, sanitaristas, antropólogos, só para dar alguns exemplos. Os modelos esbarram na própria fragmentação disciplinar, que vem a ser um dos constrangimentos para uma teoria geral da doença, uma vez que os múltiplos intervenientes, não raro, entram em contradições. Assim, há necessidade de hierarquizar os determinantes fundamentais do adoecer em cada contexto social, de modo a superar os paradoxos que a fragmentação disciplinar acarreta. O problema das múltipla causas, em paralelo com o paradoxo da fragmentação do conhecimento e da especialização moderna, reedita o problema clássico do choque entre várias cosmovisões. 

A reflexão acerca da conceção ontológica de doença, na história do pensamento médico, recebeu um profundo contributo por parte de Michel Foucault, que se fez-se acompanhar ao mesmo tempo de um processo de desencantamento em zonas do mundo remotas das civilizações. É o chamado efeito de "achatamento do mundo", que impede a percepção de níveis diferenciados e faz com que não se possa hierarquizar adequadamente planos homogéneos distintos, uma vez que cada disciplina tem o seu próprio estatuto epistemológico. Era a "reestruturação do olhar" sobro o conceito de doença demasiadamente ontologizado, isto é, identificada como uma entidade mórbida autónoma, independente do sujeito e das suas conjunturas pessoais e sociais e culturais. 

Assim, uma vez que se tinha de integrar toda a entidade nosológica nos moldes da taxonomia médica internacional, coordenada pela Organização Mundial da Saúde, eram mantidas abordagens no terreno que abstraiam da acção essas conjunturas que incluíam o sobrenatural na noção de doença por parte dos povos tradicionais. Ora, tem sido recentemente essa a preocupação dos agentes da medicina ocidental ao contemplar as conjunturas pessoais, sociais e políticas, assim como os acontecimentos de ordem sobrenatural contidos nas representações indígenas da doença, ao catalogar em novos termos biomédicos os fenómenos nosológicos que ocorrem em realidades muito diferentes daquelas que ocorrem nas cidades ocidentais. A diversidade ideológica é uma das características da modernidade. O postulado da liberdade de escolha por parte do indivíduo, é paralelo ao postulado da vontade sem limites no âmbito das relações com a Natureza. Esta percepção das relações do Homem com a Natureza, tem sido, por outro lado, o nó górdio das condições de existência da própria ciência, quando o cientista acredita que é um "observador" livre e independente da Natureza, como se colocasse "algures em nenhures", fora da Natureza, como se tivesse vindo de um outro lugar que não deste mundo. 

Na percepção indígena da doença, caracterizada por um conceito amplo que inclui infortúnios e conjunturas adversas, actua um sistema etiológico que se organiza numa hierarquia não excludente de múltiplas causalidades. Nesta hierarquia, na qual não estão ausentes as relações de causalidade mecânica pura e simples — as ervas são consideradas o agente instrumental da doença pelos próprios indígenas – as conjunturas pessoais, sociais e, principalmente, sobrenaturais, são levadas em consideração na determinação da causalidade última. É na causalidade última que operam os níveis de hierarquização, que é o que se encontra ausente nas representações oficias. Há aqui, de facto, um confronto cultural. Com efeito, os casos de doença em geral são vistos como resultado de uma conjuntura adversa, social e sobrenatural. É a esta forma de perceber a doença, fazendo intervir domínios diversos e conjunturas pessoais, e mesmo pondo em jogo elementos da cosmologia da ordem do mundo, que se dá pelo nome de "medicina holista ou ecológica". Que é a forma comum e transversal à maioria das medicinas tradicionais socialmente orientadas. As equipas médicas ocidentais, que aí intervém, sentem uma urgência premente de explicações coerentes, quando confrontados com certos casos incomuns de doença nos povos indígenas. É inescapável a ocorrência de confronto cultural, seja por razões vinculadas a uma conjuntura adversa que pressiona os profissionais de saúde a se dirigirem para uma intervenção médica apropriada, seja pela pura necessidade intelectual de encontrar uma racionalidade em ocorrências anómalas que afectam grupos de risco.

Como já se disse atrás, a cultura ocidental moderna, na sua busca de racionalidade biomédica, segundo os padrões da investigação científica, comporta um problema básico: a fragmentação paradigmática e epistemológica que limita o diálogo entre as várias disciplinas hiperespecializadas. É o seccionamento do "Real" em diversos planos distintos e incomunicáveis entre si. É verdade que já há mais de meio século que uma certa facção dos agentes do conhecimento têm procurado superar este processo de fragmentação recorrendo a meios de abordagens multidisciplinares. Contudo, esta tentativa de totalização, a posteriori, ainda não pode ser apelidada de holística. Com efeito, o que para as representações ocidentais modernas, sobre certas doenças desconhecidas, constitui um desafio - seja na causalidade, seja na sua própria existência enquanto entidade nosológica - para os povos indígenas representa a expressão de uma totalidade a priori. Por exemplo, para os Kuikuro - uma das tribos indígenas do Alto Xingu, Mato Grosso, a tradição é a grande fonte de explicação de todas as coisas, não cabendo contestação, questionamento ou especulação. Sempre foi assim, e será, o Sol é o criador.  

Racionalidade, separação da Natureza, fragmentação do conhecimento, desencantamento e achatamento do mundo - são alguns dos tópicos que modelam a nossa visão cósmica. Dos seus efeitos resulta a noção de Pessoa Moderna e Individualismo. Neste sentido, as explicações que damos certas doenças endémicas em zonas tropicais do globo, reflectem elementos da cosmologia moderna e suas representações. Mas, embora essas representações, sejam fundadas na racionalidade e numa objectividade possível, pré-condições de existência do pensamento científico, não podem prescindir do contexto cultural no qual se situam. E é precisamente para lidar com o "não classificado", em contexto intercultural, que é preciso buscar abordagens multidisciplinares para explicar fenómenos segundo novos rearranjos da cosmologia ocidental moderna.

É para uma prática diferenciada, para explicitar os factores culturais, conscientes ou mesmo inconscientes, presentes nas noções de doença, etiologia e nas práticas e opções terapêuticas, que existe a antropologia médica, disciplina que toma por objecto as representações sobre a doença, para que a medicina global possa catalogar síndromes nosológicas à luz das categoriais biomédicas padronizadas pela OMS. No entanto, a importância destes factores como determinantes da maneira como a doença é percebida, não tem sido adequadamente considerada pelos profissionais de saúde, pelo menos até muito recentemente. A abordagem antropológica não é apenas aplicável às sociedades indígenas. A explicitação de diferentes visões de mundo e percepções distintas da doença, são determinantes no processo de assimilação dos fenómenos de transição, quer no adoecer, quer no curar. E a antropologia pode contribuir para o debate sobre esses determinantes.

Considerações de ordem epistemológica, ainda guardam uma grande distância à sua aplicação enquanto, digamos, mais arte do que ciência de curar. No entanto, a própria atitude dos profissionais envolvidos em missões de intervenção local, demonstra o reconhecimento da existência de dimensões "transcendentes" para além da dimensão biológica, o que testemunha um esforço para melhor adequar a visão de mundo ocidental à realidade das situações de contacto intercultural. Este facto aponta mais para a necessidade de adequação das representações médicas, do que de adaptação. Adequação das normas de conduta terapêutica nas situações de contacto intercultural.

No Alto Xingu, a experiência no atendimento aos problemas de saúde das populações culturalmente diferenciadas tem resultado em interessantes soluções como: a formação de agentes de saúde indígenas;  a adequação de técnicas e normas de conduta à realidade local; o atendimento conjunto com os xamãs ou "pajés". A antropologia da doença encontra neste contexto um campo fértil de investigação e experimentação. Os resultados, a partir de um íntimo contacto profissional em uma equipa multidisciplinar, por sua vez vão fornecer mais grão para o moinho da reflexão dedicada à resolução de outros e novos problemas concretos. E para a solução dos problemas, não poderiam estar ausentes os principais interessados: "os índios". São eles que, em última instância, e mesmo inconscientemente, detém a globalidade do conhecimento da sua própria cultura. A investigação antropológica, explicitando e tornando consciente, por exemplo, os valores e categorias cognitivas expressas nas regras sociais, e na maneira de conceber o mundo, é o melhor meio de fundamentar decisões conscientes mais eficazes, sem perder de vista a ética no contexto do etnocentrismo face à alteridade dos profissionais de saúde.


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